terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Sentinelas da liberdade

O baiano Cipriano José Barata de Almeida (Salvador, 1762; Natal, 1838) foi o mais famoso jornalista da época da Independência, causa que abraçou e que lhe valeu longos períodos de cadeia: foi detido um ano e meio durante a Conjuração Baiana (1798); por causa da Revolução Pernambucana de 1817, foi preso por ordem pessoal de D. Pedro I entre novembro de 1823 e setembro de 1830; e voltou às grades no período Regencial, entre 1831 e início de 1834, o que somaram 11 anos de prisão, mais do que o período em que o líder comunista Luís Carlos Prestes esteve preso durante a ditadura de Getúlio Vargas: de 1936 a 1945.

Formado em filosofia na Universidade de Coimbra, Cipriano foi impiedosamente perseguido porque, nas décadas de 1820-30, se tornou o símbolo da luta pela autonomia das províncias, do Pará e Maranhão ao Rio Grande do Sul. Era influente principalmente no Ceará, na Paraíba, em Pernambuco, na Bahia, em Minas Gerais e até no Rio de Janeiro. Amigo de Frei Caneca, um dos líderes da Confederação do Equador, tornou-se adversário de antigos aliados, como José Bonifácio de Andrade e Silva, José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) e o regente Diogo Feijó.

Deputado constituinte, em 1823, Cipriano lançou o jornal Sentinela da Liberdade. Defendia a Independência com mudanças radicais e era contra a escravatura. O jornal saía às quartas-feiras, com linguagem vigorosa e crítica, mostrando as falhas do poder. Em 1825, depois de ser preso na Fortaleza do Brum, no Recife, por participar da Confederação do Equador (rebelião que reuniu vários estados do Nordeste contra D. Pedro I), Barata publicou seu jornal com o título Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco.

Cada vez que mudava de prisão, quando surgia a oportunidade, com ajuda dos aliados, publicava um novo jornal: Sentinela da Liberdade na Guarda do Quartel General, Sentinela da Liberdade na Guarita de Villegaignon. Em 1835, Barata escrevia o seu último Sentinela da Liberdade, aos 73 anos. O jornal durou 13 anos, mas outros apareceram em todo o país, com o mesmo nome, mesmo depois de sua morte, em 1º de julho de 1838.


Foi um “campeão da liberdade de imprensa”: “Toda e qualquer sociedade onde houver imprensa livre está em liberdade; que esse povo vive feliz e deve ter alegria, segurança e fortuna; se, pelo fato contrário, aquela sociedade ou povo que tiver imprensa cortada pela censura prévia, presa e sem liberdade, seja debaixo de que pretexto for, é povo escravo que pouco a pouco há de ser desgraçado até se reduzir ao mais brutal cativeiro”, dizia.

A trajetória de Cipriano Barata só encontra paralelo na de Thomas Paine (1737-1809), cidadão inglês julgado e condenado por traição em seu país, cidadão honorário da França, pioneiro defensor dos direitos do homem e ativo participante das duas principais revoluções democráticas modernas, a francesa e a americana. Suas ideias foram resgatadas por Barack Obama nas comemorações dos 200 anos da Independência dos Estados Unidos. É dele o primeiro texto a sistematizar o conceito de liberdade de imprensa, publicado no American Citizen, em 19 de outubro de 1806, um jornal influente em Nova York à época.

Amigo do então presidente dos EUA, Thomas Jefferson (1743-1826), Paine dizia que o patrimônio mais importante dos jornais é a sua credibilidade. Sem ela, as causas defendidas por eles serão sempre derrotadas, porque “ninguém acredita em um mentiroso vulgar ou em um difamador comum”. Segundo Paine, o termo liberdade de imprensa passou a ser usado quando a Revolução Inglesa de 1688 aboliu a exigência de autorização prévia do “Imprimateur” do governo (autorização) para a impressão de textos. Ele chama a atenção para o fato de que a liberdade de imprimir nada tem a ver com o conteúdo impresso. A responsabilidade sobre o conteúdo é de quem escreve. Para ele, a liberdade de imprimir não exime o autor de ser julgado pelo público ou de responder, perante os poderes constituídos, pelo conteúdo impresso:

“A imprensa, que é uma língua para os olhos, foi, então, colocada exatamente na situação da língua humana. Um homem não demanda liberdade antecipadamente para falar algo que ele tem a dizer, mas ele se torna responsável depois pelas atrocidades que ele pode ter dito. Da mesma forma, se um homem faz a imprensa dizer coisas atrozes, ele se torna tão responsável por elas como se ele as tivesse dito pela boca. O Sr. Jefferson disse em seu discurso de posse que ‘o erro de opinião pode ser tolerado quando a razão foi deixada livre para combatê-lo’.”

