segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Brasil da sujeira grossa


Presidenciáveis precisam falar sério sobre segurança pública

O ano de 2017 atingiu um triste recorde com mais de 63 mil homicídios, uma média de 175 pessoas mortas por dia, segundo o recém lançado 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O país vive também a franca expansão do crime organizado, que encontra ambiente fértil para prosperar dentro dos presídios brasileiros. Segundo o Ministério Público de São Paulo, entre 2014 e 2018, o número de integrantes do PCC atuando em outros estados aumentou de 3.261 integrantes para 20.488. O sistema carcerário brasileiro é superlotado, com o dobro de pessoas presas em relação ao total de vagas, o que impossibilita qualquer perspectiva de ressocialização. Além disso, a ineficiência do sistema de segurança pública e justiça criminal não consegue priorizar o esclarecimento dos crimes violentos, o que gera um ciclo contínuo de impunidade em relação a eles. O medo e a insegurança habitam o cotidiano das pessoas, sendo que a violência figura entre as quatro principais preocupações das brasileiras e brasileiros, segundo Ibope.


O segundo deles diz respeito à baixa confiança por parte dos brasileiros na democracia e em suas instituições. Levantamento da organização chilena, Latinobarómetro, de 2017, aponta que apenas 8% dos brasileiros confia no governo, 7% nos partidos políticos, 11% no parlamento e 25% no tribunal eleitoral.

O descrédito nas instituições democráticas somado à elevada insegurança e altas taxas de violência compõem um cenário extremamente preocupante para qualquer país. Essa combinação abre espaço para que soluções oportunistas e que se pretendem milagrosas sejam apresentadas pelos candidatos na corrida eleitoral.

No entanto, já está mais do que comprovado que soluções milagrosas não diminuem o crime e a violência. Nenhum país que superou a violência, restabelecendo também parte da confiança na democracia, o fez do dia para a noite. É preciso planejamento e ações concretas de curto, médio e longo prazo. Trata-se de uma equação extremamente desafiadora: construir propostas capazes de responder ao medo legítimo vivido pela população brasileira, que sejam tecnicamente viáveis, baseadas em evidências e que respeitem os aprendizados e valores democráticos. Por isso, o país precisa de candidatos e candidatas que falem sério sobre segurança pública.

Para orientar os/as candidatos/as na formulação de suas propostas para a segurança pública, três das principais organizações da sociedade civil que trabalham com o tema no Brasil, os Institutos Sou da Paz e Igarapé e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentam a Agenda “Segurança Pública é Solução”, que traz propostas concretas para superar a violência e a insegurança no país, no curto, médio e longo prazos. É preciso priorizar a redução dos crimes violentos, especialmente os homicídios, e organizar o Estado para enfrentar o crime organizado. Para isso, a Agenda apresenta sete eixos de trabalho: 1. criação de um sistema eficiente para gerir a segurança pública; 2. organização de estruturas estatais para enfrentar o crime organizado; 3. promoção da eficiência do trabalho policial; 4. reestruturação do sistema prisional; 5. implantação de programas de prevenção da violência; 6. reorientação da política de drogas; e 7. fortalecimento da regulação e o controle das armas de fogo.

Com a formalização das candidaturas ao Executivo federal, um importante exercício para avaliar se o/a candidato/a fala sério sobre segurança pública e, portanto, é capaz de levar o país à superação do medo, da violência que assola diversos estados brasileiros, de Norte a Sul, e de alguns de seus desafios democráticos, é analisar as propostas e planos de governo à luz da Agenda Segurança Pública é Solução. Trata-se de um excelente caminho para orientar o/a eleitor/a a votar bem nessas eleições e também municiá-los para que possam cobrar essas propostas de seus candidatos. Segurança pública e democracia são temas caros demais aos brasileiros e, portanto, qualquer proposta para solucioná-los deve passar longe das tradicionais panaceias que permeiam os debates eleitorais no país.
Carolina Ricardo

