sábado, 30 de abril de 2022

Trabalhadores do Brasil!

 


Eu não disse?

Não acredito nos argumentos viciados que começam com uma frase irritante, a afirmar a superioridade sobre o outro: “Eu não disse?”, diz o interlocutor infeliz que, embora em maus lençóis, ri do fracasso de quem não previu para onde estávamos indo. O que estão querendo nos dizer com um sorriso de satisfação, embora seja o sorriso do infeliz derrotado e humilhado, é que o outro é um imbecil que não percebeu o valor da intervenção feita no passado. Uma intervenção decisiva que, uma vez ouvida, nos salvaria da merda em que hoje rolamos.

Claro que não é isso o que desejo impor aqui. Mas não posso deixar de lembrar o que escrevi nessa mesma coluna na segunda metade de outubro de 2018, às vésperas do segundo turno de nossa última eleição para presidente.

“Nesses dias antes do voto decisivo”, eu escrevia, “não quero fazer proselitismo. Já o fiz no primeiro turno e meu candidato favorito ficou atrás dos dois que disputam essa final. Um montado na sela de velho cavalo que já desapontou tanto o povo que o aplaudia; outro nos assustando, a prometer o demônio armado para conter nossos desejos inocentes”.

Agora estamos no rumo da eleição mais tensa e histérica do Brasil moderno. Não é que todas as outras tenham sido mais saudáveis. Mas essa pode se tornar o clímax de todos os erros que cometemos desde o Império, quando o imperador bonachão deixava que os dois partidos, o Liberal e o Conservador, ficassem dando golpes um no outro. Ou igual à primeira eleição de Jair Bolsonaro, que se tornou presidente da República mesmo com suas ideias assustadoras (que ele aliás nunca escondeu).

Não sei como, pois o Brasil não é assim, elegemos um cara que afirmava sem disfarce que o voto não ia mudar nada no país, que tínhamos que fazer uma guerra civil, que era preciso fuzilar umas 30 mil pessoas, que a ditadura militar tinha errado prendendo gente em vez de matar logo. Que seu herói pessoal, o homem de governo que mais admirava, era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o responsável pelas mais terríveis torturas nos porões do regime. Nós o elegemos rindo, como se o país estivesse acabando; mas nós não temos o direito de desistir do Brasil.

Os defensores dessas ideias foram todos para o governo de Jair Bolsonaro, absorvendo e espalhando abertamente seus conceitos. Gente protegida por pensadores oficiais, como Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, um preto que dizia sempre que “a escravidão foi benéfica para os descendentes dos afro-brasileiros”. Ou o deputado Eduardo Bolsonaro, que se divertiu à beça com a tortura imposta à jornalista Miriam Leitão, então grávida, declarando às gargalhadas que tinha pena da cobra com a qual os torturadores a fizeram conviver no escuro de sua cela. Ou ainda o próprio presidente: “Somos um dos países no mundo que mais protege o meio ambiente”. E ainda nos advertia contra a vacina da Covid, se a tomássemos “podíamos virar jacaré”.

Entre a Política e a Justiça, entre o desejo de uma parte da população (mesmo que eventualmente majoritária) e as regras que mantêm o país num regime de liberdade democrática (mesmo que nem sempre claras e suficientes), o que fazer? O populismo caudilhista já nos causou muitos prejuízos, agora e no passado. Não podemos aceitá-lo como uma forma de atraso civilizatório a que estamos condenados. Se precisamos mesmo de um “salvador da pátria” autocrático e cruel, é porque a nação não tem e não merece ter salvação. Só a nós mesmos cabe a resposta a esse impasse. O resto é soprar contra o vento da democracia, o único regime político que nos garante uma existência civilizada.

 Cacá Dieges 

O dinheiro compra tudo?

