domingo, 10 de março de 2019

E ainda não tem 100 dias

Em 7 de outubro, diante do resultado do primeiro turno que o colocava na liderança com mais de 46% dos votos contra 28% do segundo colocado Fernando Haddad, o então candidato Jair Bolsonaro usou o Facebook para comemorar e agradecer aos eleitores. Ao vivo e em cores, prometeu “unir o povo, unir os cacos que nos fez o governo de esquerda”, caso fosse vitorioso. Ao chegar à Presidência não fez valer a jura: traiu milhões de eleitores.

Além de não compreender a natureza e a grandeza do cargo que ocupa, como tem demonstrado continuamente em comportamentos desleixados, tuítes irresponsáveis e até escatológicos, Bolsonaro parece também não entender os motivos do apoio que recebeu de eleitores que haviam negado a ele o voto no primeiro turno. Pior: acredita que tudo pode, que é mesmo um mito, termo usado na campanha pelas torcidas fundamentalistas.


É fato que Bolsonaro soube encarnar com sucesso o repúdio do eleitor à corrupção, grudada ao PT. Usou com maestria as redes sociais e os batalhões fictícios que ela proporciona, e teve competência para terceirizar temas econômicos, sobre os quais nunca soube nada e não se esforça nem um pouco em aprender. Mas, ao contrário do que o ex-capitão, sua prole e seu guru Olavo de Carvalho preferem crer, é absurdo imaginar que o antipetismo tem o condão de transformar os que rejeitam Lula, Dilma & cia em ultradireitistas, apoiadores de pensamentos xenófobos, homofóbicos, anti-humanistas e castradores da liberdade.

Esse eleitor sem opção de centro atraente, que assegurou a vitória a Bolsonaro no segundo turno, é quem pode acrescentar peso ao governo. E, diferentemente dos fiéis, são pessoas sem alinhamento automático, que têm de ser conquistadas cotidianamente e que já começam a expressar descontentamento. Nas mesmas redes sociais em que milita a tropa do ex-capitão, aparecem arrependimentos, gente decepcionada, cansada das baboseiras do presidente, descrente diante da ausência de governo e de governante. Isso em pouco mais de dois meses.

No avesso da concórdia pregada há cinco meses, Bolsonaro insiste em rechaçar qualquer ideia diferente da sua, espuma quando contrariado e não esconde o ódio a jornalistas. Ele e os seus continuam a bater no petismo e em qualquer um que pareça de esquerda, seja lá o que isso quer dizer -, como se o PT ainda tivesse algum peso. Com isso, em vez de minar, criam espaço para o repique do “inimigo” derrotado, engrossando bate-bocas nas redes, com xingamentos, palavrões. Um desastre.

Na outra ponta, a do combate à corrupção, Bolsonaro não está conseguindo nem mesmo fazer a mais básica lição de casa. Com a desvinculação do crime de caixa 2, a proposta anticorrupção do ministro da Justiça, Sergio Moro, chegou quebrada à Câmara. Mais grave: o presidente mantém sob sua guarda o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio, enrolado com o laranjal do PSL. O afastamento do auxiliar chegou a ser pedido pela deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), coautora do processo de impeachment da presidente deposta Dilma Rousseff e dona de nada menos do que 2 milhões de votos.

Sem dar ouvidos à razão e com investimento zero em ações que desarmem ânimos e promovam consensos mínimos, Bolsonaro pode perder as batalhas que interessam ao país, como as reformas da Previdência e tributária. E joga no lixo os eleitores que conseguiu atrair entre um turno e outro, aprisionando seu governo na provocação improdutiva de uma direita medieval a uma esquerda do início do século passado.

Enquanto Bolsonaro digladia com o mundo e se expõe a ferimentos com os cacos que dizia querer juntar, o vice-presidente Hamilton Mourão e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), passeiam para além dessa geografia ultrapassada. Possíveis sucessores postos antes mesmo de o governo completar 100 dias.
Mary Zaidan

As certezas desta vida

Dizem que na vida há duas certezas: morreremos e pagaremos impostos. No caso das vidas brasileiras, acrescentaria mais uma certeza: morreremos, pagaremos impostos e assistiremos à desidratação inevitável da reforma da Previdência. Isso, é claro, se a reforma passar no Congresso. Essa certeza não temos, como deixou claro o deputado Elmar Nascimento, líder do DEM na Câmara.