Natureza é a humanidade

A natureza não é uma coisa que está lá fora. A natureza somos você e eu. É seu corpo físico, o ar que você respira e a água que está bebendo agora. Tudo isso é a natureza. Destruí-la é destruir a humanidade
Margaret Atwood

Importância do Brasil na biodiversidade mundial é maior do que se pensava

Quase um quarto de todos os peixes de água doce do mundo - mais precisamente 23% - estão nos rios brasileiros. Assim como 16% das aves do planeta, 12% dos mamíferos e 15% de todas as espécies de animais e plantas.

Esses números estão sendo compilados pela primeira vez por cientistas brasileiros após a publicação do estudo O futuro dos ecossistemas tropicais hiperdiversos, divulgado no final de julho na revista Nature.

"Já imaginávamos que o Brasil tinha essa quantidade de espécies, mas os números exatos estavam espalhados em bases de dados muito diferentes pelo mundo. É uma combinação de dados única", disse à BBC News Brasil a bióloga Joice Ferreira, da Embrapa Amazônia Oriental, que participou do estudo e lidera os esforços para compilar os dados brasileiros.


"A condição do Brasil é muito única, mas, nas discussões políticas, o papel que o país tem na biodiversidade mundial é pouco considerável. Precisamos de um conjunto de políticas muito mais fortes e atuantes para lidar com essa biodiversidade."

O estudo, realizado por um grupo de 17 cientistas, incluindo quatro brasileiros, é a maior revisão de dados sobre a biodiversidade nos trópicos, segundo o biólogo marinho, zoólogo e botânico britânico Jos Barlow, da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, que liderou a pesquisa.

"Sempre soubemos que a região era importante. Mas encontramos números surpreendentes. Mostramos, por exemplo, que 91% de todos os pássaros do mundo passam ao menos parte de suas vidas nos trópicos. Isso é incrível", disse à BBC News Brasil.

"Eu também fiquei impressionado com o fato de o Brasil ser responsável por um quarto dos peixes de água doce. Geralmente, esses ecossistemas são ignorados."

No estudo, a equipe internacional de cientistas alerta para o fato de que a falta de ações de conservação e monitoramento dos ecossistemas tropicais pode causar, em breve, uma perda sem precedentes de espécies - muitas das quais sequer são conhecidas.

Os ecossistemas tropicais - florestas, savanas, lagos e rios e recifes de coral - cobrem 40% do planeta, mas abrigam mais de três quartos (78%) de todas as espécies.

Além disso, desses ecossistemas dependem as vidas de centenas de milhares de pessoas. Os recifes de coral, por exemplo, são responsáveis pela subsistência e pela proteção de mais de 200 milhões, apesar de só cobrirem 0,1% dos oceanos.

Em todos esses locais, dizem os pesquisadores, a flora e a fauna sofrem a "ameaça dupla" das atividades humanas, como o desmatamento e a pesca predatória em excesso, e de ondas cada vez mais frequentes de calor, causadas pela mudança climática.

"A maior parte dos cientistas foca em apenas um bioma. Mas nós mostramos que todos os ecossistemas tropicais estão sofrendo dos mesmos problemas", diz Barlow.

"Quando falamos em mudança climática, falamos muito do seu impacto nas regiões polares, mas isso está devastando os trópicos. E o mundo parece ter dado um passo atrás no que se refere ao compromisso com ações relacionadas ao meio ambiente."

Para Joice Ferreira, da Embrapa, também é preciso considerar que a maior parte dos países tropicais são regiões mais pobres, com menor capacidade de pesquisa.

"Nossa região alimenta todas as outras do mundo com recursos naturais, mas a maior parte das pesquisas sobre os trópicos é liderada por países desenvolvidos", afirma.