Entre 2014 e 2018, enquanto a família média americana pagava 14% em impostos federais, a taxa de imposto paga por Musk não chegou aos 4%. E este é um dos piores sinais que se pode dar num mundo cada vez mais desigual, em que cresce o sentimento de revolta entre as pessoas que já perceberam que os seus filhos serão os primeiros, em várias gerações, a não ter melhores condições de vida do que os pais. Por isso, cada vez mais vozes – até de políticos moderados – pedem a introdução de novos impostos para os super-ricos. Até lá, os milhões astronómicos vão comprando tudo – até o sentimento de impunidade de que gozam os novos “senhores do mundo”

Só faltam os dragões

Imagine um filme: o herói consegue fugir com a família de uma pandemia terrível, a qual, tendo sido deflagrada na cidade deles, está se propagando agora por todo o planeta. Vê-se um carro cruzando uma estrada, numa paisagem rural. Subitamente, surge um tornado, cortando a estrada. O nosso herói imobiliza a viatura. Hesita. Dá marcha à ré. Porém, rugindo mais do que o tornado, emerge um dinossauro na outra ponta da estrada. A esta altura os espectadores levantam-se, furiosos:

— Pô, cara, um dinossauro não! Assim também já é demais!

E é então que o céu se enche de dragões!

Nos últimos meses venho me sentindo um pouco como os espectadores revoltados de que falo atrás: primeiro uma pandemia, seguida de ciclones, tempestades, desabamentos, o diabo a quatro — e agora a ameaça de uma nova guerra mundial e de um apocalipse nuclear?! Assim também já é demais!


Catástrofes atrás de catástrofes, umas atropelando as outras, ameaçam a credibilidade do enredo. Num filme de pandemia não dá para colocar um terremoto. Numa invasão de extraterrestres não entram dinossauros. Se há um meteoro prestes a destruir a Terra, não faz o menor sentido acrescentar um apocalipse zumbi. Juntar Bolsonaro, milicianos, garimpeiros assassinos, pandemia, aquecimento global, Putin, eventos climáticos extremos, e ainda uma guerra nuclear é brincar com a paciência dos viventes.

Vamos com calma, senhor roteirista! Um desastre de cada vez!

Após tantos meses de terror, já todos percebemos quais são os grandes temas que o roteirista pretende deixar para reflexão:

1) Em primeiro lugar, está nos alertando para a urgência de repensar a nossa relação com o planeta. Insistir em manter uma economia predadora, com desmatamento selvagem, agricultura intensiva e a destruição sistemática de ecossistemas, conduzirá, mais cedo ou mais tarde, à extinção da Humanidade. A vida prosseguirá, é claro, mas acho que sem nós não terá tanta graça.

2) Democracias, ao contrário do que gostamos de imaginar, são sistemas frágeis, facilmente corrompidos a partir de dentro. Exigem cuidados constantes e mecanismos de vigilância, adaptação e renovação.

3) Cada um de nós tem o dever de lutar pelo desmantelamento completo de todos os arsenais nucleares. Enquanto isso não acontecer, não conseguiremos dormir em paz. Se nenhuma democracia é segura (e nenhuma é), nunca poderemos ter a certeza de que essas armas não venham a ser um dia utilizadas por déspotas loucos.

4) O que podemos fazer diante da fragilidade da moderna civilização, além de cumprir a nossa parte no processo de resistência contra a guerra e a destruição ambiental, é tentar viver intensamente cada instante: abrace seus filhos, cozinhe para seu amor, ria com seus amigos, corra na praia com seu cachorro.

Dito isto, imploro ao roteirista que nos deixe retomar o fôlego. Alguns minutos de sossego, por favor. Que venham os dragões, os vulcões, os furacões, desde que possamos, entretanto, estender uma rede no quintal e descansar um pouco. Muito obrigado.

Pensamento do Dia

 

Oleksiy Kustovsky (Ucrânia)

Carnaval, guerra e tortura

A consciência da nossa finitude certamente explica a atração pelo permanente. Por isso os que pregam certezas atraem tanto. Eles nos impingem que existe mesmo a lâmpada de Aladim e o próprio Aladim. Coisas permanentes como o Everest, ou incorruptíveis como o ouro, compensam nossa impotência diante da morte e do esquecimento. Eventos ou contextos extraordinários — carnaval, guerra, tortura — reavivam identidades que não são inatas, mas internalizadas por nossas línguas e culturas.