O presidente Jair Bolsonaro disse ontem que os jornalistas são uma espécie em extinção. No natimorto projeto de reforma trabalhista do governo, a categoria fazia parte das profissões que seriam extintas, mas isso dependeria do Congresso e, sobretudo, do mercado. A imprensa passa por uma crise decorrente da mudança de plataforma de comunicação, na qual o velho tipo móvel de Guttemberg deu lugar ao hiperlink da internet, o papel, ao smartphone, as rotativas, às redes sociais. Mas a alma dos jornalistas, como as de Barata e Paine, não morreu.

Governo condena terrorismo lá fora. Aqui dentro, silencia

Uma vez que se manifestou solidário com o governo americano "no combate ao terrorismo" depois que o presidente Donald Trump mandou matar o general iraniano Qassem Soleimani, é razoável imaginar que o governo brasileiro condenará também o ato de terrorismo contra a sede da produtora Porta dos Fundos, no Rio.

O carismático comandante das forças de segurança iranianas era considerado um herói no seu país. Contra ele, fora de lá, pesavam graves acusações de envolvimento com terrorismo. Soleimani foi assassinado por um drone quando deixava o aeroporto de Bagdá, no Iraque. Junto com ele morreram pelo menos mais seis pessoas.

Segundo Mike Pompeo, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Soleimani planejava ações que poderiam pôr em risco vidas americanas no Oriente Médio. Sua morte, afirmou Trump, não foi para “dar início a uma nova guerra”, mas para impedir a possibilidade de haver uma nova guerra na região.


O ato de terrorismo contra a produtora Porta dos Fundos não produziu vítimas. Cerca de cinco homens, de acordo com a polícia do Rio, arremessaram duas bombas caseiras incendiárias contra o imóvel. Um porteiro escapou sem ferimentos. Mas terrorismo é terrorismo onde quer que aconteça, produza ou não vítimas.

Um dos cinco homens, Eduardo Fauzi, ligado a milicianos e dono de folha policial com cerca de 20 registros de transgressões à lei, fugiu para a Rússia na véspera de ser preso. Uma vez lá, confessou ser um dos autores do atentado. E disse que só conseguiu fugir porque fora avisado com antecedência de sua prisão.

Para justificar o que fez, Fauzi alegou que os comediantes do Porta dos Fundos desrespeitaram a religião ao encenarem uma sátira insinuando que Jesus poderia ter tido uma experiência homossexual. Ninguém é obrigado a gostar de sátiras. Mas a ninguém é permitido o uso de bombas para protestar.

Desde a véspera do Natal, dia do atentado, o governo Bolsonaro mantém-se em silêncio. Guardaria silêncio se algo parecido tivesse acontecido às portas de uma igreja evangélica? Ou de uma sinagoga? Ou às portas de uma unidade militar? Onde se perdeu a promessa de Bolsonaro de governar sem viés ideológico?

Abraçado com carrasco favorito

E nenhum deles sequer pensou que não havia no mundo tirania mais tirana do que a unanimidade, escuridão mais escura do que a unanimidade, estupidez mais estúpida do que a unanimidade! Abrigaram-se nela colocando o baraço no próprio pescoço
Andrzej Szczypiorski, "Uma missa para a cidade de Arras"

Economia e felicidade

Em 1974, o professor Richard Easterlin observou que o crescimento da renda dos Estados Unidos nas décadas anteriores não alterou a felicidade dos seus cidadãos. O achado ficou conhecido como Paradoxo de Easterlin e inaugurou o campo denominado economia da felicidade, que busca responder questões universais como “o dinheiro traz felicidade?”. A primeira coluna do ano é sobre esse simpático campo de pesquisa.
O Paradoxo de Easterlin é disputado: diversas pesquisas posteriores identificaram correlação e mesmo relação de causalidade entre renda e bem-estar. Dois prêmios Nobel em Economia, Daniel Kahneman (2002) e Angus Deaton (2015), estimaram um teto em uma renda anual de US$ 75 mil: acima desse nível, mais dinheiro não traria mais felicidade. Os autores parecem concluir que não importa ser rico, mas importa não ser pobre: “As dores dos infortúnios da vida – como doenças, separações e solidão – são significativamente exacerbadas pela pobreza”.