"Isso nos coloca numa situação de vulnerabilidade, porque temos uma capacidade menor de resposta às mudanças climáticas. Estamos colocando em risco um número muito grande de espécies."

Imagem do Dia

Lago Superior (EUA)

Fogo nas urnas

Tornar-se presidente da República ou melar as eleições. A tática de Lula de jogar mais gasolina na crise sem precedentes que arde no país tem um aliado na outra extremidade. Tanto o dono do PT quanto Jair Bolsonaro não têm qualquer disposição de aceitar o resultado das urnas caso sejam preteridos.

Autor da emenda do voto impresso, aprovada e não implantada, segundo o TSE por falta de dinheiro e de tempo hábil, Bolsonaro sempre tergiversa quando questionado se respeitará a vontade do eleitor. Embora não tenha dado a mínima – nem mesmo mandou representante para os testes oficiais das urnas -, insiste na tese de que o sistema eletrônico é fraudulento. Um escudo para contestar uma eventual derrota.



E sua turma, ativíssima nas redes, e barulhenta, não só fará coro à tese de fraude como já dispara ameaças caso o ex-capitão não chegue lá.

Na outra ponta, o bordão “eleição sem Lula é fraude” ganhou requintes de desfaçatez nunca antes experimentados.

Impedido pela Lei da Ficha Limpa de disputar eleições devido à condenação colegiada em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, Lula criou a farsa do registro no último minuto do último prazo. Para tal, o PT arregimentou torcedores angariados pelo MST, que, pela primeira vez, anunciou que cobraria (R$ 250 mil) do partido para custear a tarefa.

Tudo devidamente filmado para o horário eleitoral na TV, a ser encenado por Fernando Haddad, mais uma vez candidato-poste. Na primeira, foi vitorioso e tornou-se prefeito de São Paulo, quando Lula ainda não tinha amargado as dores do patrocínio de Dilma Rousseff. Prova disso é que Haddad não conseguiu se reeleger prefeito nem com Lula ao vivo e em cores em seu palanque.

Ao despudor de registrar a candidatura do chefe com atestados de antecedentes criminais de São Bernardo do Campo, onde seria seu domicilio caso não residisse na cela da PF de Curitiba há mais de uma centena de dias, o PT agora quer apoiar a campanha presidencial em uma carta normativa da Comissão de Direitos Humanos da ONU.

O documento, de acordo com os petistas, obriga o país a ter Lula como candidato. Como se vivêssemos em estado de exceção. Como se a Lei da Ficha Limpa de nada valesse. Como se um organismo internacional, seja qual for, pudesse falar mais alto do que as instituições do país.

Vale registrar que o comissariado de direitos humanos da ONU expede ordens a torto e a direito. Algumas disparatadas, como as dirigidas à Venezuela. O governo Nicolás Maduro já foi “obrigado” a cessar a violência contra a oposição e, ao mesmo tempo, recebeu apoio contundente contra as sanções internacionais às mesmas violências.

Isso posto, sabe-se que a “liminar” da ONU é balela pura. Mas poderosíssima para a propaganda petista. Corrobora com a narrativa de que Lula é perseguido e que as instituições brasileiras inexistem ou, pior, se mancomunaram contra o ex, mentira exposta no artigo assinado por ele no New York Times.

O PT sabe que a candidatura Lula será indeferida e que dificilmente haverá tempo para emplacar Haddad. Assim, aposta na implosão de tudo. Ou na vitória de Bolsonaro, que não é o mesmo mas é quase igual.

E o faz com o discurso de “luta”, em nome do estado de direito e da democracia, valores pelos quais não tem qualquer respeito. Vende-se, e com sucesso, como proprietário do bem e de toda a virtude. Na outra banda, Bolsonaro é dono da moral, da família e até de Deus.

Lula escancarou que, da cadeia, dá ordens para que os seus ponham fogo. Bolsonaro não deixa por menos, parte para o pau. Desdenha de qualquer um que dele discorde – só “analfabetos” criticaram seu programa de governo.

