A esperança é uma grande lente de aumento - que é o motivo pelo qual ela não vê muito longeJohn Berger, "Aqui nos encontramos"
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
Lente para não ver longe
Missionários aprendem até a pilotar avião para evangelizar índios na Amazônia
Lideranças indígenas contrárias às iniciativas temem que elas venham a ganhar fôlego no governo de Jair Bolsonaro, após a indicação da pastora evangélica Damares Alves para o ministério encarregado pela política indigenista.
Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), diz que "com a indicação da ministra Damares, o novo governo sinaliza que está claramente articulado com missionários evangélicos numa estratégia declarada de integrar o indígena à sociedade - a mesma estratégia da ditadura militar."
Segundo a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), entidade que reúne 78 organizações missionárias, há no mundo "dois mil povos sem o Evangelho, entre os quais 89 estão no Brasil".
A associação tem um Departamento de Assuntos Indígenas, cuja missão é "atender demandas sociopolíticas oriundas das agências filiadas junto aos órgãos governamentais", como obter autorizações para atuar em terras indígenas e influenciar congressistas em debates sobre o trabalho missionário em aldeias.
Asas de Socorro oferece cursos para formar mecânicos e pilotos dedicados "à causa do evangelismo nas aldeias |
Uma das entidades filiadas é a Asas de Socorro, criada por missionários americanos em 1955 e que mantém em Anápolis (GO) uma escola para formar pilotos e mecânicos dedicados "à causa do evangelismo nas aldeias, comunidades ribeirinhas e povos tradicionais, habitantes em regiões isoladas ou em situação de risco na Amazônia".
A formação completa dura quatro anos e custa cerca de R$ 1.500 ao mês, valor subsidiado pela organização, e garante ao aluno licenças de piloto comercial, voo por instrumentos e instrutor de voo.
Em cursos de piloto anunciados na internet, as mensalidades chegam a R$ 4.200/mês.
A Asas de Socorro tem bases em Roraima, Rondônia e no Amazonas. Um instrutor disse à BBC News Brasil que, após a conclusão do curso, espera-se que o voluntário passe a prover apoio logístico a missionários que já estejam em aldeias.
Os pilotos também podem fazer cursos para participar da evangelização direta dos grupos, além de atuar em emergências, resgatando missionários ou indígenas doentes. As operações são financiadas por doadores individuais e igrejas parceiras da Asas de Socorro.
'Religiões tradicionais e espiritismo'
Com sede nos EUA, a agência missionária Association of Baptists for World Evangelism (Associação Batista para o Evangelismo Global) também emprega aviadores missionários no Brasil.
Em seu site a organização conclama voluntários a servir no país, descrito como um local onde "religiões tradicionais e o espiritismo ainda abarcam parte da população".
Muitas organizações filiadas à AMTB têm sede no exterior - caso da WEC (Worldwide Evangelisation for Christ), criada por um britânico em 1913 e que diz ter como meta "envolver-se com 33 novos povos" em 2018 em parceria com as igrejas brasileiras.
Algumas organizações se especializam no treinamento antropológico e linguístico dos missionários.
Folheto com conteúdo religioso na língua Xavante distribuído por missionários Testemunhas de Jeová em aldeias no Mato Grosso |
Luz diz que mais de 1.700 missionários já foram formados pelo Instituto Bíblico Peniel, braço educacional da MNTB, fundada em 1953 e hoje presente em 50 etnias brasileiras. O curso dura quatro anos e meio e tem aulas de teologia, antropologia e linguística
A formação busca preparar o aluno para iniciar o trabalho missionário do zero em qualquer etnia, falante de qualquer língua, em qualquer lugar do mundo. O missionário tem acesso a técnicas para aprender um idioma qualquer por conta própria, transliterá-lo para nosso alfabeto e traduzir a bíblia para a língua aprendida.
O objetivo da MNTB é estimular as comunidades a criar suas próprias igrejas evangélicas. Entre os povos que não falam português, os cultos são sempre celebrados na língua local.
Foi essa a estratégia que eles aplicaram, por exemplo, entre os Wari' (também conhecidos como Pacaas Nova), grupo contatado pela MNTB em 1956, em Rondônia. "A igreja deles é totalmente Pacaa Nova. Eu nunca seria pastor numa aldeia indígena", diz Luz.