Uma série de estudos discute duas perguntas: se o efeito do dinheiro na felicidade é temporário (adaptação hedônica) e se o efeito do dinheiro na felicidade é relativo (depende da comparação com pessoas próximas – como o cunhado, o vizinho, o colega de trabalho). Para a primeira pergunta, são comuns as pesquisas com vencedores de loterias, experimento natural que isola o dinheiro de outras características pessoais. Em geral, o efeito é identificado, mas a magnitude varia na literatura.

Com base em uma pesquisa mundial da Gallup, tem sido publicado a cada dois anos o World Happiness Report (WHR). Segundo o relatório, a avaliação do brasileiro quanto à sua felicidade tem caído nos últimos anos. A “nota” média dada pelos entrevistados, de 0 a 10, era de 6,98 no biênio 2012 a 2014, caindo para 6,64 entre 2014 a 2016 e, mais recentemente, para 6,3 entre 2016 e 2018 – isto é, já após o início da recuperação econômica. Em um ranking, o País seria o 32.º, e se destaca no quesito suporte social (parentes e amigos para contar se precisar).


Desde que passou a ser publicado, Venezuela e Síria foram os países com pior variação negativa no índice. A variação brasileira recente não chega perto, mas chama a atenção seu início coincidir com a recessão do governo Dilma e pela queda contínua, mesmo depois da retomada do PIB a partir de 2017.

Chegamos então a duas outras variáveis também estudadas pela economia da felicidade: desemprego e desigualdade, duas mazelas que ainda pouco têm respondido ao crescimento da economia depois da crise. No trabalho seminal de Andrew Clark e Andrew Oswald, o desemprego era a variável que mais afetava negativamente o bem-estar individual, sendo pior que um divórcio. Em anos recentes, têm se apontado que os efeitos da economia sobre o psicológico são muito mais significativos quando negativos do que quando positivos. Deaton lembra que o efeito do desemprego é pronunciado mesmo quando considerado isoladamente do efeito da perda de renda.

Quanto à desigualdade em nível nacional, há resultados encontrando efeito positivo sobre a felicidade em países emergentes, talvez por sinalizar a possibilidade de mobilidade social. Entre os que encontram efeito negativo, explicações passam pela desconfiança e ansiedade com status social.

A medição da felicidade é um tema a parte: o WHR traz duas medidas além da nota de felicidade, uma de “afeto positivo” (frequência de risada e prazer no dia anterior) e outra de “afeto negativo” (frequência de preocupação, tristeza e raiva no dia anterior). São medidas comuns em estudos de psicologia positiva e próximas das usadas pelos Nobéis Kahneman e Deaton.

De forma análoga, no Reino Unido, o equivalente do IBGE monitora em uma equivalente da Pnad quatro indicadores (separando a satisfação com a vida em termos gerais da percepção de sentido e propósito da vida). É uma prática diferente do experimento autoritário do Reino do Butão, conhecido por maximizar um índice de “Felicidade Interna Bruta”. Proposta de adoção da experiência inglesa no Brasil consta Projeto de Lei 2.067/2019, do senador Eduardo Girão.

O campo deve ganhar mais atenção nos próximos anos, porque guarda relação com a preocupação com o meio ambiente e a busca por novas métricas para medir a prosperidade humana em alternativa ao PIB. Pesos-pesados da economia compuseram uma comissão para tratar do tema, encomendada pelo governo francês: o trabalho é revisitado no livro recém-lançado Measuring What Counts: The Global Movement for Well-Being, que tem entre os autores o prêmio Nobel ativista Joseph Stiglitz. Vale ressaltar, porém, que 99,9% da população mundial ainda se encontra abaixo do limite calculado por Kahneman e Deaton. Para quase todo o mundo, mais PIB ainda é mais felicidade.