Ambos são nitroglicerina pura. Estão prontos para não aceitar reveses às suas pretensões.

Mary Zaidan

Tá na pauta?

A principal pauta tem que ser o combate à corrupção, porque não há programa de construção à moradia ou de oferecimento de empregos, de fornecimento se alimentos, nada, nenhum programa subsiste num ambiente corrupto, em que a prática da corrupção está disseminada
Marcelo Bretas, juiz 7ª Vara Federal Criminal, encarregado dos processos da Lava Jato no Rio

Je suis la Loi

Luís XIV reinou durante 72 anos (1643-1715), ou seja, por três gerações, o que lhe permitiu consolidar o absolutismo francês como modelo de Estado-Nação fundado na teoria do “direito divino” (ele parecia imortal). A frase “Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi (Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu!)”, graças à sua aliança com a emergente burguesia francesa e à redução do poder da nobreza, virou marca registrada do seu longo reinado e inspiração para os demais autocratas europeus, com exceção da Inglaterra, cuja monarquia parlamentarista existe desde a Declaração de Direitos de 1689 (Bill Of Rights).

Xará do rei Sol, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se comporta como se estivesse acima das leis e o Estado brasileiro, à mercê de seus desejos, embora esteja preso em Curitiba, condenado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) a 12 anos e um mês de prisão, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do tríplex do Guarujá (SP). A Lei da Ficha Limpa prevê que uma pessoa se torna inelegível após ser condenada por órgão colegiado da Justiça. Assim mesmo, Lula registrou sua candidatura e promove uma grande chicana jurídica, que agora ganhou foro internacional.

Graças às articulações do ex-chanceler Celso Amorim, o Comitê de Direitos Humanos da ONU pediu, na sexta-feira, que o Brasil garanta direitos políticos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão e não o impeça de concorrer na eleição de outubro, até que sejam completados todos os recursos de sua condenação. O comitê decidiu a galope, por solicitação da defesa de Lula, apresentada no fim do mês passado. Em resposta, o Ministério das Relações Exteriores divulgou uma nota na qual afirma que a manifestação é uma “recomendação” e não tem efeito jurídico. E que a Delegação Permanente do Brasil, em Genebra, tomou conhecimento da decisão “sem qualquer aviso ou pedido de informação prévios”.

O Brasil é signatário do Pacto de Direitos Civis e Políticos. Os princípios de igualdade diante da lei, de respeito ao devido processo legal e de direito à ampla defesa e ao contraditório são também princípios constitucionais brasileiros, respeitados pelo Supremo Tribunal Federal. A defesa de Lula, porém, quer enquadrar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), onde já tramitam mais de uma dezena de impugnações da candidatura de Lula, e o próprio Supremo, com base numa decisão de especialistas, que nem magistrados são em seus países. O Judiciário brasileiro não deve obediência à comissão, ao contrário do que afirmam o advogado de Lula e o ex-chanceler.

Composto por 18 personalidades independentes ligadas aos movimentos de defesa dos direitos humanos, de diversos países, nenhuma das quais é brasileira, o comitê não ouviu nossas autoridades. A vice-presidente do Comitê de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), a norte-americana Sarah Cleveland, uma das signatárias de decisão, chegou a dizer à imprensa brasileira que o Brasil tem obrigação de cumprir a decisão. Parece até piada, professora da Universidade de Colúmbia, talvez devesse ter se manifestado antes sobre os direitos humanos dos brasileiros presos e separados dos filhos nos Estados Unidos, por conta da política de imigração de Trump.

