quarta-feira, 22 de junho de 2016

Pasárgada

Em 1968 ou em 1969 fiz o curso “Urbanização e utopia”. Éramos quase todos estrangeiros naquela Harvard onde a palavra estrangeiro não existia, pois, como me disse um Thomas Skidmore — saudoso e recentemente falecido — “somos todos estrangeiros diante do conhecimento”.

Richard Moneygrand ministrou esse curso, definido como uma reflexão sobre os dilemas do individualismo moderno e as utopias nascidas dessa extremada valorização da parte sobre o todo. De um sistema no qual os elos entre homens e as coisas são mais importantes do que as relações dos homens entre si.
A democracia não resolve,
ela é uma tentativa de resolução
Lemos o clássico de Lewis Mumford, revisamos Platão, Thomas More e Fourier. Mas não esquecemos o Paraíso sem deixar de lado H. G. Wells, Kakfa, Aldous Huxley, Burgess, Orwell e os modernos arquitetos, os quais, como bons desenhistas, tentavam “solucionar” os erros de um sistema a ser redimido.

Fomos solicitados a falar das utopias de nossas sociedades. Um africano escreveu sobre as ideias de Kwame Nkrumah; um russo, sobre as utopias soviéticas; um francês, que sabia mais do que todos nós, abordou os escritos de Voltaire e Rousseau. Juan Porras y Porras, um mexicano aristocrático, exortou o que seria uma utopia caudilhesca para mostrar como os sistemas sociais fundados em elos pessoais seriam funcionais, caso não fossem atropelados pela modernidade do individualismo igualitário acasalado com a dominação burocrático-legal.

Coube, porém, a um par de colegas americanos a apresentação mais radical. Para eles, a “República” era a desmistificação das utopias. O humano seria movimentado por um equilíbrio instável entre crises de carência e abundância. A história era uma inútil busca terrena das idealizações que agravavam a sensação de erro (e da culpa) porque condicionavam a vida real (sempre contraditória) a códigos transcendentais feitos no céu, que nos tornavam devedores. As repúblicas democráticas e igualitárias voltadas para o mundo enfrentavam crises permanentes todos os dias. Nelas, tudo era crise, e a crise — frisavam — não era exceção, mas a realidade de suas perpétuas construções.

Jamais me esqueci deste trabalho que tenho plagiado ao longo de minha carreira. Os colegas americanos deram-me, num trabalho de semestre, uma diretriz para a vida.


Despertaram minha incredulidade nos sistemas fechados e estáticos. Só fui duvidar desta dúvida quando, num antigo estado de Goiás, tentei compreender sociologicamente os chamados “índios apinayé” e comecei a admirar esses jê-timbira com o seu saudável e explícito dualismo (“tudo tem o seu contrário" — o mundo se divide em gente do Sol e de Lua), suas associações e, acima de tudo, sua moralidade sem culpa e epifanias. Para eles, tudo o que nos afeta (acidentes, doenças, desonestidade, ressentimento etc...) foi “dado” pelos demiurgos, de modo que não há o que pagar ou compensar, pois não existe um grupo humano que não seja defeituoso ou torto por natureza. Sabem que somos finitos e falam de uma aldeia dos mortos, mas não postulam nenhuma imortalidade, pois até mesmo as almas — após uma longa, mas insossa vida no mundo dos mortos — morrem. Deste modo, não existem perseguidos nem tenebrosos perseguidores, esses avatares da discriminação e do autoritarismo.

Hoje, estou certo de que o humano é defeituoso, carente e encrencado. As utopias são ingênuas compensações inventadas por uma Europa para sempre enredada num realismo cruel e numa redenção impossível. A crise era a nossa marca, e a República jamais seria um sistema estático, mas um modo de vida a ser permanentemente corrigido. Ela, entretanto, só poderia funcionar com bom senso, amparada por uma ética de honestidade. A democracia — se ainda me lembro da conclusão dos meus jovens colegas — não resolve, ela é uma tentativa de resolução.