Já contamos cerca de 50 dias de existência do governo Bolsonaro. Nestes 50 dias, presenciamos: as estultices do trio Damares-Ernesto-Ricardo; a ignorância do ministro do Meio Ambiente, que não sabia muito bem quem foi Chico Mendes, além de ter sido indiciado por improbidade administrativa; as alegações sobre os candidatos laranjas que o PSL utilizou para ter acesso ao Fundo Partidário; a ascensão dos filhos do presidente à condição de presidentes auxiliares; o caso Queiroz e os problemas do filho senador com dinheiro e milícias; a contínua negação de que houve uma ditadura militar no Brasil; os ataques incansáveis à imprensa e aos jornalistas; a ameaça do comunismo imaginário; as brigas no Twitter entre um dos filhos de Bolsonaro e o ministro de sua própria sigla, ex-presidente do PSL que acolheu todo o clã familiar; os áudios gravados em WhatsApp da conversa tosca entre Bolsonaro e Gustavo Bebianno em que o presidente da República é continuamente chamado de “capitão”; as mentiras de Bolsonaro sobre as conversas com Bebianno e a traição presidencial para proteger o filhote. É certeza que falta coisa nessa lista, mas, em frente.

Passadas pouco menos de 24 horas da divulgação dos áudios que causaram no mínimo estremecimento entre Bolsonaro e seu partido — portanto, alguns danos à solidez da base governista no Congresso, para não falar da traição de Bolsonaro, que por certo cria desconfiança —, veio a reforma da Previdência. É cedo para avaliá-la, pois a apresentação divulgada pelo governo revela apenas alguns pontos fundamentais. A cifra que saltou aos olhos do mercado, evidentemente, foi a economia de R$ 1 trilhão nos próximos dez anos, o que muito faria para restaurar a sustentabilidade das contas públicas brasileiras. Simplesmente tomando esse número como referência, a reforma é mais ambiciosa do que o primeiro projeto apresentado por Temer, em que se antevia uma economia de cerca de R$ 800 bilhões. Em conformidade com a terceira certeza da vida brasileira, a reforma de Temer foi reduzida à metade após intenso processo de diluição no Congresso. Vamos lembrar? Temer, ao contrário de Bolsonaro, era um presidente com amplo conhecimento sobre o funcionamento do Congresso Nacional, alguém que certa vez chamei de “excepcional operador de chão do Congresso”. Ainda assim, sua reforma não foi a lugar algum.


Disse o líder do DEM sobre as perspectivas da reforma de Bolsonaro: “É uma reforma difícil e que exigirá muitos esforços da base. São dois os problemas que vejo neste momento. A desarticulação — ou inexistência — da base aliada é um deles e, em minha opinião, o mais grave”. Concordo com o líder do DEM. Sobretudo após o episódio Bebianno e a sensação de que Bolsonaro é capaz de dar as costas a qualquer aliado sob a influência de um ou mais dos três presidentes auxiliares que hoje governam o país.

Eis, portanto, uma avaliação — sem entrar nos méritos ou deméritos específicos da reforma. A reforma pode sofrer desidratação semelhante à de Temer, caso em que a economia seria de R$ 500 bilhões.

A reforma pode não ser aprovada, ainda que desidratada. Hoje, penso ser o segundo cenário o mais provável. Quiçá mude de opinião nos próximos meses inevitavelmente turbulentos que teremos pela frente. Afinal, as discussões sobre a proposta prometem ser intensas, as desavenças hão de criar ruídos que afetarão os preços dos ativos brasileiros, a imprevisibilidade e a inépcia de Bolsonaro apresentadas nos primeiros 50 dias continuarão a nos atormentar.