Há muita polêmica sobre as relações entre a ONU e os países que integram a organização, que estão de luto devido à morte de seu ex-secretário geral e Nobel da Paz Kofi Annan, mas nem de longe suas comissões, por mais importantes que sejam, exercem o papel de “governo mundial” nas suas respectivas áreas. Inspirada no antigo Império Romano, a ideia de um Estado soberano mundial, longe de ser a fundação de uma cidadania mundial, seria o fim de qualquer cidadania. Nesse sentido, essa intromissão nas eleições brasileiras não tem nenhuma justificativa. É um disparate, ainda mais em se tratando de uma comissão da qual fazem parte apenas especialistas.

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se organiza para julgar com brevidade o registro da candidatura de Lula, cuja impugnação foi apresentada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge. O relator é o ministro do STF Luís Barroso. Coincidentemente, a defesa de Lula apresentou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), também na sexta-feira, um pedido para que a inelegibilidade do petista seja sustada, enquanto seu caso não transitar em julgado no Supremo, o que contraria a Lei da Ficha Limpa.

Com isso, a tática eleitoral do PT ganhou uma nova dimensão: agora é uma estratégia para desmoralizar a Justiça brasileira internacionalmente e virar a mesa, impondo a candidatura de Lula, que busca voltar ao poder num ambiente da radicalização política e ajuste de contas.

Como candidato a presidente da República, Lula declarou patrimônio de R$ 7,9 milhões, sem contar o tríplex do Guarujá e o sítio de Atibaia, propriedades que não reconhece como suas. Segundo a assessoria, a fortuna foi amealhada com 70 palestras, para 41 empresas e instituições, entre 2011 e 2015. Entre os candidatos a presidente da República, o patrimônio do petista perde apenas para João Amoêdo, Henrique Meirelles e João Goulart Filho.
Luiz Carlos Azedo

Pensamento do Dia


Com cela aberta e reuniões diárias, a campanha de Lula é desenhada na prisão

A cela do prisioneiro mais famoso do Brasil costuma ficar aberta. Para os guardas é mais fácil deixá-la assim e trancá-la somente de noite e finais de semana para que, diariamente, flua a carreata de advogados, senadores, bispos, netos etc. que já é rotina no quarto andar da sede da polícia federal em Curitiba. Todas essas pessoas têm algo a falar com o preso, Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e ainda o político mais popular da história recente do Brasil. Sentados na mesa retangular da cela que Lula transformou em seu novo escritório, cada um traz suas notícias. Uns, para contá-lo sobre os recursos da condenação de 12 anos por corrupção que o ex-presidente cumpre aí há quatro meses. Outros, das eleições presidenciais de outubro, em que Lula é, desde quarta-feira, candidato e também favorito com sobras nas pesquisas. E outros, sobre a batalha jurídica que significará fazer campanha da prisão em um país onde a lei jurídica não permite que um condenado em segunda instância como ele seja candidato.


“Não é a melhor maneira de se fazer uma campanha”, diz por telefone ao EL PAÍS Gleisi Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT), partido de Lula e uma das máquinas políticas mais potentes do maior país latino-americano, horas depois de visitar a cela. “O ideal seria que Lula estivesse agora se reunindo com os líderes regionais. Mas está fazendo a campanha. Tem visitas contínuas, manda cartas, manda recados, manda orientações. E se nota: é impossível falar dessas eleições sem falar de Lula”.

Em um primeiro olhar, a de Lula é uma candidatura rocambolesca. Enquanto seus rivais, os outros 12 candidatos, percorrem o país e os veículos de comunicação ganhando eleitores, ele é proibido de falar com a imprensa, participar dos debates na televisão e divulgar vídeos gravados por seu partido. Deve comandar suas tropas a partir dos 15 metros quadrados de sua cela, onde a duras penas pode se comunicar com o mundo exterior. Em seus atos, o PT começou a projetar imagens de arquivo e distribuir máscaras do rosto de Lula entre o público para tornar presente o candidato ausente. “Vamos insistir para que ele saia e faça campanha porque é seu direito político. Mas enquanto isso estamos trabalhando com a candidatura liderada por ele”, afirma por telefone Sérgio Gabrielli, ex-presidente da Petrobras e coordenador da campanha. Não se reúne com Lula.