Durante o curso de formação, os candidatos a missionários da MNTB assistem à peça teatral Clamor de Batum - que, segundo a organização, reproduz um episódio real ocorrido na Papua Nova Guiné, país na Oceania.
Na peça, um grupo de jovens missionários visita pela primeira vez uma aldeia onde outros colegas já atuavam. "Olha só essa nativa. Ela é muito bonita, e eu aqui pensando que eles iam ser muito feinhos", diz uma das visitantes. "É, eles são seres humanos como nós, e Jesus também ora por eles", replica um missionário mais velho.
Na trama, um grupo de aborígenes implora para que os missionários se desloquem para outra aldeia para catequizar seus parentes e livrá-los do inferno após a morte. Diante da negativa dos religiosos, que alegam não serem numerosos o suficiente para a tarefa, a peça se encerra com uma choradeira coletiva.
A audiência é, assim, estimulada a unir-se ao esforço evangelizador para impedir que tantos povos não cristianizados tenham destino semelhante ao dos aborígenes papuásios.
Encenações também estão entre as estratégias da organização americana New Tribes Mission para angariar missionários.
A entidade montou na Pensilvânia uma réplica de uma aldeia Yanomami, povo que habita o Brasil e a Venezuela. Nela, voluntários interagem com atores que se passam por membros do grupo indígena.
A experiência é oferecida durante um retiro de fim de semana batizado de Wayumi - termo que, segundo os organizadores, é adotado pelos Yanomami para se referir a viagens curtas.
Segundo a organização, o retiro "dará a você e a seu grupo uma visão panorâmica de povos ainda não contatados pelo mundo. Ela abrirá seus olhos para o que deve ser feito para acançar esses grupos".
103 etnias sem missionários
O esforço para recrutar voluntários busca preencher lacunas na evangelização de índios na Amazônia.
Em 2017, numa palestra na Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina (PR), o pastor Ronaldo Lidório - um dos principais nomes da atividade missionária no Brasil - disse que indígenas são o grupo populacional brasileiro com maior carência de missionários, seguidos por ribeirinhos, quilombolas, ciganos e sertanejos.
Segundo Lidório, 103 etnias brasileiras não têm a presença de qualquer missionário.
"Quarenta delas estão abertas para o Evangelho, mas a realidade é que não há missionários", afirmou.
Não há dados oficiais sobre o avanço de igrejas evangélicas entre povos indígenas brasileiros. Em alguns povos, porém - caso dos Terena, em Mato Grosso do Sul, e dos Baniwa, no Amazonas - a maioria dos integrantes se declara evangélica.
Em algumas regiões, como no Alto Rio Negro, há forte presença católica entre os indígenas por influência de missões instaladas nos últimos séculos. Hoje, porém, a Igreja Católica diz ter abandonado a evangelização de indígenas e valorizar as crenças ancestrais dos grupos.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica, diz atuar junto a mais de 180 povos indígenas brasileiros respeitando o protagonismo dos grupos e "dentro de uma perspectiva mais ampla de uma sociedade democrática, justa, solidária, pluriétnica e pluricultural".
Pelas regras atuais da Funai, missionários só estão absolutamente impedidos de entrar em territórios de povos indígenas isolados - restrição que vale para qualquer outro grupo de pessoas.
Para ingressar nas demais terras indígenas, eles precisam de uma autorização da Funai ou da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).
Segundo servidores da Funai que não quiseram ser identificados, muitos missionários obtêm autorizações com a justificativa de prestar serviços à comunidade, como assistência em saúde.
De acordo com o Portal da Transparência, a entidade filantrópica que mais recebeu recursos da União nesta década foi uma ONG presbiteriana que atua junto a indígenas - a Missão Evangélica Caiuá, que mantém um convênio com o Ministério da Saúde para administrar 18 dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No período, a ONG - que em seu site diz trabalhar "a serviço do índio para a Glória de Deus" - recebeu cerca de R$ 2 bilhões em verbas públicas.