Portanto, reconfortemo-nos com as três certezas desta vida. Morte, impostos e reformas diluídas.

Imagem do Dia

Castelo de Vide (Portugal)

O autoatentado de Bolsonaro

É assustadora a desenvoltura com que as pessoas falam de um hipotético afastamento do presidente da República, mal completados dois meses de seu mandato. A cada semana o tema ganha mais corpo em conversas nas ruas, nas casas, nos restaurantes, nos escritórios, nos consultórios, nos táxis. Na praia. O assunto pode invadir o Congresso a partir de amanhã, ao fim do recesso de carnaval. Se já não invadiu.

Nunca um presidente conseguiu queimar tanto capital político trazido das urnas em tão pouco tempo como Jair Bolsonaro. Nem os dois presidentes brasileiros efetivamente afastados do poder nos últimos 30 anos estavam tão mal assim cedo. Dilma Rousseff foi reeleita e inaugurou seu segundo mandato com apoio popular e parlamentar, e seguiu assim até a descoberta de suas pedaladas. Fernando Collor, o homem que sufocou o país ao congelar as contas bancárias dos brasileiros, só perdeu apoio quando suas maracutaias tornaram-se públicas.

Tampouco Michel Temer, que chegou ao Palácio pela via indireta e com o país dividido, estava atolado no segundo mês de seu mandato tampão. A hipótese de cassação do mandato de Temer só foi cogitada depois daquela conversa cavernosa no Palácio do Jaburu com o empresário Joesley Batista. Lula e Fernando Henrique também foram objeto da mesmo especulação. Mas Lula, no terceiro ano do primeiro mandato, no auge do mensalão. E FH na discussão da emenda da reeleição, acusado de comprar votos no Congresso. Nenhum ao final do 2º mês.


Hoje, as pessoas falam abertamente sobre o impeachment de Bolsonaro. E por quê? Porque o presidente deu margem, deu corda, alimentou e segue alimentando a discussão sobre seu próprio futuro. Cada besteira dita por ele multiplica o debate sobre o seu afastamento. Somente nesta semana, por duas vezes o presidente espantou os brasileiros, mesmo aqueles que votaram nele com convicção. O Twitter do carnaval e a declaração de que a democracia só existe porque as Forças Armadas querem causaram estupefação no país.

Mas, por mais grosseiro e equivocado que tenham sido o post do“goldens-hower” e o discurso da democracia, não se configurou até aqui qualquer elemento legal para o afastamento do presidente. Tampouco se reúne por ora motivação política para o seu impeachment. Mas isso não impede que as pessoas falem. Frases ouvidas nos últimos dois dias: “Ele não vai concluir o mandato”; “Bolsonaro não aguenta muito tempo”; “Não chega ao fim do ano”; “Os militares não vão deixar ele continuar”.

Está cada vez mais claro que o presidente precisa parar de fala reproduzir tanta bobagem. Se continuar atentando contra si próprio a cada dez dias, Bolsonaro poderá acabar encontrando o seu destino. Deu para ver que as coisas vão mal pelo semblante do ministro Augusto Heleno ao tentar explicar o último discurso infeliz do chefe. Heleno era, até há pouco tempo, um homem feliz. Nos dias seguintes à posse, sua fisionomia era de encantamento. Hoje, o ar é de desilusão.

Nem mesmo o sempre bem-humorado vice-presidente Mourão consegue esconder o desconforto com Bolsonaro. O homem que deveria ser o dono da última palavra, tem que ser seguidamente corrigido por subordinados e assessores. A palavra do presidente virou a penúltima, lamentavelmente. Mourão e Heleno são os dois que fazem as conclusões do governo, tentando encontrar interpretações favoráveis aos equívocos presidenciais

Voz do autoritarismo

O Twitter combina com líderes autoritários, Políticos de extrema-direita generalizam casos individuais para criar bodes expiatórios e difamar comunidades inteiras
Christian Fuchs, professor da Universidade de Westminster, no Reino Unido, e autor do livro “Digital Demagogue: Authoritarian Capitalism in the Age of Trump and Twitter” (Demagogo digital: capitalismo autoritário na era de Trump e do Twitter)