No entanto sabemos que injustiças e erros são cometidos e descobertos — a menos que se acredite numa sociedade perfeita — em todo lugar. A subordinação da mulher, a crueldade da escravidão, o machismo feminicida, o preconceito estrutural com os velhos, os lucros promovidos pelo capital contra o trabalho, o tabu de escolher sexualidades, nacionalidades e etnias, de contrariar costumes e, por fim, a abjeta tortura praticada no regime militar revelaram o lado perverso do nosso “bom-mocismo”, graças ao historiador Carlos Fico e à jornalista Míriam Leitão.

Hoje, a tortura, além de vergonha e desonra, é uma abominação jurídica afim aos totalitarismos, mas ela tem uma sólida história. Na Contrarreforma (séculos XVI e XVII), torturar foi legal contra hereges. Fora do nosso lado, era válido extrair confissões pela tortura, que despe de humanidade sobretudo o torturador.

Vivemos dias peculiares. Uma Semana Santa embrulhada numa Quaresma e um carnaval de desfile; a brutal agressão de uma super Rússia contra um ex-aliado num mundo cuja tecnologia dificulta segredos. E a “novidade” de que tivemos tortura no regime militar ao lado de mais outra novidade: mais crise bolsonarista.


O problema dessas coisas fora de hora e lugar é como encaixá-las como parte de nosso passado. Um passado escravocrata reprimido que volta tão forte quanto o populismo e a corrupção. Esquecidos dos pelourinhos, redefinimos o carnaval e engendramos um sistema jurídico que solta corruptos e esquece inocentes.

O Brasil, como dizia Tom Jobim, não é para principiantes...

Experimentamos todos os regimes políticos! De catequistas católicos e da fidalguia colonial, passamos a Reino graças à fuga de Dom João VI para o Rio de Janeiro. O único monarca que fugiu de seu reino para colocar, como diz brilhantemente o historiador social Patrick Wilcken, todo “um império à deriva”.

Tal movimento criou uma autovisão insegura e ambígua daquilo que veio a ser o Brasil. Debaixo do Equador, tudo seria possível, como diz Chico Buarque de Holanda, repetindo seu pai historiador, Sérgio. Um espaço onde a virtude fica sempre entre o sim e o não. Existem leis regulando tudo menos um elo de amizade ou parentesco. Temos tudo, menos o esforço para honrar uma igualdade republicana que chegou aos trambolhões, se é que li com cuidado José Murilo de Carvalho.

No meu trabalho, falo em éticas dúplices (da casa e da rua) — do pessoal e do impessoal —cuja impiedade tem seu limite na tortura, no uso particular dos recursos públicos e num absolutismo que permanentemente ronda o cargo de presidente da República.

Com tantas experiências profundas, entre as quais a maciça escravidão negra africana foi a que mais consagrou um estilo de vida aristocrático, temos, até hoje, o dilema de honrar a igualdade e a democracia, personalizando nossos supostos inimigos. Quando a tortura reaparece, desmente que somos somente o belo e bondoso “país tropical, abençoado por Deus”, e há tenebroso vislumbre dos pelourinhos, relembrando nossa imensa dívida para com um regime democrático decente. Porque perfeito, nenhum há se ser, como Vico e Herder afirmavam.

Miséria eterna, revolta eterna

Convencido de que a miséria está intimamente ligada à existência, não posso aderir a nenhuma doutrina humanitária. Elas me parecem, em sua totalidade, igualmente ilusórias e quiméricas. O próprio silêncio me parece um grito. Os animais - que vivem de seus próprios esforços - não conhecem a miséria, pois eles ignoram a hierarquia e a exploração. Este fenômeno somente aparece junto ao homem, o único que submeteu o seu igual; e somente o homem é capaz de tanto desprezo por si.

