domingo, 27 de outubro de 2019

Madame Natasha pede compostura verbal

Madame Natasha tem opiniões políticas e não as revela, até porque quase sempre estão erradas. Ela zela pelo idioma e pela compostura no seu uso. Natasha acompanhou a campanha eleitoral do ano passado e convenceu-se de que Jair Bolsonaro e seus seguidores apresentavam-se como paladinos da lei, da ordem, da moralidade e dos bons costumes. Neste mês de outubro, ela colecionou falas de alguns poderosos e assombrou-se com o que viu. Coisas que não se dizem numa casa de família e que nunca se ouviram na política brasileira.

Quem puxou o desfile da incontinência foi o presidente. Falando a um grupo de garimpeiros, Bolsonaro disse que “o interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”. Dias depois, quando um cidadão perguntou-lhe onde estava seu amigo Fabrício Queiroz, o doutor respondeu: “Tá com tua mãe”. (É o caso de relembrar a conduta do general João Figueiredo em Florianópolis, em 1979. Quando ele ouviu o que não gostou, vindo de uma manifestação, partiu para cima dos estudantes aos gritos: “Eu gostaria de perguntar por que a minha mãe está em pauta. Vocês ofenderam minha mãe.” É a velha história: Não se deve botar mãe no meio.)


O delegado Waldir, líder do PSL na Câmara, deu a Bolsonaro o veneno da sua própria incontinência. Reagindo à iniciativa que pretendia tirá-lo do cargo, ele disse, durante uma reunião do partido:

“Vou implodir o presidente. (...) Não tem conversa, eu implodo o presidente,
cabô cara. Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo, cara. Eu votei nessa porra. (...) Eu andei no sol 246 cidades, no sol gritando o nome desse vagabundo.” (Dias depois, repetiu: “Ele me traiu. Então, é vagabundo”.

O deputado Felipe Francischini (PSL-PR) acrescentou: “Ele começou a fazer a putaria toda falando que todo mundo é corrupto. Daí ele agora quer tomar a liderança do partido que ele só fala mal?”

Dias depois começou uma briga de textos. A deputada Joice Hasselmann desentendeu-se com Eduardo Bolsonaro (“moleque”) e foi rebatida pela colega Carla Zambelli, que a chamou de Peppa: “Só agradeço a Deus por estar tirando o véu da sacanagem ao povo brasileiro e mostrando quem é quem”.

Finalmente, o deputado Daniel Silveira, que gravou a fala do Delegado Waldir, defendeu-se: “Alerto sobre a tentativa de pedir cassação de mandato. Garanto que não estão acostumados com alguém como eu. Tenho muita coisa para f*** o parlamento inteiro. Eu vou bagunçar o coreto de todo mundo, vou sacudir o Brasil.”

Fabrício Queiroz até hoje não conversou com o Ministério Público, mas em junho, oito meses depois de ter deixado o gabinete de Flávio Bolsonaro, disse o seguinte a um amigo, conforme um áudio revelado pela repórter Juliana Dal Piva:

— Tem mais de 500 cargos, cara, lá na Câmara e no Senado. Pode indicar para qualquer comissão ou, alguma coisa, sem vincular a eles (os Bolsonaro) em nada — diz Queiroz, no áudio, para depois complementar: — 20
continho aí para gente caía bem pra c***.

Natasha acredita que todos eles podem continuar defendendo suas posições, mas não devem usar a cloaca do idioma para se expressar. Ela torce para que Daniel Silveira conte o que sabe e gostou muito da ameaça de Joice Hasselmann: “Não se esqueçam que eu sei quem vocês são e o que fizeram no verão passado”. Tomara que conte.

A senhora faz esse apelo porque zela pelo idioma, mas lembra o que ensinou o escritor mexicano Octavio Paz: “Quando uma situação se corrompe, a gangrena começa pela linguagem.”
Elio Gaspari 

Bolsonaro e Salles decidiram aperfeiçoar os erros

Um acerto dificilmente pode ser melhorado. Mas um erro pode ser sempre aperfeiçoado. E o governo de Jair Bolsonaro parece decidido a subverter o brocardo. Na área ambiental, a atual administração revela que é errando que se aprende ... a errar. Desde que Bolsonaro tomou posse, houve três encrencas ambientais: o estouro da barragem da Vale, em Brumadinho; as queimadas na Amazônia e agora o vazamento de óleo na costa nordestina. A resposta de Brasília foi errática nos três casos.