Permanência de ministro vira um 'orange shower'

"Deixa as investigações continuarem, tá ok!?" Foi assim, em timbre evasivo, que Jair Bolsonaro reagiu nesta sexta-feira ao ser questionado sobre o jorro de suspeição que cai sobre a cabeça do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio. As denúncias sobre envolvimento no escândalo das candidatas laranjas do PSL encharcam o personagem. Mas o presidente da República, em vez de interromper a cena, decidiu prolongar a obscenidade por tempo indeterminado.

O povo não gosta daquilo que não entende. E Bolsonaro capricha na falta de nexo. Segundo a superstição vendida na campanha eleitoral, o capitão seria um político honesto que, uma vez eleito, faria um governo isento de malfeitorias. Como evidência de suas boas intenções, transferiu Sergio Moro da Lava Jato para a pasta da Justiça. À frente da Polícia Federal, o ex-juiz faria um "juízo de consistência" sobre as denúncias, apressando providências saneadoras.

Pois bem, submetido a uma oportunidade concreta de demonstrar que fala sério, Bolsonaro decide tratar a encrenca a golpes de barriga. O presidente dá a entender que não cogita tratar investigados como condenados. Faz bem. Ninguém ousaria pregar a extinção do sacrossanto direito de defesa. O que não parece razoável é que suspeitos de crime permaneçam na Esplanada como se nada tivesse sido descoberto sobre eles.

Admita-se que Bolsonaro não queira demitir o único ministro do seu partido, o PSL. Poderia, então, adotar uma solução à moda de Itamar Franco, que ordenou ao então chefe da Casa Civil Henrique Hargreaves que se licenciasse do cargo assim que foi alvejado por denúncias de corrupção. Fora do governo, Hargreaves livrou-se das acusações. E retornou à antiga função.

Parece haver um quê de autodefesa na decisão de Bolsonaro. O presidente enfrenta, ele próprio, o assédio de incômodas interrogações. Há o amigo Fabrício Queroz, que ele encostou na biografia do filho Flávio Bolsonaro. Há o laranjal plantado por Queiroz na folha do gabinete de Flávio. Há os R$ 24 mil que Queiroz borrifou na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Afastando o ministro do Turismo, Bolsonaro perderia um de seus anteparos, tornando-se alvo solitário.

Bolsonaro sinaliza que, no momento, a prioridade de sua Presidência não é a ética. Ou a falta dela. O governo dedica-se a desfazer as polêmicas presidenciais e convencer o Congresso de que não haverá prosperidade sem reforma da Previdência. Beleza. O diabo é que um dos incômodos do brasileiro é essa interminável sensação de que nada se perde, nada se transforma na política. Tudo se corrompe. Ao prolongar o 'orange shower' do seu ministro do Turismo, Bolsonaro atrai o jorro de perversões para sua própria cabeça.

Gente fora do mapa


O preocupante rumo da educação

A péssima qualidade da educação brasileira é uma das causas da baixa produtividade do país. Sem tornar a economia mais produtiva, o país não conseguirá crescer a taxas mais elevadas de modo sustentado. Nesse cenário, os rumos da educação no atual governo terão peso importante para definir a capacidade de crescimento do país no médio e no longo prazo. Até o momento, os sinais emitidos pela gestão do ministro Ricardo Vélez Rodríguez são preocupantes e desanimadores. Há um risco elevado de o país desperdiçar tempo e energia com medidas que passam longe dos principais desafios da área, como os graves problemas de aprendizagem na educação básica.


Em seu discurso de posse, Vélez disse que uma das prioridades será combater "com denodo o marxismo cultural hoje presente em instituições de educação básica e superior". Em entrevista à revista "Veja", afirmou ser "contra a ideologização precoce de crianças na escola". Uma das preocupações centrais do ministro e do presidente Jair Bolsonaro em relação à educação, o tema é visto como algo irrelevante pela grande maioria dos especialistas na área, assim como a promoção da ideologia de gênero - também criticada por Vélez em seu discurso.