Findo o curso, eu estava mais para Orwell do que Platão. Foi quando eu me lembrei do Brasil e do sempre lúcido e antiutópico Bandeira. O Manuel que, na sua arrebatadora simplicidade, abafa a fanfarronice ideológica corrente, sussurrava uma utopia tão real quanto profética:

“Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei.”

A esperança é que os “reis” segurem esses amigos que confundem parentesco com papéis públicos, andam de bicicleta, montam em burro brabo e continuam convencidos de que ainda podem venturosamente subir em pau de sebo!

Roberto DaMatta 

Falta o Brasil

Na véspera de sediar o maior espetáculo da Terra, o Brasil se transformou em um país de chacotas no exterior. Depois de 30 anos de democracia, estabilidade monetária e crescimento econômico continuamos como um dos mais desiguais, mais deseducados e mais violentos países do mundo. Também passamos a nos mostrar como um dos mais corruptos, descuidados e ridículos. A Lava-Jato mostra todos os dias diálogos e valores astronômicos de deboche e de roubalheira; os governos de estados e municípios estão quebrados financeiramente (ao ponto que, às véspera das Olimpíadas, o Rio se declara em estado de calamidade); a saúde pública caótica com enfermidades assustadoras, do tipo microcefalia, por causa da falta de saneamento; a economia em recessão, empobrecendo a população pela queda de renda e provocando a tragédia do desemprego. A sociedade dividida politicamente em grupos sectariamente opostos; a população desiludida com seus líderes políticos.


Temos o ridículo do policial que prendia os corruptos sendo preso por corrupção, e ainda mais grave assisti-lo condenado, mas trabalhando como policial, usando tornozeleiras eletrônicas durante o expediente. Temos uma crise política que desmoraliza os poderes Executivo e Legislativo; um processo de impeachment que nos deixa com dois presidentes; e as ameaças legais que nos deixam sem dirigentes sólidos na Câmara e no Senado, sujeitos a suspeitas e até a pedidos de prisão.

As coisas não vão bem no Brasil e a causa não é uma guerra inevitável, uma catástrofe natural inesperada, pobreza por falta de recursos, erros de um ditador há anos no poder. Dispomos de recursos, temos uma natureza rica e estável, com raros e localizados períodos de seca, mas quase sem desertos, terremotos destruidores, tsunamis devastadores; vivemos em paz - estamos livres, até aqui, até mesmo do terrorismo, e temos uma democracia de três décadas, o que, teoricamente, deixaria a sociedade com condições de corrigir os erros do passado e reorientar o futuro. Mas não estamos conseguindo fazer isso. No lugar, usamos a democracia para provocar imensos erros que emperram a economia, desmoralizam o Brasil no cenário internacional, desagregam a sociedade.

Qualquer observador atento, no país ou no Exterior, se pergunta onde erramos, como deixamos isso acontecer. Provavelmente, a resposta está no fato de que a política tem esquecido o Brasil. Alguns fazem política para locupletarem-se, enriquecerem pela corrupção; outros, para se manterem no poder a qualquer custo; e os outros, para atenderem interesses de grupos que representam. Raríssimos fazem política pensando no bem maior do conjunto da população. Os bons e honestos políticos brasileiros representam interesses de categorias no presente, não os interesses nacionais no futuro. Por isso, defende-se aumentos salariais e benefícios que não cabem no orçamento, e certamente causarão inflação; obras que custarão valores superiores ao possível para beneficiar interesses locais e mesmo permitir propinas; ações que passam ilusões de grandeza, sem deixarem resultados positivos permanentes.

O Congresso é dividido em bancadas de segmentos sociais, não há bancadas do Brasil como um todo e em sua perspectiva histórica. O processo de impeachment é um exemplo. Se os políticos e o governo dos últimos 13 anos tivessem pensado no Brasil, e não nas categorias, e em setores específicos, não estaríamos hoje tendo de escolher entre a tragédia da interrupção do mandato de uma presidente eleita ou a tragédia da continuação de seu mandato por mais quase três anos.

