sábado, 7 de maio de 2022

Pensamento do Dia

 


Forja

E viva o Governo: deu
dinheiro para montar
a forja.
Que faz a forja? Espingardas
e vende para o governo.
Os soldados de espingarda
foram prender criminoso
foram fazer eleição
foram caçar passarinho
foram dar tiros a esmo
e viva o governo e viva
nossa indústria matadeira.
 
Carlos Drummond de Andrade, "Boitempo"

Rei merovíngio

Investigado no inquérito relativo à difusão de fake news, o deputado Daniel Silveira, em abril de 2020, incitou a população a fazer cerco e a promover a invasão das sedes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional. Em novembro de 2020, fez novas ameaças e instigou o povo a entrar no STF, “agarrar o Alexandre de Moraes pelo colarinho, sacudir aquela cabeça de ovo e jogar dentro de uma lixeira”. No mês seguinte, chamou os ministros do STF de marginais, “cambada de imbecil”, desafiando-os a prendê-lo e vaticinando que, se continuassem a julgar como o faziam, o STF e a Justiça Eleitoral não mais iriam existir, “porque nós não permitiremos”.

Blasonando ser inviolável civil e penalmente pelas suas opiniões, Silveira prometeu acabar com “ministros canalhas”, sendo este o seu papel como parlamentar.

Não há, nessas verbalizações, qualquer manifestação de pensamento, pois inexiste raciocínio mínimo a presidir o discurso. Este se limita a uma enxurrada de ameaças graves e de ofensas grosseiras, chulas.

Ao instigar a invasão do Supremo, com violação da integridade física dos ministros, visou o deputado, mediante grave ameaça, a impedir o funcionamento livre da instituição. Tipifica-se, portanto, um crime contra o Estado Democrático de Direito, previsto no Código Penal (art. 359 L), consistente em “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.


Ora, o direito de livre expressão do pensamento deve ser o mais amplo, mas não é admissível que deixe o campo da crítica para restar simples e unicamente na esfera da ofensa e da ameaça. A Constituição federal, no art. 220, consagra a ampla liberdade de manifestação, mas respeitando valores consagrados pela própria Constituição, como a ordem constitucional e o Estado Democrático. A ofensa a esses valores se qualifica, no art. 5.º, XLIV, como crime inafiançável e imprescritível.

A nossa democracia é combativa, defende a si mesma, pois não admite, ingenuamente, que se possa valer da liberdade para destruir a liberdade. Cabe, em nome da tolerância, proclamar o direito de não ser tolerante com o intolerante, como destacam Alaor Leite e Adriano Teixeira em parecer à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre segurança nacional.

Assim é em países democráticos. O art. 18 da Constituição da Alemanha determina perder direitos fundamentais quem, ao combater a ordem constitucional, abusar da liberdade de expressar a opinião, particularmente da liberdade de imprensa. O Código Penal alemão (art. 90b), na linha do estatuído na Constituição, tipifica como crime divulgar difamação a alguma instituição da Federação ou se empenhar em tentativas contra a existência da República ou contra os princípios da Constituição.

No Código Penal italiano, o art. 342 estatui ser crime ofender o prestígio de um corpo judiciário. Em Portugal, no art. 325 do Código Penal, tipifica-se como crime tentar, por meio de violência ou grave ameaça, alterar o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido. E, no art. 333, estatui-se ser crime constranger o livre exercício das funções de órgão de soberania.

Como se vê, a democracia protege-se a si mesma, limitando a liberdade de expressão quando esta se transforma abusivamente em ataque ao Estado Democrático, às instituições constitucionais.

Foi isso que fez o Supremo Tribunal Federal ao condenar o deputado Daniel Silveira, personificação da força bruta, por seus ataques à instituição e aos seus ministros, colocando em perigo a ordem constitucional. Só um exercício de má-fé pode transformar uma ofensa à República em uso “legítimo” da liberdade de expressão.