Trova do Ano Novo

“Ano novo, vida nova”
Frase falsa e descabida
pois cada ano se renova
sem que se renove a vida 

Bastos Tigre

O labirinto do tempo

Cada flor jogada na água, cada pé molhado no mar é um gesto de esperança. Senão a multidão não cobriria as areias de Copacabana sussurrando desejos a Iemanjá. Fim de ano, fim de década.

Envolto em incertezas, nosso tempo é pobre em consolos e estruturas sólidas. A ciência e a tecnologia mudam a sociedade com mais rapidez do que as ideologias. Moldando estilos de vida, inauguram uma nova era. Na contramão do que é novo, por aqui pontifica uma ideologia caricata e delirante. O atraso cobriu o país de mofo em 2019. Um ano em que o ódio abriu suas asas mórbidas sobre nós.

O obscurantismo, como é de praxe, ameaçou artistas, intelectuais e jornalistas. Assustado com o mundo complexo que não cabe em seus limites estreitos rumina um sentimento de rancor. Sua palavra de ordem é, então, terra arrasada. Destruir tudo o que pensa e aponta para o futuro. Apagar o horizonte.

Longe desse cotidiano que nos asfixia, o mundo faz seu caminho de liberdades e riscos. As biotecnologias ampliam as fronteiras humanas ao mesmo tempo em que nos aproximam do impensável pós-humano. A internet dá acesso a toda a aventura do conhecimento. Paradoxal, permite também sua desconstrução e banaliza a mentira chamando-a de pós-verdade, enquanto manipula eleições. A genética propicia inesperadas configurações familiares. A inteligência artificial cria e rouba empregos. O robô segura a mão do idoso simulando o afeto que não tem.

Mulheres e jovens — estas imensas “maiorias globais” — defendem causas civilizatórias, combatem a violência de gênero e o aquecimento global. Esses movimentos são como a floresta que assombrou Macbeth: surpreendem o atraso com o sopro da mudança.

O mundo contemporâneo desafia o pensamento, o debate e as escolhas. Escolha é o outro nome da liberdade.

Obscurantistas se iludem, suas trevas não vieram para ficar. O futuro não espelhará submisso o presente. O tempo é um labirinto incerto onde os caminhos se bifurcam. É nessa brecha da incerteza que a esperança trabalha. Feliz Ano Novo.

Pensamento do Dia


A verdade está sob ataque, e o problema é de todos

O presidente dos Estados Unidos espalha teorias de conspiração desbancadas, o primeiro-ministro britânico engana a Rainha, e um exército internacional de trolls tem agora uma razão de existir: praticar desinformação nas redes sociais. O fim do ano 2019 não é um bom momento para a verdade.

Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Adolf Hitler, estaria esfregando as mãos de satisfação. Enquanto ele ainda precisou expressamente alinhar os meios de comunicação e mandar prender jornalistas, os populistas de hoje têm jogo fácil: eles simplesmente tuítam e postam inverdades e meias-verdades, sem cessar.

Seus seguidores compartilham os absurdos às dezenas de milhares, e se apenas uma fração permanece nas cabeças dos leitores, os demagogos já terão dividido a nação um pouquinho mais, apertado um tanto mais os laços com seus adeptos. E a próxima vitória eleitoral ficou um pouco mais próxima.


Quem olhe um pouco além da própria bolha informativa nas redes sociais, por exemplo no Facebook, não vai acreditar nos próprios olhos: "[A democrata americana] Nancy Pelosi desviou 2,4 bilhões de dólares da Previdência Social para financiar o processo de impeachment [contra Donald Trump]", berra uma manchete.

Basta um clique, e eu digo para o mundo inteiro como isso me deixa furiosa. Mais um clique, e compartilhei a escandalosa manchete. Como é que essa mulher pode roubar assim os pobres e dos aposentados!