Duas éticas
A eleição de Collor foi beneficiada pela “cristianização” da candidatura de Ulysses Guimarães. Não se pode dizer exatamente o mesmo do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, que era um estranho no ninho peemedebista. Mas a adesão de forças políticas por gravidade no segundo turno foi igualzinha. Outra semelhança é a ausência de uma base parlamentar articulada em termos de coalizão partidária. Na política externa, Collor foi multilateralista, enquanto Bolsonaro é “trumpista”; na política econômica, o ex-presidente transformou seu projeto liberal num estelionato eleitoral, por causa do confisco da poupança, enquanto Bolsonaro promete fazer ajuste fiscal de arrombar, para viabilizar seu programa ultraliberal.
O senso comum aponta para um governo conservador na política e nos costumes, assumidamente de direita do ponto de vista ideológico. Essa é a cara do governo nas redes sociais, escolhidas como terreno mais favorável para o embate com as forças derrotadas na eleição. O novo modelo de comunicação do governo reproduz a estratégia vitoriosa da campanha eleitoral, mas será que vai funcionar? Bolsonaro (PSL) anunciou, por exemplo, que realizará uma live semanal no Facebook para comunicar as ações de governo, repercutindo-a no Twitter. Esse é o padrão do presidente norte-americano Donald Trump. Há um certo desconhecimento de que a comunicação do governo é institucional e dela depende a interação com a sociedade no dia a dia.
Segundo Bolsonaro, “o poder popular não precisa mais de intermediação” e graças a isso manterá uma comunicação direta com os eleitores. Embute a ideia de uma democracia plebiscitária, que não respeita a oposição nem as minorias; com sinal trocado, é o mesmo equívoco de setores de esquerda que defendem a democracia direta, ou seja, a substituição da democracia representativa, a subalternização dos demais poderes constituídos da República, principalmente o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o analista político Murilo Aragão, esse modelo pode funcionar muito bem enquanto o governo goza de grande popularidade, mas tende a gerar tensões com os grandes meios de comunicação e o sistema político tradicional.
“A exploração das redes, assim como certas ações de Bolsonaro, como conceder uma de suas primeiras coletivas de imprensa, após ter vencido a eleição presidencial, em cima de uma prancha de surfe, ou aparecer na semana passada vestindo camisa Nike, ou realizar flexões e praticar tiro em visita à sede do Bope, ajudam a manter a imagem de “mito” e de político “antissistema”, avalia Aragão. Na rotina da administração pública, porém, a vontade política do governante não basta, é preciso ter legitimidade nas ações. Ou seja, é absolutamente necessária uma justa relação entre a chamada ética das convicções, que move os políticos, e a ética da responsabilidade, que pauta a alta burocracia, tensão clássica da democracia. Nesse aspecto, há contradições instaladas no governo que podem ser determinantes para sua imagem futura
Talvez o epicentro dessa contradição já esteja instalado no Itamaraty, onde o novo chanceler Ernesto Araújo surpreende os colegas a cada dia. Toda uma geração de embaixadores está aterrorizada com a possibilidade de deixar os postos e amargar um fim de carreira no ostracismo. Mas essa tensão também ocorre no superministério criado para o ex-juiz federal Sérgio Moro, escalado para combater a corrupção na administração pública e enfrentar o problema do crime organizado. A primeira tarefa do novo ministro da Justiça tem maior caminho andado, por causa da Operação Lava-Jato; a segunda é o grande problema, como está patente no caso do Rio de Janeiro, onde o novo governador Wilson Witzel cedeu às corporações e deu status de secretários ao Chefe da Polícia Civil e ao Comandante da Polícia Militar, jogando por terra o trabalho feito pelos generais interventores para reorganizar o sistema de segurança fluminense.
O maior desafio do governo Bolsonaro, porém, é a gestão da economia. O Orçamento da União de 2019, estimado em R$ 3,381 trilhões, com previsão de crescimento de 2,5% do PIB e com inflação da ordem de 4,25%, engessa o novo governo. O salário-mínimo será reajustado em 5,45%, chegando a R$ 1.006 em 1º de janeiro. Já a taxa básica de juros (Selic) deve fechar 2019 em 8% ao ano e o dólar, em R$ 3,66, de acordo com a estimativa. A previsão de deficit para as contas públicas foi mantida em R$ 139 bilhões, mesmo patamar de 2018, incluído o reajuste de 209 mil servidores civis ativos e 163 mil inativos em 2019. O ministro da Economia, Paulo Guedes, para mexer nisso aí, tem que aprovar a reforma da Previdência a toque de caixa. É aí que entram a política e a necessidade de cortar na própria carne para dar bom exemplo.