Diretor de Políticas Educacionais do movimento Todos pela Educação, Olavo Nogueira Filho considera que não deve haver espaço para tentativas de ideologização ou coerção, qualquer que seja a idade do estudante. "Se isso ocorre, independentemente da escala, é preciso que seja enfrentado via mecanismos legais que, inclusive, já existem. Agora, não há evidência alguma de que isso seja um problema sistêmico e, mais do que isso, trata-se de uma discussão que passa absolutamente ao largo daquilo que é, de fato, central para mudarmos a qualidade da educação básica no país."

Dado o cenário gravíssimo da educação básica, o Brasil "não pode dedicar tamanho espaço para temáticas periféricas e que tiram o foco" do que deve ser prioridade, diz Nogueira. "Ou colocamos energia naquilo que é essencial para virarmos o jogo ou continuaremos a ver resultados vergonhosos que, em última instância, impedirão o Brasil de promover uma retomada econômica duradoura e a reversão do grave quadro social atualmente instalado no país."

O trabalho do economista americano Eric Hanushek, da Universidade Stanford, mostra que grande parte da diferença entre as taxas de crescimento de longo prazo dos países pode ser explicada por discrepâncias na qualidade da educação oferecida à sua população, ressalta Nogueira. "O estudo de Hanushek aponta que um aumento de 100 pontos no resultado médio de um país na avaliação internacional de desempenho escolar do Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, na sigla em inglês] está associado a 2 pontos percentuais a mais na taxa de crescimento anual média do PIB per capita de um país."

A prioridade da área, na visão de Nogueira e diversos outros especialistas, é reverter o quadro de baixa aprendizagem na educação básica (que engloba a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio). Apesar de avanços nas últimas décadas, os números continuam sofríveis, diz o especialista. Segundo ele, 50% dos alunos no fim do 3º ano do ensino fundamental ainda não estão plenamente alfabetizados. "A evasão e a distorção idade-série permanecem altíssimas - de cada 10 jovens de 19 anos, 4 ainda não concluíram o ensino médio. E, daqueles que concluem, somente 9% alcançam aprendizagem adequada em matemática."

Como se vê, são dados alarmantes, que ajudam a explicar o mau desempenho dos estudantes brasileiros em testes internacionais como o Pisa. Para enfrentar esses problemas, Nogueira aponta sete medidas com base num trabalho coordenado em 2018 pelo Todos pela Educação com dezenas de especialistas. Quatro delas têm "natureza estruturante": a criação de um sistema de cooperação federativa, um novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) que seja mais redistributivo, a continuidade da implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e mudanças profundas na carreira dos professores. Além disso, ele cita três medidas relativas a etapas da educação básica: uma abordagem inter-setorial para a primeira infância, uma nova política nacional de alfabetização que se inspire nos Estados que mostraram bons resultados nos últimos anos e a efetivação da reforma do ensino médio, aliada à expansão da jornada em tempo integral.

Em seu discurso de posse, Vélez destacou que a prioridade de sua gestão será a educação básica. Afirmou que, para atingir os objetivos, trabalha na formulação de políticas públicas cujos programas e ações sejam eficazes para combater o analfabetismo, ampliar e melhorar a educação em creches e pré-escolas e garantir o ingresso, a permanência e a conclusão dos estudos na idade certa, entre outras medidas. De modo genérico, são pontos importantes, mas faltam maiores detalhes sobre as propostas.

Ao falar sobre as prioridades da atual gestão do ministério, Nogueira avalia ser "positivo que já exista algum indicativo de que alfabetização será uma das prioridades e que o MEC terá um papel menos centralizador e que atuará prioritariamente de maneira indutora, coordenando e apoiando Estados e municípios na tarefa de melhorar a educação". No entanto, diz ele, "ainda são muito tímidas as sinalizações sobre os planos do MEC para levar a cabo essas ações e, mais do que isso, para efetivamente reverter o grave cenário de aprendizagem que assola o país - falta maior clareza e falta substância".