E no entanto, também basta um clique para se chegar ao artigo por trás da postagem. E para quem seja só um pouco cético e observe atentamente, logo fica claro: não só não pode ser verdade, como não é verdade. O artigo consta da rubrica "Sátira para tirar você do sério". E uma olhada no expediente do site revela: "Tudo neste website é inventado [...] Se você acredita no que está aqui, é hora de mandar examinar a cabeça."

Mas não adianta. A postagem é compartilhada liberalmente, e colericamente comentada – o que, graças ao algoritmo do Facebook, só faz que ela apareça no feed de notícias de mais usuários ainda. É desesperador: como é que alguém pode acreditar numa maluquice dessas?

É porque ainda não aprendemos a lidar com a enchente de informação que as redes sociais fazem jorrar sobre nós. Porque ninguém nos diz o que é importante ou não, o que é certo e o que é errado. Tudo dá na mesma, tudo está no meu feed, o bom e o mau, o útil e o nocivo. E, afinal de contas, todo mundo no Facebook é meu "amigo", e eu acredito nos meus amigos.

Está na hora de denunciar essa confiança cega e combatê-la, com uma coalizão ampla pela verdade e contra a desinformação, as fake news, e por mais competência midiática. Já se veem primeiros movimentos: o Twitter já tomou a iniciativa de proibir propaganda política. Facebook e Google ainda se fazem de difíceis, porém não têm como escapar de fazer jus à própria responsabilidade, se não quiserem ver o colapso total da nossa sociedade.

Também a Deutsche Welle participa de um projeto internacional que visa a checagem de fatos na internet e nas mídias sociais, aliada à difusão de competência midiática. E aqui é a hora e a vez de não só as empresas de mídia, mas também as instituições de ensino agirem. O saber sobre os algoritmos do Facebook, imagens manipuladas e o uso correto com as redes sociais tem seu lugar nas escolas e universidades, mas também nos cursos de aperfeiçoamento dos locais de trabalho.

E, no fim das contas, cada um de nós pode fazer algo. Não compartilhemos nada sem haver conferido, pelo menos brevemente, se é verdade – para que nossos amigos possam confiar em nós. E vamos aguentar as histórias de arrepiar os cabelos nos nossos feeds, manter o contato com gente que pertence ao extremo do outro lado político. Podemos até enviar-lhes coraçõezinhos por suas piadas inofensivas.

Mas também vamos lhes chamar a atenção, pelo menos de vez em quando, quando eles estejam se inflamando com mais um conto da carochinha moderno. E, acima de tudo: não desesperemos.
Christina Bergmann

Animal vê raça na imprensa

Quem não lê jornal não está informado. E quem lê está desinformado. Tem de mudar isso. Vocês são uma espécie em extinção. Eu acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente]. Vocês são uma raça em extinção
Jair Bolsonaro

Um 2020 entre profetas das desventuras e profetas da esperança

Quem na década de 1950 cunhou a expressão “profetas de desventura”, em contraposição aos profetas da esperança, algo que não pode ser mais atual, foi um dos Papas mais humanos e despojados, João XXIII, filho de camponeses pobres, o mais parecido ao hoje papa Francisco. Foi na noite anterior à inauguração do Concílio Vaticano II, que pretendia renovar o rosto triste da Igreja de então, dominada pela retrógrada Cúria Romana, burguesa e afastada do evangelho. Aquela que tentou acusar o Papa de louco por ter tido a ideia de convocar todos os bispos do mundo a Roma para fazer um exame de consciência e tentar responder às ânsias de um mundo que pressionava por uma renovação que recolocasse a Igreja na pureza perdida do primeiro cristianismo.

Naquela véspera do Concílio, que se anunciava como uma grande batalha na Igreja entre conservadores e progressistas, o Papa João XXIII surpreendeu aos que esperavam um discurso solene perante um acontecimento que havia sacudido a opinião mundial, de todos os credos e de um modo especial dos agnósticos. Em vez de discutir teologia, disse aos mais de 3.000 bispos já presentes em Roma, vindos de todos os continentes, que estivessem atentos aos “profetas de desventuras”, e que assim o Papa ia dormir muito tranquilo aquela noite.

Às milhares de pessoas que lotavam a praça de São Pedro naquela noite de lua cheia ele disse: “Quando voltarem para suas casas, digam aos seus filhos pequenos que o Papa lhes mandou um beijo”. João XXIII sabia que aquele Concílio seria importante para o futuro dos pequenos.