Fake é a utopia cyber
Nunca alimentei ilusões com a internet e as criaturas hiper-alimentadas da infância dessa tecnologia. O sonho de todo ditador é saber sobre todo mundo o que elas sabem. E a única condição para uma arma vir a ser usada contra nós continua sendo ela ter sido inventada um dia. A tecnologia sempre foi isso, desde o primeiro porrete. Multiplica, indiferentemente, as forças construtiva e destrutiva da humanidade, esta última em geral mais rápida e completamente que a primeira.
De “ruptura” em “ruptura” nossa espécie nunca rompe com sua própria natureza. O primeiro efeito das novas tecnologias é promover uma troca revolucionária dos donos do dinheiro, o princípio ativo do poder. Mas ele continua corrompendo sempre e mais absolutamente quanto mais absoluto for. Como a esperança é a última que morre e experiência não passa de pai para filho acontece sempre a mesma confusão. As primeiras ambições humanas a domina-las para chegar mais perto do sol, que é o que nos move nesta passagem, são festejados como os heróis de uma nova era e os precursores de uma “nova humanidade”.
O que alimenta essa ilusão é o nosso temor atávico ao competidor de melhor desempenho e, portanto, o gosto em vê-lo cair. O século 20, que elaborou em ideologias a justificação moral do ódio contra o vencedor de ontem, proporcionou aos vencedores de hoje a devolução do espaço sem limites que a democracia lhes tinha cerceado. Permitiu-se ao Google e ao Facebook tudo que a humanidade aprendera a proibir às companhias telefônicas e ao resto dos agentes econômicos no estado de direito. Em nome da “democratização do saber” foi autorizado aos primeiros detentores das artimanhas do algoritmo, que nunca as dividiram com ninguém, espionar todos os movimentos, palavras e obras dos seus usuários e vender livremente o que assim conseguissem roubar-lhes. À Amazon todas as práticas de dumping e competição predatória de que a humanidade aprendera a proteger-se desde a disrupção do mundo a cavalo pelas ferrovias e o nefasto conluio dos donos delas com os robber barons para roubar o próximo. À Apple praticar livremente na China todas as formas de exploração da miséria e do trabalho semi-escravo que no mundo para o qual se destinavam seus produtos eram punidas com cadeia já havia mais de um século.
Da proteção da concorrência como garantia da liberdade individual – e a que condiciona todas as outras é a de poder escolher fornecedores e patrões – o mundo civilizado involuiu para o engodo da “democratização do consumo” pelo mel dos “preços baixos” dos produtos do roubo de ideias e do salário vil que, logo além da curva, não compra mais nada.
Estados nacionais inteiros, onde ele pode ser mantido pelo terror e pela violência, aderiram ao esquema. E a vertigem da marcha-à-ré e o medo do desemprego rebaixaram as ultimas defesas das classes médias meritocráticas, sustentáculo das democracias nos estados de direito. Hoje só sobrevive quem nasce para ser abduzido a bilhão para a nave mãe dos exploradores. Só os quatro gigantes compraram mais de 500 concorrentes na última década. São 50 anos de recordes de fusões e aquisições. US$ 3,3 trilhões, globalmente, só até setembro em 2018.
A etapa que se vai completando agora é o golpe de misericórdia. Começa em 2006 quando o Google adquire o Youtube. O vídeo dominaria a web, era claro, mas o problema técnico era insuperável. O volume de bits para imagens em movimento não cabia na rede que, em última instância, é física. Cabos de fibra ótica cruzando oceanos e continentes. O resultado era o buffering, videos que passavam aos trancos, cheios de interrupções. Entrega-los sem buffering passou a ser o objetivo nº 1 de toda a capacidade técnica que a ilimitada potência financeira do Google era capaz de comprar. O resultado foram as CDN’s, redes dedicadas, agora pertencentes a produtores de conteúdo que antes usavam a rede de redes menores conectando o mundo entre hubs e destes para distribuidores menores até o consumidor final, cada uma com um dono diferente, todas conversando entre si pela tecnologia de peering, espécie de tradução automática para uma linguagem técnica geral, tudo sob a lei sagrada, à qual todos juravam obediência, da “neutralidade da rede” segundo a qual era livre o ingresso de qualquer conteúdo em qualquer ponto do sistema e a ordem de entrega deveria corresponder à ordem de entrada.