Os dois governos do PT tentaram articular todos os segmentos do país, com bolsas e cotas para os pobres, salários para os trabalhadores, lucros para industriais e banqueiros, subsídios aos consumidores, mas sem um projeto nacional para todos os brasileiros no futuro. Por isso preferiram mais escolas no ensino superior a melhores escolas no ensino básico. E essa escolha, hoje, no Senado parece se fazer por um debate entre os grupos que nunca aceitaram esses governos e aqueles que sempre os defenderão. Esses são incapazes de reconhecer que não dá mais; os outros não refletem sobre os custos históricos de mais um presidente destituído entre os quatro que foram eleitos nestes menos de 30 anos. A política está perdida por falta do mais óbvio tema que deveria preocupar os políticos: o Brasil.

Prática da demagogia

Fico horrorizado com a ideia de que haja pessoas que votem em partidos nacionalistas ou formações com ideias simplistas. São pessoas que pensam que podem sair dos seus problemas culpando os outros
Felipe Fernández-Armesto

Fala aí, Michel!

As manchetes, que ocuparam o alto da primeira página e tiveram o maior destaque nas editorias de Política e Economia do Estadão, sábado e segunda-feira, dizem respeito a assuntos correlatos. Uma é a informação do delator premiado Vinicius Veiga Borin de que a Odebrecht comprou um banco para distribuir propina e a outra, o decreto de calamidade pública no Rio de Janeiro. Uma é a causa e a outra, o efeito. A primeira resulta do estado de absoluta devassidão moral que tomou conta do país desde que Lula da Silva, o mais popular presidente da História da República, entregou os cofres das estatais (inclusive bancos) à organização criminosa que reuniu burocratas do alto escalão da máquina pública e dirigentes partidários para planejar, organizar e realizar o maior furto de dinheiro público do planeta em todos os tempos. A segunda, da impossibilidade de cobrir as despesas do Estado com os poucos recursos que restaram para financiar o funcionamento das instituições democráticas.

Não dá para pagar as contas da educação, da saúde e da segurança públicas após o saque metódico e permanente do dinheiro arrecadado por impostos escorchantes, por mais escorchantes que eles fossem e sejam, pela associação perversa entre políticos ambiciosos e empresários inescrupulosos. Para o assalto funcionar e permanecer foi criado um esquema minucioso de superfaturamento de contratos de obras e serviços públicos com empresas privadas, em troca de um propinoduto pelo qual fluía a remuneração dos gestores das estatais que administravam a contabilidade, parlamentares que asseguravam a manutenção dos larápios em seus postos, ministros de Estado delinquentes e dirigentes partidários que enriqueceram abundante e ilicitamente em nome do sagrado princípio da velha e boa governabilidade.

Foi montado um sofisticado método de “engana trouxa” para o esquema funcionar e escapar aos controles (cuja fragilidade é agora revelada) da Receita Federal, do Banco Central, do Conselho Administrativo dos Recursos Fiscais (Carf) e de outros órgãos da administração federal encarregados de fiscalizar, punir e evitar a bandalheira. Tais mecanismos fiscalizatórios foram desativados por gorjetas milionárias, propiciando boa vida, sombra e água fresca para cidadãos encarregados de fazê-los funcionar. Ou seja, zelotes, denominação exata dada à operação policial e judicial que os investiga.

Por sua vez, com o bolso aliviado por essa casta canalha, o cidadão foi facilmente seduzido por miçangas retóricas e truques rasteiros de marketing político e deixou-se enganar, cômoda e confortavelmente, pela astuciosa súcia de agentes políticos que se perpetuam no poder fazendo-se de cegos, surdos e mudos como, na prática, age a cidadania. Desmontado o esquema, denunciado o roubo, esta é convocada a pagar a conta e patrocinar a impunidade dos salafrários. Assim, a falta de moral desemboca na crise econômica que engrossa e embrutece o caos político. Não é, portanto, mera coincidência o Brasil bater recordes mundiais de safadeza, desemprego, falência de empresas, queda de arrecadação e instabilidade.