Foi um Papa que nunca compactuou com o pessimismo, nem sequer naquele momento em que vários bispos não puderam ir ao concílio porque estavam detidos nas prisões soviéticas. Era capaz de não dar importância a nada, sabia relativizar tudo. Enquanto os Papas anteriores se sentiam imbuídos de uma missão sobrenatural e se sentiam representantes de Deus na terra, João XXIII chegava a se esquecer de que era Papa. Contou-me isso na época seu secretário, Loris Capovilla, que havia sido jornalista. Uma tarde, o pontífice lhe disse: “Vamos ter que consultar isto com o Papa”. Havia esquecido de que era ele mesmo.

Não era, entretanto, um Papa nem desavisado nem inocente. Sabia muito bem para que estava ali. Em seu testamento, recordando que seu antecessor Pio XII, o príncipe Eugenio Pacelli, antes de morrer havia concedido títulos nobiliários a meia família, João XXIII deixou escrito: “Nasci pobre e morro pobre”. E pediu perdão à sua família “por não poder lhes deixar nada em herança”. Viveu sempre em paz com todos, crentes e ateus. Para ele, os homens eram só irmãos, com seus acertos e suas quedas. No mesmo testamento, deixou uma frase célebre: “Não tenho que pedir perdão a ninguém, porque nunca me senti ofendido por ninguém”. Era um homem em paz consigo mesmo.

Sua simplicidade surpreendia até os líderes de outras religiões. Uma tarde, convidou o pastor da Igreja Luterana de Roma para tomar um café. Não o recebeu com a pompa de Papa. Relativizou seu trabalho. Confiou-lhe: “As pessoas acham que o Papa trabalha muito, o dia todo. Não é verdade. Fazem tudo por mim. Durante a tarde tenho muito pouco para fazer. Então me entretenho com esta luneta. Da janela vou distinguindo as torres das igrejas. Penso que ao redor de cada uma delas vivem famílias que sofrem e se esforçam para poder dar de comer a seus filhos. Então vou parando e rezo por elas”. E tomando a luneta, disse ao pastor protestante: “Olhe, casualmente, a primeira torre que vejo daqui é a da sua igreja. E assim, todas as tardes, vocês são os primeiros pelos quais rezo a Deus”. A história me foi contada por aquele mesmo pastor em uma entrevista. Ficara surpreso e admirado com a simplicidade do Papa católico.

Quando era jovem núncio apostólico na Bulgária, tinha o costume de deixar uma luz acesa em sua casa. E dizia que se algum necessitado passasse debaixo da sua janela poderia entrar. “Não vou perguntar em que Deus acredita, mas sim como posso ajudá-lo.” Era seu lema.

No livro de conversas Sobre o Céu e a Terra, do então cardeal Bergoglio de Buenos Aires (o hoje papa Francisco) e do rabino Abraham Skorka, há uma página que evoca João XXIII. Bergoglio diz ao rabino que quando se encontra com alguém não lhe pergunta em que Deus acredita, mas sim se fez algo pelos outros. Dois Papas ecumênicos que para muitos parecem iconoclastas e hereges, mas que foram capazes de falarem ao coração de todos sem distinções de credos.

Dois Papas que, profetas eles da esperança, são contra os “profetas de desventuras”, porque sabem relativizar as coisas, sabem que, como dizia Jesus, até das pedras podem nascer filhos de Deus e que o pior dos pecados é a discriminação das pessoas, por suas ideias, pela cor de sua pele, por seu gênero ou sua condição social. E que quem menos faz pelo mundo são os profetas de desventuras, incapazes de ver que sem esperança a terra nos afundaria e perderia sentido. Que não é verdade que tudo é pior que antes, porque não é, e que não é com o pessimismo, e sim com um saudável realismo, que se pode continuar construindo o mundo.

Neste 2020, eu preferiria que, ao invés de apostarmos no pessimismo, que costuma ser estéril, apostássemos na esperança, que faz milagres. Isso significa sermos firmes e resistentes contra quem pretende nos impor os dogmas dos profetas das desventuras, em vez dos semeadores de esperanças. Resistentes contra governantes como Bolsonaro e suas hostes mais desesperadas, profetas de desventuras e a favor de profetas da esperança, como foi Marielle, que com sua alegria jovem e sua força vital enfrentou o pessimismo das milícias do Rio contra sua esperança de um mundo mais livre e de todos.