Com as CDN’s tornaram-se possíveis as Netflix … que passaram a requerer muito mais CDN’s. E o cacife passou a ser proibitivo. Lá se foram as redes menores … lá se vai, agora, Hollywood inteira, depois do resto da industria do entretenimento. Hoje tres ou quatro gigantes são donos de todos os artistas. Pautam o comportamento do universo. Na torrente dos bilhões foi-se a net neutrality. Agora paga-se pela prioridade de chegada de cada bitenfiado no sistema. Quem paga menos chega por último ou nem chega. A própria rede, que “disrompeu” a ordem anterior em nome da libertação do povo e da arte da ditadura da propriedade privada é agora uma propriedade privada da escassíssima confraria do trilhão cercada de terra arrasada em todo o entorno competitivo.
E o mundo vê a novela que o Brasil já vira. Sillicon Valley compra o perdão de seus pecados declarando-se “de esquerda” e facilitando o “aparelhamento” do sistema lá de dentro dos seus mega-iates no grand monde. E o mais recente engodo é a demonização da fofoca, que predomina na nova praça pública virtual como sempre predominou em todas as praças públicas que já existiram. As fake news são o mais novo pretexto para matar a democracia em nome da salvação da democracia. É com elas que justifica-se a censura e reforça-se a ditadura comportamental enquanto os trilionários da rede compõem-se, nos bastidores, com as chinas da vida trocando tecnologia para a servidão por mais audiência e dinheiro.
E o pior é que estão por nascer os próximos shermans e theodore roosevelts, paladinos da luta antitruste que resgataram os Estados Unidos dessa mesma armadilha há pouco mais de 100 anos, e que na próxima edição terão de ter uma envergadura planetária.
De “ruptura” em “ruptura” nossa espécie nunca rompe com sua própria natureza. O primeiro efeito das novas tecnologias é promover uma troca revolucionária dos donos do dinheiro, o princípio ativo do poder. Mas ele continua corrompendo sempre e mais absolutamente quanto mais absoluto for. Como a esperança é a última que morre e experiência não passa de pai para filho acontece sempre a mesma confusão. As primeiras ambições humanas a domina-las para chegar mais perto do sol, que é o que nos move nesta passagem, são festejados como os heróis de uma nova era e os precursores de uma “nova humanidade”.
O que alimenta essa ilusão é o nosso temor atávico ao competidor de melhor desempenho e, portanto, o gosto em vê-lo cair. O século 20, que elaborou em ideologias a justificação moral do ódio contra o vencedor de ontem, proporcionou aos vencedores de hoje a devolução do espaço sem limites que a democracia lhes tinha cerceado. Permitiu-se ao Google e ao Facebook tudo que a humanidade aprendera a proibir às companhias telefônicas e ao resto dos agentes econômicos no estado de direito. Em nome da “democratização do saber” foi autorizado aos primeiros detentores das artimanhas do algoritmo, que nunca as dividiram com ninguém, espionar todos os movimentos, palavras e obras dos seus usuários e vender livremente o que assim conseguissem roubar-lhes. À Amazon todas as práticas de dumping e competição predatória de que a humanidade aprendera a proteger-se desde a disrupção do mundo a cavalo pelas ferrovias e o nefasto conluio dos donos delas com os robber barons para roubar o próximo. À Apple praticar livremente na China todas as formas de exploração da miséria e do trabalho semi-escravo que no mundo para o qual se destinavam seus produtos eram punidas com cadeia já havia mais de um século.
Da proteção da concorrência como garantia da liberdade individual – e a que condiciona todas as outras é a de poder escolher fornecedores e patrões – o mundo civilizado involuiu para o engodo da “democratização do consumo” pelo mel dos “preços baixos” dos produtos do roubo de ideias e do salário vil que, logo além da curva, não compra mais nada.