Paraíso dos bicheiros que se tornaram traficantes, maravilha da malandragem e território do jeitinho, o Rio é uma calamidade antiga, enfim decretada. Mas não é o primeiro estado a encarar a ruína. Antes, foi o Rio Grande do Sul, cujo calote precedeu o fluminense. Clio, a deusa da História, caprichou na ironia: Leonel Brizola nasceu no Rio Grande do Sul e tornou-se célebre no Rio de Janeiro, a antiga capital federal, em cujo obelisco central seu prócer maior, Getúlio Vargas, amarrou os “pingos”.

Além dessa coincidência histórica, também assolaram o burgo fundado por Estácio de Sá as quinquilharias mais vistosas dos 13 anos, 4 meses e 12 dias em que a organização criminosa obteve anuência cega, surda e muda dos comandantes da nau sem rumo: a descoberta do pré-sal, a Copa do Mundo e agora a Olimpíada de 2016. Nada mais condizente com o reinado do pão e circo dos césares Augusto, Tibério e Nero, com o Maracanã servindo de Coliseu no encerramento do desastrado torneio de futebol e na abertura dos jogos modernos da zika, do arrastão e da ciclovia derrubada pela ressaca. O circo frustrado e o pão de fancaria, que parecia ser distribuído com fartura inédita por conta do petróleo do pré-sal só fizeram a festa dos delinquentes, que ficaram com o dinheiro de obras que se desfazem quando brilham no ar, como fogos de artifício no réveillon de Copacabana. O artífice do show, Lula da Silva, vencedor das batalhas da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional (COI), e seus asseclas querem dos mortos e feridos um perdão que nem sequer se dão ao luxo de pedir.

Nesse particular, não estão sozinhos. Neste instante, ficamos sabendo que a oposição, que parecia apenas ser preguiçosa, inepta e desleixada, pode ter sido é cúmplice, conforme revela delação seletiva de Sérgio Machado, premiado com pena de 3 anos de tornozeleira em casa no lugar de 20 recolhido à cela. Tudo o que Lula queria na vida é que todo brasileiro tivesse a memória benevolente desse delator e fosse reconhecido pelo mérito das obras imperfeitas, como os estádios do Mundial, ou incompletas, como a transposição do São Francisco. Mas que não fosse lembrado pelo acesso que deu a todos quantos arrombaram os cofres da viúva em nome de falsos ideais bolivarianos que os poderosos de plantão fingem ter. Nem pela paternidade política da Mãe do Desemprego e do PIB cru.

Agora que tudo está sendo esclarecido e que do pré-sal da política o que se extrai é a queda dos que meteram a mão ou fizeram vista grossa e ouvidos de mercador a suas malfeitorias, ainda restam dois mistérios a lamentar e desvendar. O primeiro: por que Aécio Neves não explicou aos eleitores tungados esse teorema no qual o furto é causa e crise, efeito. É mais compreensível do que o de Euclides. Mesmo que a Operação Lava Jato comprove que os tucanos compartilharam, pelo menos, sobejos do butim, essa ainda é uma equação sem solução.

O outro só pode ser desvendado por Michel Miguel Elias Temer Lulia. Que razão obscura e oculta mantém a mordaça que o impede de vir a público para contar a que os sócios do desgoverno comandado pelo PT, mas do qual ele também fez parte, reduziram o patrimônio público durante sua passagem pelo poder republicano. E quais são as consequências funestas de seus desmandos. Milhões pagam pra ver as cartas desse jogo de cujo baralho sujo Dilma Vana Rousseff Linhares está sendo excluída. Quais seriam as razões de ocultá-las na manga do colete?