Mas o presidente da República se arvorou em juiz do Supremo Tribunal Federal. Antes mesmo da publicação da decisão, concedeu graça ao condenado, considerando que houvera apenas “uso da liberdade de expressão”, pretendendo, assim, instituir-se como encarnação única do Poder Judiciário.

Bolsonaro, como um rei merovíngio, monarca dos francos no século VI (Ellul, Histoire des institutions, p. 683), se atribuiu poder pessoal para ditar a justiça no seu exclusivo interesse, como se revestido de autoridade soberana.

O presidente, todo-poderoso, contestou a decisão da Justiça, a alterou, agindo como se Judiciário fosse, e declarou solenemente a constitucionalidade do próprio ato de graça.

Ao considerar inocente o brutamontes, o presidente informou à Nação que atingir com ameaças graves o Supremo Tribunal Federal não é crime, razão pela qual, como salienta parecer da OAB da lavra de Lenio Streck, tornou próprio o constrangimento imposto ao Judiciário.

Constitui crime de responsabilidade (art. 85 da Constituição) atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário, como se deu com a concessão da graça modificativa da decisão judicial. O decreto de graça, mais que inconstitucional, encerra crime contra a República, o que se repete com a proposta de apuração paralela das eleições pelas Forças Armadas. São ensaios para o golpe.

Aí vem a democracia iliberal

Permanece em Brasília o clima de anomalia institucional entre os três poderes da República. O “affair Daniel Silveira” continua rendendo. Os diálogos do presidente do STF, Luiz Fux, com o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, e depois com o ministro da Defesa General Paulo Sérgio Oliveira, parecem ter servido para gerar uma espécie de pausa para meditação. Mas não para um freio de arrumação na anomalia e um ajuste entre Poderes.

A nota do ministro da Defesa – ao falar em “permanente estado de prontidão das Forças Armadas para o cumprimento das suas missões constitucionais” -, carrega nas entrelinhas uma intenção da volta do exercício, pelas Forças Armadas, do poder moderador. Portanto, a anomalia institucional é latente.

O mercado financeiro, o empresariado e a população em geral torcem para a cacofonia política em Brasília não atrapalhar mais ainda o país e a economia. Mas a escalada dessa crise aponta para o avanço da democracia iliberal e de um círculo vicioso de fortalecimento de instituições extrativistas e autoritárias. Com mais concentração de poder oligárquico e autoritário e mais extrativismo econômico excludente.


Tudo leva jeito de uma reprise, aqui, do roteiro político-institucional traçado por Daron Acemoglu e James Robinson em “Why Nations Fail” (“Por que as nações fracassam”, em tradução livre). Um livro seminal de 2012 que desenvolveu, a partir de extensa análise histórica e factual, a teoria da importância das instituições políticas no desenvolvimento das nações.


As instituições políticas pluralistas e democráticas seriam inclusivas e tenderiam ao círculo virtuoso da prosperidade. Já as instituições políticas autoritárias e oligárquicas seriam extrativistas e tenderiam ao círculo vicioso do atraso ou do crescimento não sustentável.

Neste contexto histórico-factual, o “affair Daniel Silveira” é parte de uma mobilização sócio política sectária para transformar as instituições inclusivas da Constituição brasileira de 1988 em instituições extrativistas. Atacar a democracia e fortalecer o autoritarismo, sob o império da lei de ferro da oligarquia.

Com o auxílio do poder explicativo da teoria institucional de Acemoglu e Robinson, podemos inferir que – para além da reação do STF e da reposição, ou não, do “equilíbrio institucional” -, a defesa da democracia é levada para o centro do debate político, aqui e agora.

Eis aí o busílis das eleições de 2022. O que está em jogo é a escolha entre instituições políticas e econômicas inclusivas ou instituições políticas e econômicas extrativas. Nesse sentido, o episódio Daniel Silveira é, ao mesmo tempo, ponta de iceberg e ponto de inflexão. A escolha político-institucional se sobrepõe a todas as outras, simplesmente porque ela influencia todas as outras – inclusive a principal no momento, a questão econômica.