Estados nacionais inteiros, onde ele pode ser mantido pelo terror e pela violência, aderiram ao esquema. E a vertigem da marcha-à-ré e o medo do desemprego rebaixaram as ultimas defesas das classes médias meritocráticas, sustentáculo das democracias nos estados de direito. Hoje só sobrevive quem nasce para ser abduzido a bilhão para a nave mãe dos exploradores. Só os quatro gigantes compraram mais de 500 concorrentes na última década. São 50 anos de recordes de fusões e aquisições. US$ 3,3 trilhões, globalmente, só até setembro em 2018.
A etapa que se vai completando agora é o golpe de misericórdia. Começa em 2006 quando o Google adquire o Youtube. O vídeo dominaria a web, era claro, mas o problema técnico era insuperável. O volume de bits para imagens em movimento não cabia na rede que, em última instância, é física. Cabos de fibra ótica cruzando oceanos e continentes. O resultado era o buffering, videos que passavam aos trancos, cheios de interrupções. Entrega-los sem buffering passou a ser o objetivo nº 1 de toda a capacidade técnica que a ilimitada potência financeira do Google era capaz de comprar. O resultado foram as CDN’s, redes dedicadas, agora pertencentes a produtores de conteúdo que antes usavam a rede de redes menores conectando o mundo entre hubs e destes para distribuidores menores até o consumidor final, cada uma com um dono diferente, todas conversando entre si pela tecnologia de peering, espécie de tradução automática para uma linguagem técnica geral, tudo sob a lei sagrada, à qual todos juravam obediência, da “neutralidade da rede” segundo a qual era livre o ingresso de qualquer conteúdo em qualquer ponto do sistema e a ordem de entrega deveria corresponder à ordem de entrada.
Com as CDN’s tornaram-se possíveis as Netflix … que passaram a requerer muito mais CDN’s. E o cacife passou a ser proibitivo. Lá se foram as redes menores … lá se vai, agora, Hollywood inteira, depois do resto da industria do entretenimento. Hoje tres ou quatro gigantes são donos de todos os artistas. Pautam o comportamento do universo. Na torrente dos bilhões foi-se a net neutrality. Agora paga-se pela prioridade de chegada de cada bitenfiado no sistema. Quem paga menos chega por último ou nem chega. A própria rede, que “disrompeu” a ordem anterior em nome da libertação do povo e da arte da ditadura da propriedade privada é agora uma propriedade privada da escassíssima confraria do trilhão cercada de terra arrasada em todo o entorno competitivo.
E o mundo vê a novela que o Brasil já vira. Sillicon Valley compra o perdão de seus pecados declarando-se “de esquerda” e facilitando o “aparelhamento” do sistema lá de dentro dos seus mega-iates no grand monde. E o mais recente engodo é a demonização da fofoca, que predomina na nova praça pública virtual como sempre predominou em todas as praças públicas que já existiram. As fake news são o mais novo pretexto para matar a democracia em nome da salvação da democracia. É com elas que justifica-se a censura e reforça-se a ditadura comportamental enquanto os trilionários da rede compõem-se, nos bastidores, com as chinas da vida trocando tecnologia para a servidão por mais audiência e dinheiro.
E o pior é que estão por nascer os próximos shermans e theodore roosevelts, paladinos da luta antitruste que resgataram os Estados Unidos dessa mesma armadilha há pouco mais de 100 anos, e que na próxima edição terão de ter uma envergadura planetária.
Desistir do clima não é opção
Sim, a questão colocada nos dias atuais pelo conhecido pesquisador alemão do clima Hans Joachim Schellnhuber é justificada: será que essas importantes conferências climáticas com milhares de participantes e inevitáveis negociações noturnas no final ainda servem realmente para resolver o problema climático global? Especialmente se o resultado só pode ser compreendido por especialistas e as emissões de gases do efeito estufa desde o início dos anos 1990 – desde o início das reuniões climáticas – não pararam de aumentar?
A contradição entre as advertências dramáticas dos cientistas e o que os políticos empreendem contra as mudanças climáticas é de tirar o fôlego de qualquer um. Em muitos países exploradores de carvão, incluindo a Alemanha, as energias renováveis perfazem, no entanto, uma elevada parcela da produção de eletricidade.