Nos próximos meses, as discussões sobre a reforma da Previdência vão concentrar as atenções no país. Sem ela, as incertezas em relação à sustentabilidade das contas públicas continuarão elevadas, impedindo a aceleração da economia. O problema é urgente e precisa ser enfrentado de imediato. As políticas educacionais, contudo, serão decisivas para definir se o país conseguirá crescer a um ritmo mais elevado num prazo mais longo. Até agora, as indicações do governo para a educação são preocupantes, faltando pragmatismo e bom senso numa área em que o Brasil não pode mais se dar ao luxo de errar.

Esperando os morcegos

Linzie Hunter
Ganhamos horas de insônia. Necessitamos saber dos amigos. Nos perguntamos em que extremo o calado está, de que é feito seu silêncio, se de estupor ou indiferença. Nossas mãos tremem. Pessoas discutindo alto na avenida e você já imagina o pior. Pessoas empenhando tanta fúria, tanto fogo numa briga de esquina que é como se mundos estivessem em jogo. Passa um bêbado chutando uma latinha, não dá tempo de frear a paranoia de pensar que tragédias podem sem mais nem menos explodir de arbitrariedades como essa, de um bêbado ziguezagueando pelo meio fio, chutando uma latinha escangalhada. O medo com sua capa se levanta, é real, faz suar, faz tremer, perverso como um surto, nem lembra mais um poema. Você dá pela falta dos morcegos, daquele som veludoso que eles fazem, que eles faziam um tempo atrás, diariamente, pouco antes do primeiro ônibus da manhã, aqueles amigos que você aprendeu a esperar, e agora nada, desapareceram, você não sabe se por causa das chuvas ou das sirenes de polícia que começaram a tomar conta das madrugadas. Mas não basta esperar, é preciso uma alquimia, descoser a capa do medo, dançar as tristezas recém-acontecidas, varrer das notícias tudo o que não é humano, só então você pode continuar, você confia, e essa confiança ainda é menos feita de mentira que de aurora, e embora essa mistura de inocências e revólveres (leiteiros não há mais), você aposta que, onde quer que esteja agora, aquele bêbado está a salvo por mais dia, e que amanhã, amanhã sim, os morcegos voltam.
Mariana Ianelli

Se merecem

Só a ignorância aceita e a indiferença tolera o reinado da mediocridadeJosé de Alencar

Escatológico, mesmo, e o despreparo do presidente

Há dois meses na Presidência, o capitão Jair Bolsonaro ainda parece desconhecer as funções de presidente da República e até a dignidade do cargo. O descompasso entre sua posição como chefe de governo e suas preocupações é o dado mais assustador do episódio do golden shower, também conhecido como xixigate, e de muitos outros, como a promessa de controlar as questões do Enem e um comentário sobre lombadas eletrônicas. Seus críticos foram até generosos, no caso do xixigate, porque deixaram de lado a questão mais importante, conhecida nas empresas como descrição de função. Acusaram-no de falta de decoro, de grosseria, de má educação e de uso irresponsável de uma rede social. Houve até quem o censurasse por má escolha de prioridades. Todas essas críticas podem ser merecidas, mas o dado central e realmente preocupante é outro.


Ao repassar o tal vídeo escatológico e pornográfico, ele se ocupou de uma questão muito distante das atribuições presidenciais. Tratou de um pequeno incidente de carnaval, pouco importante, por seus efeitos, mesmo para quem faz policiamento de rua. Mais que isso: num país com 12% de desempregados, mal saído de uma recessão, com crescimento acumulado de apenas 2,2% em dois anos, uma enorme dívida pública e uma complicada pauta de reformas, por que diabos o presidente da República se preocupa com um vídeo besta e se dispõe a repassá-lo com um comentário? Não é só uma questão de prioridade. Até surgir uma explicação melhor, despreparo para a função será a resposta mais convincente.