De fato, a rotina do ex-presidente é muito diferente da de um candidato. Ele se levanta às sete da manhã e toma café, suco e torradas com manteiga. Faz uma hora de exercícios por dia: seis quilômetros na esteira. Então abre a porta e começa a movimentação de visitas. Se são advogados, e geralmente são, Lula manda recados aos seus por eles: é o mais parecido que tem de comunicação em tempo real com o exterior. Nas manhãs de segunda é visitado por líderes religiosos —um bispo episcopal anglicano há um mês, por exemplo— e às quintas, seus filhos e seus netos. Nos finais de semana, visitas não são permitidas e, como milhões de brasileiros, mata o domingo diante da televisão —comprada por um de seus advogados—, vendo Domingão do Faustão. Quase não janta; os que o veem dizem que está perdendo os quilos extras. De noite, ouve música que recebe do exterior em pendrives, que conecta na televisão.

Mas com Lula costuma acontecer que a superfície é somente o começo e poucos em Brasília têm dúvidas de que sob todo esse circo se esconde uma estratégia. Que o ex-presidente não se inscreveu como candidato na quarta-feira somente para lutar uma batalha impossível de se vencer com o sistema legal. O mais provável é que ao fazê-lo, Lula permita que o combalido PT faça campanha em seu nome, o mais poderoso da antipática política brasileira. E se é questão de tempo até o Tribunal Eleitoral vetá-lo com candidato, esse tempo é essencial. Cada dia que passa são menos votos perdidos; votos que sem dúvida quem o substituir no último minuto precisará (quase com certeza seu número dois, Fernando Haddad).

Se o jogo de raposa velha de Lula já não é ganhar as eleições e sim atrasar o máximo possível o Tribunal Eleitoral, seus rivais já não são os demais candidatos e sim os juízes; suas armas não são as pesquisas e sim a burocracia e seus prazos. E a meta final, mais do que a data com as urnas em 7 de outubro, é o 17 de setembro, data limite para que o Tribunal avalie as candidaturas. Toda manobra que aproxime Lula desse dia será uma vitória. Assim que se anunciar o veto à candidatura, o PT terá uma semana para recorrer da decisão: a ideia é usá-la. E quando sair uma decisão desfavorável, terão outros três dias para recorrer novamente. Enquanto isso, do outro lado, os juízes fecham o cerco o quanto podem. Após a inscrição de Lula como candidato, a promotora geral tinha cinco dias para pedir ao Tribunal Eleitoral que o impugnasse: demorou cinco horas. Cada minuto é uma vitória para os dois lados.

“O fato de que Lula tenha chegado até aqui já é digno de nota”, diz Hoffmann, horas depois de se reunir com ele. “E vamos apresentar todos os processos necessários para que possa continuar. Essa é sua campanha, sua estratégia. Lula estará no programa eleitoral, de uma maneira ou de outra”.

Meditando com Daciolo

Quando vi o Cabo Daciolo subir a montanha, anunciando que iria expulsar a maçonaria e os illuminati do Brasil, cheguei a pensar: é uma campanha singular no planeta, um candidato na cadeia e outro caminhando para o hospício. Teosóficos, cabalísticos, neopagãos e rosacruzes que se cuidem.

Mas é inegável que ele tem uma coerência estratégica: quer entregar o país a Deus. Sua atuação parlamentar confirma, pois tentou alterar o texto da Constituição: todo poder emana de Deus, e não do povo.

Semana passada estava lendo por acaso um livro que falava do poder da transmissão oral . Todos os líderes populares do momento se expressam nessa linguagem direta, cheia de incorreções, mas sem a frieza do texto.