Mas ainda assim o carvão é inigualavelmente barato, desde que os gases do efeito estufa não sejam taxados suficientemente. E os países árabes, os EUA, a Rússia, os europeus orientais e, infelizmente, também a Alemanha estão reagindo contra esses impostos, mesmo contra uma desistência politicamente ordenada do carvão e do petróleo.
E isso, embora todos os especialistas saibam: os dias de carvão estão contados, novos investimentos dificilmente são rentáveis. Mas o que conta é o aqui e agora. E em todos os lugares as emissões de automóveis, aviões e navios aumentam. E é por isso que pouco progresso está sendo feito atualmente na proteção climática.
Então essas reuniões enormes servem para alguma coisa? É melhor consultar os delegados das Ilhas Marshall, Fiji e de muitos países africanos. Só ali, nas conferências climáticas da ONU, eles têm um fórum para serem ouvidos quando falam sobre a ameaça à sua existência.
E, em Katowice, foi acertado: até 2020, os Estados querem arrecadar 100 bilhões por ano para proteção climática – todos juntos. Dessa quantia, 80 bilhões já foram coletados. Esse dinheiro não existiria sem as reuniões do clima.
E as reuniões sobre o clima são um dos poucos fóruns que restaram para a tentativa multilateral de resolver problemas globais, sob a égide das Nações Unidas. Essa é uma das razões pelas quais o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu repetidamente aos delegados que chegassem a um acordo em Katowice.
Talvez apenas em algumas décadas se possa ver claramente o que as agonizantes e tediosas reuniões climáticas realmente trouxeram. As mudanças climáticas são um problema global e ele só pode ser resolvido em conjunto. Isso é dito frequentemente, mas é simplesmente verdade.
Em 2020, o Acordo de Paris entra em vigor. Ele é o único instrumento que resta à proteção climática internacional. E é por isso que as conferências gigantescas devem continuar, apesar de todas as suas deficiências.
Jens Thurau
A contradição entre as advertências dramáticas dos cientistas e o que os políticos empreendem contra as mudanças climáticas é de tirar o fôlego de qualquer um. Em muitos países exploradores de carvão, incluindo a Alemanha, as energias renováveis perfazem, no entanto, uma elevada parcela da produção de eletricidade.
Mas ainda assim o carvão é inigualavelmente barato, desde que os gases do efeito estufa não sejam taxados suficientemente. E os países árabes, os EUA, a Rússia, os europeus orientais e, infelizmente, também a Alemanha estão reagindo contra esses impostos, mesmo contra uma desistência politicamente ordenada do carvão e do petróleo.
E isso, embora todos os especialistas saibam: os dias de carvão estão contados, novos investimentos dificilmente são rentáveis. Mas o que conta é o aqui e agora. E em todos os lugares as emissões de automóveis, aviões e navios aumentam. E é por isso que pouco progresso está sendo feito atualmente na proteção climática.
Então essas reuniões enormes servem para alguma coisa? É melhor consultar os delegados das Ilhas Marshall, Fiji e de muitos países africanos. Só ali, nas conferências climáticas da ONU, eles têm um fórum para serem ouvidos quando falam sobre a ameaça à sua existência.
E, em Katowice, foi acertado: até 2020, os Estados querem arrecadar 100 bilhões por ano para proteção climática – todos juntos. Dessa quantia, 80 bilhões já foram coletados. Esse dinheiro não existiria sem as reuniões do clima.
E as reuniões sobre o clima são um dos poucos fóruns que restaram para a tentativa multilateral de resolver problemas globais, sob a égide das Nações Unidas. Essa é uma das razões pelas quais o secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu repetidamente aos delegados que chegassem a um acordo em Katowice.
Talvez apenas em algumas décadas se possa ver claramente o que as agonizantes e tediosas reuniões climáticas realmente trouxeram. As mudanças climáticas são um problema global e ele só pode ser resolvido em conjunto. Isso é dito frequentemente, mas é simplesmente verdade.
Em 2020, o Acordo de Paris entra em vigor. Ele é o único instrumento que resta à proteção climática internacional. E é por isso que as conferências gigantescas devem continuar, apesar de todas as suas deficiências.
Jens Thurau
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