Toda a caridade do mundo não faz nada mais do que destacar a miséria, e rendê-la ainda mais revoltante do que a angústia absoluta. Frente à miséria, assim como frente às ruínas, nós deploramos uma ausência de humanidade, nós lamentamos que os homens não mudem radicalmente o que está em seu poder de mudança. Este sentimento mistura-se ao da eternidade da miséria, de seu caráter inelutável. Mesmo sabendo que os homens poderiam suprimir a miséria, nós estamos conscientes da sua permanência e acabamos por provar uma inabitual e amarga inquietude, um estado de alma perturbado e paradoxal, no qual o homem aparece em toda a sua inconsistência e pequenez. A miséria objetiva da vida social é, com efeito, apenas o pálido reflexo de uma miséria interior. E, só de pensar nisso, perco a vontade de viver. Eu deveria lançar minha pluma para chegar a um casebre em ruínas. Um desespero mortal me toma assim que evoco a terrível miséria do homem, sua decrepitude e gangrena. Em vez de elaborar teorias e de se apaixonar pelas ideologias, este animal racional faria melhor oferecendo tudo ao outro, até sua camisa - gesto de compreensão e de comunhão. A presença da miséria aqui embaixo compromete o homem mais do que tudo e faz compreender que este animal megalomaníaco é devotado a um fim catastrófico. Frente à miséria, tenho vergonha até da existência da música. A injustiça constitui a essência da vida social. Como aderir, sabendo disso, a qualquer doutrina?

A miséria destrói tudo na vida; rende-a infecciosa, hedionda e espectral. Existe a palidez aristocrática e a palidez da miséria: a primeira vem de um refinamento, a segunda de uma mumificação. Pois a miséria faz de todos um fantasma, ela cria sombras da vida e aparições estranhas, formas crepusculares como se saídas de um incêndio cósmico. Não há o menor traço de purificação em suas convulsões; somente o ódio, o desgosto e o azedume da carne. A miséria não concebe nada mais do que a doença numa alma inocente e angelical - e sua humildade não é imaculada; ela é venenosa, cruel e vingativa, e o compromisso ao que ela conduz esconde chagas e sofrimentos aguçados.

Não quero uma revolta relativa contra a injustiça. Admito apenas a revolta eterna, pois eterna é a miséria da humanidade.
Emil Cioran, "Nos cumes do desespero"

Vem, outubro!

Desde quando começamos a usar máscaras, noto que muita gente fala sozinha. Alguns já falavam antes, outros, até gesticulavam para enfatizar os argumentos, mas agora é fato comum, porque a boca oculta oferece a ilusão de privacidade.

Não são falas alegres ou uma simples cantoria. Em geral, os mascarados emitem reclamações ou, pior, vociferam agressões contra algum incauto destinatário. É assim nas ruas, dentro dos ônibus, nos corredores dos supermercados, nos balcões de serviço… Uma multidão de valentões que lembram aqueles cães que latem ameaçadoramente atrás da cerca, mas fogem com o rabo entre as pernas assim que a vítima se aproxima.


Entendo que paira sobre nossas cabeças uma nuvem de mau humor, diante das perspectivas atuais. “Está tudo tão caro!”, queixa-se uma voz de dentro da máscara, diante das gôndolas do mercado. “Que gente mole!”, reclama outra, na entrada do ônibus demorado, em fila para girar a catraca. “Nossa, toda hora é isso!”, protesta uma terceira, abordada por um pedinte.

Agressões sem troco (felizmente), porque os alvos, em geral, desconhecem o que se pensa deles. Será que tal animosidade alivia o desespero de quem não vê saída a curto prazo? “O tempo está passando tão depressa! Já é quase maio!”, me diz uma amiga, lamentando que nos encontremos pouco.

Penso com meus botões que ainda bem que os meses avançam, porque não vejo a hora de outubro chegar e, com ele, as esperadas eleições. Algo precisa mudar, há de haver algo novo sob o sol, precisamos respirar outros ares, recuperar a esperança.

Não sei até quando continuarei usando máscara. Não a descarto por enquanto, nem mesmo andando numa rua deserta. Até falo por trás dela, também, quando sem querer deixo cair algo das mãos ou no meio do caminho vejo que esqueci em casa algo importante. Queixas que faria mesmo sem mordaça, porque mora uma perfeccionista aqui dentro que não me dá sossego.

Tenhamos paciência, sempre que possível. Dias melhores virão, mesmo que os ranzinzas insistam em reclamar de tudo e todos, com ou sem razão, com ou sem máscaras. Em outubro será Primavera.
Madô Martins