Parênteses. Não custa lembrar que Jair Bolsonaro é apenas a vitrine do imaginário conservador brasileiro. De 2013 para cá, este imaginário, digamos, saiu do armário. Desde 2014, Bolsonaro captou um novo espírito de época (zeitgeist) e iniciou um efetivo trabalho de dialogar com este zeitgeist através das redes sociais. Teve sucesso até agora e vai continuar.

O país está praticamente dividido ao meio. O ponto de inflexão gerado pelo episódio Daniel Siveira aguça um sentido plebiscitário na eleição de 2022. Fernando Abrucio pontuou: “Agora está em jogo, principalmente, a avaliação do legado bolsonarista”.

É este legado negativo que Bolsonaro procurar esconder, com a fabricação de polêmicas e polarizações que criam uma cortina de fumaça sobre o caminhão de problemas reais gerados pelo seu legado. Atuando no plano simbólico da Política, ele vai passando o trator da democracia iliberal.

A eterna luta do mal contra o mal

Lula e Bolsonaro em um ringue de box, de calções largos e camisetas, com os capacetes protetores lhes cobrindo a cabeça e os ouvidos. Em vez de luvas, microfones sem fio. Soa o gongo. Começam a trocar jabs de mentiras e bravatas, esquivas de culpas e responsabilidades, cruzados de ofensas e palavrões, diretos abaixo da cintura moral, uppercuts na ética, na democracia e na Constituição. O som estourando nas caixas da arena abarrotada. Metade do público delira, metade vaia. Metade ri, metade chora de raiva. Os combatentes não se ouvem nem ouvem o público e lutam até cair sem voz, sujos de sangue, suor e urina, na lona verde e amarela do Brasil.

É tudo fantasia, metáfora, imaginação, mas às vezes a ficção é a melhor, ou única forma de expressar sentimentos, comentários e reflexões sobre a realidade.

Tenho muitos amigos lulistas, inteligentes, informados, honestos, entendo seus motivos e respeito suas escolhas, reconheço as qualidades de Lula. E os defeitos. Nunca brigaremos por causa disso. Com bolsonaristas, não há diálogo, a menos que seja algum conhecido, seguidor nas redes ou companheiro de trabalho enrustido e discreto.


Entre meus lulistas de estimação, há alguns petistas raiz, outros irredutíveis, e muitos que se desiludiram com o partido, mas veem em Lula a única esperança de luz nas trevas. Porque o PT se desgastou muito mais do que Lula, que viveu a degradação judicial pública, o martírio da prisão e o crédito de vitima da injustiça. Mas o partido ficou antigo, não produziu novas ideias, não formou novas lideranças, à exceção de Fernando Haddad, seu melhor quadro, um possível grande presidente moderno, preparado e equilibrado.

Sim, o PT faz o que Lula quiser. O problema é quando Lula faz o que o PT quer. Nova matriz econômica. Descontrole fiscal. Controle da mídia. Aparelhamento com sindicalistas. Campeões nacionais do BNDES. Assalto à Petrobras. Leniência com a corrupção “pela causa”. E outros erros, nunca reconhecidos, e, portanto, repetíveis. Se Lula fosse respaldado por uma frente democrática multipartidária seria outra conversa, mas haverá tempo para isto? Ou haverá isto? Sonhar não custa nada.

Bolsonaro é abominável, mas o bolsonarismo é muito pior, assim como o lulismo é muito pior do que Lula, se é que me entendem. São fanáticos que obedecem cegamente os comandos de seu líder, mestre e pastor, que aumentam e mentem suas qualidades e conquistas e desqualificam qualquer crítica, que têm seu habitat natural no Brasil, andam em bandos, se alimentam de falsas narrativas e quando provocados podem se tornar violentos. Todos se acham na luta do bem contra o mal. Ou do mal contra o mal?