São governantes como Bolsonaro e suas hostes racistas que pretendem “desconstruir” em vez de “construir”; que dividem em vez de unir, que discriminam a todos os diferentes sem perceberem que assim se colocam eles mesmos como diferentes e se autocondenam ao ostracismo. De nada serve que Bolsonaro tente apostar no catastrofismo ético, em esterilizar a cultura, em ferir os valores sagrados da democracia e de suas liberdades, em continuar exaltando torturadores e ditaduras. Será um perdedor como acabam sendo todos os pessimistas empedernidos. Marielle, profeta da esperança, já ganhou a batalha contra ele.

O mundo sofre hoje tentações de involução autoritária, e começam a levantar a cabeça as bestas do nazismo e do fascismo que achávamos derrotados para sempre, mas, apesar de tudo, a democracia e os seus valores continuam avançando. Esta boa notícia nos deu neste fim de ano a jornalista e escritora Miriam Leitão em sua coluna d’O Globo ― e isso que ela, que já foi vítima da ditadura, teria motivos para estar na fila dos profetas das desventuras. Não, Miriam se alegra com esses dados significativos que ela tomou de Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard e escritor de fama mundial. Se a chegada de Donald Trump, escreve, significou o início e um período assustador, apesar dele e de seus seguidores de sabor fascista na Turquia, Hungria e Rússia e agora em parte na Espanha com a ascensão do ultradireitista Vox, já com forte presença no Parlamento, o fato é que “o total de democracias está crescendo em todo mundo”. Em 2018, o número de países democráticos chegou a 99. Em 1978 eram apenas 40. E continuam aumentando.

Sim, entre sombras e tropeços, entre avanços e retrocessos, sem esquecer a lição demoníaca dos extermínios em massa de ambos os lados ideológicos, o mundo continua lutando por sua sobrevivência, oferecendo novas conquistas e ampliando os espaços de liberdade. Há apenas cem anos, a mulher não tinha direitos, era uma pura escrava do marido. A jovem Greta, 17 anos completados nesta quinta-feira, profeta da esperança em defesa do planeta, teria sido queimada na fogueira na Idade Média. Hoje é ouvida com respeito pelos grandes da Terra.

Há apenas 80 anos não existia o estatuto dos direitos das crianças, que eram vistas como objetos de seus pais. Hoje essa carta de direitos se estende até aos animais. Até ontem, ir fazer a guerra era visto como uma honra, e as famílias se orgulhavam das medalhas que seus filhos obtinham no campo de batalha, mesmo que lá deixassem a vida. Hoje não acredito que haja uma só mãe no mundo que se sinta feliz e orgulhosa de que seu filho vá morrer em uma guerra. O salto foi quântico. Leiam Escravidão (Globo Livros), o magnifico e aterrador livro de Laurentino Gomes, e verão o inferno que viveram milhões de africanos vendidos como escravos. Sua leitura dá arrepios. E isso foi ontem, e hoje é algo que vemos como um inferno, embora os descendentes daqueles escravos continuem pagando suas consequências. Mas nem tudo agora é igual. Ontem era algo natural. Hoje nos envergonha e escandaliza, lutamos contra aquela ignomínia. Ninguém mais acha normal.

Não chegamos ainda a uma democracia completa que defenda os direitos de todas as minorias, mas pelo menos sabemos distinguir entre liberdade e barbárie.

Os pessimistas continuam acreditando que não existe mais esperança. Os profetas das desventuras continuam anunciando o fim do mundo. Prefiro quem não perdeu a esperança de continuar abrindo sulcos na terra para plantar sonhos de liberdade. São eles os capazes até de arriscar suas vidas por defender a liberdade em vez de entregar as armas, que é o melhor presente que se pode oferecer aos profetas do niilismo.