Fechamento das torneiras de dinheiro sujo encerrou farra aérea de Dilma e aposentou o palestrante de araque

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Por falta de verba para fretamento de jatinhos, o PT desistiu de bancar as viagens de Dilma Rousseff e sua comitiva de desocupados. A partir de agora, a Assombração do Alvorada terá de contentar-se com discurseiras no jardim, obedientemente aplaudidas pela plateia que junta a criadagem do palácio ao bando de áulicos sustentados por milhões de pagadores de impostos. É preciso manter a animação da tropa que aguarda ao lado da patroa a definitiva ordem de despejo.

Neste ano, Lula não recebeu um único e escasso convite para fazer palestras no Brasil ou no exterior. Entre 2011 e 2013, foi sempre extensa a fila de empresários dispostos a contratar por até 400 mil dólares um palestrante que se limitava a cumprimentar-se pelo parto do Brasil Maravilha ─ um superlativo embuste registrado em cartório. Com os avanços da Lava Jato, também parou de crescer até a coleção de títulos de doutor honoris causa.

O fim da farra aérea de Dilma e a aposentadoria forçada do camelô de empreiteira nada têm a ver com a crise econômica que atormenta os brasileiros comuns: foram provocados pelo fechamento das torneiras que abasteciam com dinheiro sujo o caixa do PT e o cofre do Instituto Lula. Para ajudar a presidente demitida, o partido promete reprisar a vaquinha que socorreu José Dirceu. O padrinho talvez há tenha reduzido o volume de reservas sob a guarda de Paulo Okamotto.

O palanque ambulante poderia usar o tempo que agora sobra ensinando aos 12 milhões de brasileiros desempregados como é que se faz para viver uma vida de milionário sem trabalhar. E tanto o poste quanto o seu fabricante deveriam aproveitar o momento adverso para submeter-se a um teste de popularidade de altíssima precisão. Basta que embarquem num avião de carreira e perguntem aos demais passageiros o que estão achando da situação do Brasil.

Falha demoníaca

O demônio não soube o que fez quando criou o homem político; enganou-se, por isso, a si próprio
William Shakespeare

Gasta muito e gasta mal

A corrupção sistêmica é hoje fato estabelecido. A classe política está sob suspeita. As principais lideranças petistas e peemedebistas estão às voltas com a Justiça. O presidente interino, Michel Temer, não consegue sequer montar um ministério acima de qualquer suspeita.

As investigações da Lava-Jato prosseguem com enorme apoio da opinião pública esclarecida. Aonde vai levar tudo isso? A um aperfeiçoamento institucional de uma democracia emergente. Quando vão perder o ímpeto essas investigações e a guilhotina midiática?

Quando uma reforma política acenar com um futuro diferente, e as condenações das principais lideranças do Antigo Regime saciarem a opinião pública. Apenas o fim da impunidade e a mudança desse degenerado regime político decretariam o fim da Lava-Jato.

A verdade é que se revelou à luz do dia uma fabulosa engrenagem para a coordenação de tráfico de influência e desvio de recursos públicos.

Maus empresários, funcionários públicos corruptos e políticos inescrupulosos aperfeiçoaram essa engrenagem de administração centralizada para o financiamento das campanhas políticas, a compra de sustentação parlamentar e a apropriação indébita de recursos públicos.

Grupos de interesses privados financiam políticos corruptos, que por sua vez nomeiam funcionários públicos corruptos para postos-chave dessa engrenagem, que devolvem então aos corruptores privados recursos públicos suficientes para compensar seus “investimentos” na captura de influência política.

O programa econômico que preparei em 1989, para uma campanha presidencial nas primeiras eleições diretas após a redemocratização, previa programa de privatização para resgate integral da dívida interna.

A participação do governo nas empresas estatais teria sido suficiente para zerar a dívida pública federal interna. Quantos Prounis e Bolsas-Famílias poderíamos estar hoje financiando com os R$ 500 bilhões pagos anualmente como juros da dívida?