Um jornalista estrangeiro queria minha opinião sobre a campanha, baseada em dois nomes: Bolsonaro e Lula. Minha explicação para o Bolsonaro de hoje é a de que ele tenta encarnar duas grandes correntes: conservadores e liberais. Não era liberal em economia, mas se tornou liberal no caminho, unindo-se a economistas e intelectuais que expressam essa tendência.

Embora tenham pontos de convergência, como o respeito à propriedade privada, há um grande potencial de atrito nesse casamento. Na medida em que a economia avança, tende a se internacionalizar, levando a uma reação nacionalista, como a de Donald Trump.

Os liberais partem do indivíduo; os conservadores, da família. Esses pontos de partida potencialmente também conflitam. E digo isso não com a visão de um teórico, mas de alguém que observa a história dos costumes no Brasil.

Tive a oportunidade de andar nas ruas com o senador Nélson Carneiro. Testemunhei como as pessoas lhe agradeciam pela lei do divórcio. Na época, muitos achavam que seria um golpe mortal na família.

Hoje, creio, até os defensores da família tradicional podem constatar as mudanças na estrutura familiar, em muitos casos mantida apenas pela mulher. O próprio Jair Bolsonaro já se casou algumas vezes. A tensão entre o conservador e o liberal existe na própria vida particular do candidato.

Mas é uma aliança que alguns liberais querem. Um grupo chamado MBL, que aparece em inúmeras polêmicas, também tentou construir essa ponte, quando denunciou uma exposição com um artista nu.

Eles diziam que não condenam a nudez em si, mas uma exposição daquele tipo feita com dinheiro público. Buscaram um argumento republicano para estender a ponte entre as duas tendências, tão sonhada por alguns atores: conservar nos costumes, liberar na economia.

Essas tensões já existem no governo Trump. A tendência ao nacionalismo protetor já começa a assustar setores liberais. E, possivelmente, o comportamento pessoal de Trump, sua linguagem vulgar e aventuras com atrizes pornôs não devem ser um fator de orgulho para conservadores.

No campo da esquerda, vejo tensões de outra natureza. O PT foi obrigado a se radicalizar diante da prisão de Lula.

Se a direita já constitui uma espécie de rumo geral, ainda que contraditório, a esquerda liderada pelo PT se fixou na luta para liberar seu líder e, ao adotar um tom mais radical, parece resignada a perder a disputa pela aprovação da maioria. No meu entender, isso não significa um destino inescapável.

Há um caminho alternativo. Longo e difícil. Passaria, em primeiro lugar, por uma autocrítica da roubalheira que houve durante o governo do PT.

Em segundo lugar, de uma visão mais realista da conjuntura, sobretudo nas relações Estado e mercado. Entre os que querem privatizar tudo ou estatizar tudo, há sempre a possibilidade de discutir racionalmente o tamanho do Estado num momento histórico dado.

Finalmente, no campo cultural, das lutas identitárias, é preciso dialogar com as forças majoritárias, sem a pretensão de conquistá-las para suas ideias, mas sim de achar o momento exato de propor mudanças razoáveis, como Nélson Carneiro.

Finalmente, no campo político, era preciso renegar a afirmação de que os fins justificam os meios. Isto significa aceitar as regras do jogo, trabalhar dentro da lei.

Esse ponto é o mais difícil de ser compreendido no momento. Para salvar Lula, é necessário condenar a Justiça.

Meu amigo indiano e a importância da cultura na formação da sociedade

Um dos meus amigos mais próximo é um inglês, filho de pais indianos. Há uma década, ele foi morar na Índia e, mesmo depois desse tempo todo, os indianos sacam, imediatamente e sem a menor dúvida, que ele é estrangeiro.

Fisicamente ele é um indiano, mas o seu jeito de andar, de se mexer, a sua maneira geral de ser, revelam que ele não é um "local" antes mesmo de abrir a boca.

Ele vive feliz lá. Sua mulher é indiana, eles têm um filho e têm fé no futuro do país.