O medo do amanhã

O mundo está em uma encruzilhada, passando por conflitos e turbulências, em que a revolução tecnológica e o aumento populacional tornam frágeis as previsões sobre o futuro da humanidade, produzem assombro e disseminam o medo do amanhã. A Terra está com 7,7 bilhões de habitantes e caminha para chegar a 9,6 bilhões em 2050, número assustador diante da pobreza, do desemprego, do esgotamento de recursos naturais e dos danos ambientais.


O sociólogo Zygmunt Bauman, pesquisador e professor na Polônia e na Inglaterra, tornou-se um combatente ao tipo de sociedade de consumo que a humanidade inventou e não está conseguindo sustentar.

A tentativa de imaginar como será o futuro exige conhecimento do passado e da história, pois, tanto o presente quanto as próximas décadas serão em grande parte reflexo do que fizemos e do que viermos a fazer com a vida no planeta.

Definitivamente, os quatros problemas mais dramáticos são a pobreza, o desemprego, a desigualdade e a violência. Quaisquer que sejam as soluções imaginadas para esses flagelos sociais, uma coisa é certa: a educação de base precisa atingir a todos os habitantes da Terra com um nível de qualidade média bem maior do que é hoje. Talvez tenha chegado o momento crucial em que a educação deva se concentrar prioritariamente em ensinar o domínio da língua, a matemática, as ciências, a proficiências na leitura, a habilidade na escrita e o raciocínio lógico.

Vendo uma matéria de jornal sobre crianças atravessando paredes na fronteira entre Venezuela e Brasil, e vi o medo e a desesperança estampados no rosto daqueles pobres meninos. Ali estava o retrato da pobreza, do baixo nível educacional, do pânico e, por óbvio, de um futuro sombrio. E vinham para o Brasil, que não é nenhum paraíso.

Os livros de autoajuda que tratam do sucesso profissional e da felicidade pessoal costumam destacar com prioridade as qualidades, as virtudes e o esforço individual. Como predominam autores de países desenvolvidos, raramente perguntam qual a influência do país e do ambiente social onde a criança nasce e cresce, na determinação do sucesso pessoal.

A chance de ter sucesso profissional ou de ficar rico, para uma criança nascida e criada nas regiões mais atrasadas da África ou da América Latina, é muito menor do que para uma criança nascida nos Estados Unidos, Alemanha e qualquer outro país desenvolvido. Parece fácil entender que o local em que a criança nasce e o ambiente em que ela cresce são decisivos na determinação de seu futuro e seu progresso pessoal, profissional e intelectual.

Jared Diamond, em seu livro Colapso, afirma que “sociedades diferentes respondem de modo diferente a problemas semelhantes”. Podemos dizer que as pessoas também.

As crianças e os jovens respondem, quando adultos, conforme os padrões da sociedade em que vivem, influenciadas pelas instituições políticas, economia, bases sociais e seus valores culturais. Comparar o êxito pessoal de indivíduos em sociedades completamente diferentes, apenas com base nas características e virtudes pessoais, é comparar coisas desiguais.

O mundo é muito desigual, tanto em termos culturais quanto em termos econômicos. Muitas nações vivem no círculo vicioso da pobreza e baixa cultura, no qual a população é pobre porque suas instituições e valores culturais são atrasados e suas instituições são atrasadas porque a população é pobre.

Nos últimos 100 anos, a humanidade viu a mobilidade social conduzir os filhos a um padrão de renda e bem-estar superior aos pais. Os filhos das famílias agrícolas, que viviam em situação precária na zona rural, migraram para as cidades em razão da tecnologia e da automação da produção.

As possibilidades de estudo, qualificação profissional e o progresso das cidades permitiram a muitos filhos desfrutar de melhores condições de vida que a dos pais.

Mas, agora, em muitos lugares a coisa se inverteu. Os filhos da classe média urbana estão vendo esvair-se a possibilidade de terem padrão de vida superior aos pais. A assombrosa revolução tecnológica, a inteligência artificial e os robôs cognitivos estão criando desemprego e, com mais pessoas desempregadas, caem os salários médios em quase todas as profissões.

Os desafios são enormes, mas uma coisa é certa: terão melhores perspectivas aqueles que adquirirem elevado nível educacional, ampliarem seus conhecimentos e desenvolverem as virtudes do comportamento e do relacionamento humano.