Pior, o descontrole de gastos públicos, de um lado, e a meta de inflação, de outro, produziram juros astronômicos que nos levaram ao endividamento interno em bola de neve. O governo federal gasta muito, rouba muito e gasta mal, enquanto faltam recursos para saúde, segurança, saneamento e educação em estados e municípios falidos.

Paulo Guedes

A ditadura do judiciário

O Rodrigo Janot, o Procurador-geral da República, empavonou-se, auto se proclamou justiceiro da moralidade. E isso não é bom para democracia, quando homens que representam os poderes começam a se digladiar para saber quem realmente é o arauto dos bons costumes, o responsável pela faxina ética do país. A Lava Jato, para quem o povo brasileiro bate palmas, precisa retornar o rumo da sobriedade para não ser acusada de espetacularização e irresponsabilidade.

O depoimento de um delator, por si só, não pode resultar na prisão de alguém. Corre-se o risco de se cometer injustiças e condenar por antecipação pessoas ainda investigadas. A medida coercitiva do Lula em São Paulo, por exemplo, foi um exagero, porque o ex-presidente na estava foragido e nunca se negou a depor quando convocado. O pedido da decretação preventiva de Renan, Sarney e Jucá também está na agenda da petulância e da arrogância da procuradoria geral. Tanto é que o STF, com bom senso, indeferiu o pedido a bem da harmonia dos poderes.

A delação em outros países, como nos Estados Unidos, é usada como complemento às investigações. As informações são checadas, apuradas e só então os nomes são revelados quando não existem mais dúvida sobre a participação do acusado nos crimes. Aqui, no Brasil, percebe-se que a delação virou um instrumento simples e prático para o criminoso suavizar suas condenações e guardar o dinheiro do crime, como um investimento financeiro, até se livrar da pena, muitas delas suaves e tranquilizadoras para quem roubou milhões dos cofres públicos.

As denúncias seletivas existem, algumas são reais. Exposto ao linchamento público, o cidadão muitas vezes não tem o direito de se defender porque, na verdade, não sabe nem do que é acusado. Em outros tempos, isso se chamava autoritarismo, regime de exceção, ditadura que suprimiu o habeas-corpus, em um ato de truculência, para manter na cadeia, sob tortura, aqueles que ousavam desafiar o regime. Os promotores mais jovens, que hoje vivem debruçados sobre as delações premiadas, talvez não tenham alcançado essa prepotência. São jovens que queimaram as pestanas em concurso para fazer carreira no serviço público, o que às vezes os deixam limitados a outras ciências.

O escritor italiano Pitigrilli (Dino Segre, 1893-1975) tinha um certo tédio por esses senhores da Justiça. Defendia a teoria de que se fossem competentes, como alardeiam, estariam ganhando muito dinheiro na iniciativa privada. Por isso, muitas vezes, tratam os advogados com desdém porque, no fundo, sentem-se frustrados por não ganhar a fortuna de alguns deles quando defendem seus clientes.

Ninguém, de sã consciência, pode negar o trabalho abnegado desses jovens procuradores como defensores da lei e guardiões dos cofres públicos. Mas o país não pode se submeter a ditadura do judiciário, quando pessoas indiscriminadamente são jogadas no pantanal da corrupção com base apenas na delação de um criminoso que precisa se safar das penas mais rigorosas. Do jeito que a coisa anda, dedo duro virou um grande negócio no Brasil.

O mais apavorante de tudo isso é que os nomes são jogados na mídia sem culpa formada. Ou seja: a imprensa brasileira já não apura notícias, não investiga. Ela se transformou em porta-voz de lobistas oficiais com outros interesses no mercado da notícia. Veja que coisa: quando você já viu o Jornal Nacional, por exemplo, abrir o seu noticiário no horário nobre para retificar uma informação, uma coisa saudável no bom jornalismo? É muito raro. É o jornalismo infalível, imperativo, por isso a Globo não se sente obrigada a se retratar.