Mas meu amigo também sente necessidade de voltar a Londres com frequência. Trabalha por conta própria com propaganda, e organiza a sua vida de tal maneira que criou uma obrigação de ir para Londres e encontrar com clientes quase todos os meses.

Não se trata somente de compromisso profissional. É necessidade psicológica também. Existem partes da sua personalidade que simplesmente não estão sendo alimentadas na Índia. Uso isso como prova convincente de que a cultura é mais importante que outros fatores.


Defino "cultura" como qualquer coisa que você não tem de fazer. Por exemplo: para sobreviver, você precisa comer. Podemos concluir, então, que comer em si não é cultura. Mas o que você come, quando, onde, com quem e como - tudo isso é o produto de opções, e portanto faz parte de uma cultura gastronômica.

No caso do meu amigo, apesar de uma afinidade com a Índia, ele talvez se identifique até mais com algumas opções mais comuns na vida inglesa. Ele até gosta mais comida indiana britânica do que da original!

Depois de 24 anos no Brasil, me identifico com isso. Tenho uma gratidão enorme pelo Brasil, tenho uma família brasileira. Não tenho amigos ingleses no Rio de Janeiro e hoje em dia só falo a minha língua nativa quando estou trabalhando. O dia a dia é sempre em português.

Mas eu nunca poderia ser brasileiro ou me definir como tal, mesmo se quisesse.

Morar fora do seu país de origem obriga a enfrentar questões de identidade, a refletir sobre o que você é e com o que você se identifica. Passando por esse processo, eu chego a conclusões bem parecidas com aquelas do meu amigo na Índia.

Por um lado, não tenho a menor afinidade com o patriotismo oficial do meu país. Os símbolos - a bandeira, o hino, a família real - não dizem nada para mim.

O passado imperial da Grã-Bretanha até me causa repulsa - com a exceção da Segunda Guerra Mundial, quando o país se quebrou e, de maneira mais ou menos consciente, escolheu abrir mão do império para lutar contra o nazismo.

No entanto, me identifico com os valores das décadas depois da guerra - e devo muito a eles.

É verdade que, sendo generoso, aquela foi uma revolução feita pela metade, mas também foi o período em que o povo fez grandes avanços, com a participação do estado na moradia, na saúde e na educação.

Também me identifico com o senso de humor britânico. Pode ser cruel e obscuro, mas eu gosto disso também, além da capacidade que temos de rir de nós mesmos. Mas gosto desse humor principalmente porque ele nos dá o poder de transformar qualquer situação em motivo para uma piada.

No momento, estou em uma visita breve à Inglaterra, em meio a uma onda de calor impressionante. Outro dia, eu estava em um pequeno ônibus que, muito lotado e preso no trânsito, estava muito quente, deixando os passageiros desconfortáveis. Começaram as reclamações.


Aí alguém falou que deveríamos encarar aquela situação como alerta. "É melhor a gente se comportar," falou. "Senão, vamos para o inferno para passar a eternidade nesse calor. Isso aí não passa de treinamento."

O comentário provocou muitas risadas, e a viagem continuou com mais leveza. Os sisudos que me desculpem, mas humor é fundamental. É a unica maneira de lidar com o mundo, é o que acontece quando a inteligência resolve dançar.

Posso estar equivocado, mas vejo a mesma flexibilidade no senso de humor brasileiro.

Falando no Brasil, me lembro do clima durante e imediatamente depois daquelas manifestações enormes de junho de 2013. Vários participantes foram entrevistados, e um tema veio à tona. Muitos citaram um certo incômodo com a identificação global do Brasil com carnaval, futebol e sexo. As pessoas diziam que isso não é uma representação justa do país, ou que queriam que a imagem do país fosse estivesse mais ligada a outras coisas.

Então, querido leitor, gostaria de terminar com uma pergunta: qual é a sua identificação com o Brasil? Quais aspectos da cultura brasileira são mais importantes para você?

Tim Vickery