As suspeitas de absoluto despreparo para a Presidência foram novamente reforçadas, na quinta-feira, quando ele falou sobre suas missões como governante. Uma delas é aproximar o Brasil de países com “ideologia semelhante à nossa”, amantes “da democracia e da liberdade”. Qual o sentido prático dessa aproximação? Usar um boné de campanha eleitoral do presidente Donald Trump e discursar, numa festa nos Estados Unidos, em favor da construção de um muro na fronteira com o México? O autor das duas façanhas foi o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e patrocinador dos ministros das Relações Exteriores e da Educação.

E como ficará a relação com países governados com ideologia diferente? Ainda candidato, o capitão Jair Bolsonaro criou problemas com a China, o maior mercado importador de produtos brasileiros, e com países muçulmanos, grandes compradores de frangos do Brasil. Se o presidente Trump briga com muçulmanos e chineses, deve o Brasil também brigar?

Não será função do presidente da República preocupar-se também com o comércio exterior, com a geração de receita cambial, com a criação de empregos vinculados à atividade comercial e com os demais benefícios derivados do relacionamento com parceiros de fora? O vice-presidente Hamilton Mourão deve ir à China para tentar refazer o entendimento entre os dois países. Depois do vice, Bolsonaro anunciou também a intenção de visitar Pequim. Além disso, afirmou o propósito, nem sempre lembrado e às vezes quase negado, de aproximação com países de todo o mundo. Sem tanto falatório, Mourão tem procurado evitar um desastre maior na diplomacia, como ficou claro em sua participação na recente reunião do Grupo de Lima sobre a crise na Venezuela.

Sem dar sinal de entender o significado e a importância do comércio exterior, o presidente continua agindo, nessa área, como o mais tosco dos amadores. Ao anunciar a intenção de barrar a importação de bananas do Equador, mostrou mais uma vez seu despreparo e sua vulnerabilidade a pressões setoriais e também de pessoas próximas. O presidente declarou-se incapaz de entender como uma banana sai do Equador, viaja “cerca de 10 mil quilômetros” e chega a preço competitivo ao Ceagesp, quando há o produto do Vale do Ribeira. Mas o frango brasileiro, ele deveria saber, também chega ao Oriente Médio a preço competitivo, embora haja fornecedores mais próximos. O presidente insiste em mexer em assuntos fora de sua capacidade, sem perceber as implicações de qualquer decisão sobre comércio exterior.

Ele revela a mesma pobreza de entendimento ao insistir em palpites sobre questões do Enem e ao admitir a ideia abstrusa – para usar uma palavra muito delicada – de uma Lava Jato da Educação. O ministro da área já provou suas limitações quando apresentou às escolas uma mensagem com lema da eleição e propôs a filmagem de alunos cantando o Hino Nacional. Diante do escândalo, o ministro recuou e seu chefe aceitou esse desastre. Nenhuma surpresa: o presidente já se havia mostrado incapaz de entender as falhas da educação brasileira e suas consequências econômicas e sociais.

Se tivesse alguma noção desses fatos, teria escolhido para o ministério algum nome competente. Vários foram sugeridos e todos foram rejeitados, até por pressão de aliados evangélicos. Também isso corrobora a explicação, até agora inabalada, de absoluto despreparo para a função presidencial.

A precedência dada a seus filhos como conselheiros, com poder até para interferir na relação com ministros (caso Bebianno, por exemplo), reforça aquela avaliação. O candidato Bolsonaro teria sido reprovado, quase certamente, se a eleição envolvesse um teste sobre governança pública e sobre o papel de um chefe de Executivo.

O presidente da República tem sido criticado por seu pouco empenho na defesa da reforma da Previdência e por sua forma de comunicação, uma cópia do modelo Trump. Mas a comunicação sem critério e cheia de tropeços é apenas sintoma de algo muito mais grave. Desinformado e com um pobre currículo parlamentar, Bolsonaro parece entender a Presidência apenas como posição de mando, como oportunidade para impor seus valores e preferências, ignorando a gestão e as funções governamentais. Quem votou nele esperando eleger um presidente enganou-se. Presidente, até agora, é só um título formal.