Tanto na Polícia Federal como no Ministério Público investiga-se cada vez menos. As informações chegam de graça pelas mãos dos próprios criminosos que transformaram a delação em um grande mercado. Alguns até se antecipam as prisões para abrir o jogo, satisfazendo o ego de quem está à frente dos inquéritos. Os telefonemas como as gravações muitas vezes são editados de forma a envolver gente que, por um descuido, deixou escapar uma frase ou uma palavra comprometedora com o seu interlocutor.

O Poder Judiciário precisa ser mais cauteloso quanto aos grampos e as informações dos delatores, antes que voltemos aos tempos do arbítrio e da vigilância da liberdade tão comuns em regime autoritário.

Calamidade de conveniência

O Supremo Tribunal Federal entende que “as expressões ‘guerra’, ‘comoção interna’ e ‘calamidade pública’ são conceitos que representam realidades ou situa ções fáticas de extrema gravidade e de consequências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias”.

O estado de calamidade pública é definido pelo Decreto 7.257/2010 como uma “situação anormal, provocada por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido.”

Não faz muito tempo, tsunamis no Oceano Pacifico e furacões no Golfo do México arrasaram cidades costeiras do Japão e dos Estados Unidos e, no Brasil, uma chuva torrencial deixou cerca de mil mortos, cem desaparecidos e milhares de desabrigados na Região Serrana do Rio de Janeiro.


Os governos locais recorreram ao estado de calamidade justamente para combater consequências de extrema gravidade e imprevisíveis em termos de vidas humanas e de meio ambiente. Entre as medidas previstas na legislação brasileira em tal situação, temos as linhas de crédito extraordinário, empréstimos compulsórios e a dispensa de licitação na contratação de serviços e de bens.

Cinco anos após a tragédia serrana, dos R$ 550 milhões repassados pelo governo federal muito se perdeu em corrupção, desvios, superfaturamentos. O Ministério Público ajuizou varias ações de improbidade, e o Tribunal de Contas da União descobriu até mesmo a construção de uma ponte em local onde já havia outra recém-concluída.

Se, em condições normais, já é difícil monitorar a destinação de recursos públicos, imagine-se durante regimes emergenciais de exceção, como durante estado de calamidade. Agora, o Rio de Janeiro volta a decretá-lo, tendo por origem uma farsa política — o que não deixa de ser um desastre —, cujo efeito mais imediato, mas não o único, é a obtenção de recursos públicos a fundo perdido — o que não deixa de ser uma tragé- dia de longo prazo.

A União passa às mãos do Rio uma tocha de R$ 2,9 bilhões sob o pretexto de estar assegurando saúde e segurança para o povo de um estado cujas consequências da crise financeira são até mais brandas do que as experimentadas em outros estados. Se não é o Maranhão ou o Piauí que sediarão as Olimpíadas, azar o deles.

Independentemente de quem venha a suceder a Paes e também da duração da interinidade de Dornelles e de Temer, os dividendos da populista iniciativa serão literalmente retratados na figura desses dignatários sentados na tribuna de honra no dia da abertura dos Jogos, sem o enquadramento dos prejuízos econômicos decorrentes da decretação, que só serão revelados quando já não mais estiverem ocupando seus palácios. Sorte a deles.

O encontro dos três em um jantar no Palácio do Jaburu para instituir o estado de calamidade pode ser equiparado a um choque de placas tectônicas ou à formação de uma tempestade perfeita.

Como terremotos nem sempre causam danos em seu epicentro, e como o olho de um furacão é um oásis suspenso de brisa e céu claro, na segurança de Brasília ele se reuniram para gerar e propagar ondas de destruição de alto impacto nas finanças públicas, em um ato de calamitoso oportunismo político.

Helio Saboya Filho