Brumadinho revelou que o Brasil não tinha aprendido nada com o flagelo de Mariana, ocorrido pouco mais de três anos antes. Na esfera federal, verificou-se que a fiscalização de barragens é precária. Recém-chegado, o governo Bolsonaro prometeu providências. Nem sinal delas até agora. No caso dos incêndios na Amazônia, o governo questionou dados científicos, caluniou ONGs, rasgou dinheiro de doações internacionais e só acionou as Forças Armadas quando o fogo já havia consumido a imagem do Brasil no exterior.

No caso do vazamento de óleo, o governo não montou um gabinete de crise, como fizera no episódio de Brumadinho. Descobriu-se que a pasta do Meio Ambiente tinha revogado em abril dois comitês de reação a incidentes com óleo. E estava vago havia seis meses o comando do Departamento de Emergências Ambientais do ministério. O plano de contingência foi acionado com 41 dias de atraso.

Resultado: voluntários limpam as praias do Nordeste sem equipamentos adequados. E quando começam a aparecer os problemas de saúde provocados pelo contato com o óleo, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, diz que o governo fez tudo certo. E insinua que um navio do Greenpeace pode ter derramado óleo em águas brasileiras. Falando desde a China, Jair Bolsonaro ecoa seu ministro: "Pra mim, isso é um ato terrorista. Esse Greenpeace só nos atrapalha". A Marinha brasileira, que centraliza as investigações, ainda não identificou culpados. Mas o ministro e seu chefe decidiram que é preciso aperfeiçoar os erros.

Pensamento do dia


Que o Brasil não brinque com fogo

Uma parte deste continente latino-americano está em chamas, com graves convulsões sociais. Há quem acredite ou espere que, depois do Chile tomado por manifestações de protesto contra o Governo, chegará a hora também de o Brasil sair às ruas para protestar “contra tudo o que está aí”.

Será verdade? O perigo existe porque se acumulam, de um lado e de outro, reivindicações de tipo político e social que as pessoas amontoam todos os dias. E já se percebem tambores de guerra nas redes sociais e nas instituições do Estado. Até os militares parecem estar alarmados e o presidente da República, desde a distante China, já sugeriu que o Exército deve estar preparado para o caso de o incêndio chegar.

Para aqueles que me perguntam agora, da Espanha, se penso que o Brasil pode ser o segundo Chile, minha resposta, que pode ser mais um desejo do que uma profecia, é que o Brasil é um continente que não pretende renunciar aos valores da democracia, por mais imperfeita que seja, para voltar às trevas da ditadura. Uma demonstração é que é visível uma resistência cada vez mais ampla, de todas as categorias, contra as tentações de um Governo autoritário que cada dia mostra novas nostalgias medievais, seja no campo político ou no cultural.

Dito isto, o que o Brasil não pode, nessas horas de convulsão no continente, é brincar com fogo. E os políticos e magistrados que acreditam e pontificam que não devem agir com os olhos postos nas ruas, nas pessoas, mas nas leis, brincam de incendiar o país. Brincam de guerra quando são incapazes de ver que, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, as sociedades já não aceitam passivamente o acúmulo de privilégios daqueles que os governam, algo que às vezes humilha quem tem de trabalhar duro para não conseguir pagar as contas do mês.

Esse acúmulo de privilégios, esse não querer olhar pela janela para ouvir o grito das ruas que pede mais justiça e menos desperdício por parte do poder, é o que pode arrastar o Brasil a seguir o exemplo do Chile. Foi a cínica declaração por parte do poder de que os chilenos deveriam acordar mais cedo ao ir ao trabalho para pegar o metrô que nessas horas é mais barato, o pavio que atiçou o fogo que já fez vítimas mortais. E foi a velhinha aposentada que gritou que um deputado ganhava em dois dias o que ela recebia para viver o mês inteiro. E no Brasil não é igual?

Não se pode brincar com fogo quando, além disso, se está cercado por incêndios em todos os lugares e todos com a mesma origem de descontentamento social. E se pode brincar com fogo de muitas maneiras. Os políticos brincam com ele quando parecem preocupados apenas em acumular privilégios, enquanto milhões de brasileiros estão voltando à pobreza porque não conseguem fazer frente ao aumento da luz, do gás, da gasolina e das compras.

Brincam com fogo os juízes que se servem de seu poder misturando a política com a justiça. Os magistrados do Supremo brincam com fogo quando desde seu olimpo chegam a verbalizar que não têm por que olhar pela janela para saber o que as pessoas querem e pedem porque eles têm de responder apenas à letra da Constituição, como se essa Constituição tivesse sido escrita para outro planeta e não para as pessoas que trabalham e sofrem, que se sacrificam todos os dias e se assustam com os escândalos de corrupção. É verdade que a justiça não pode ir a reboque do que gritam uns e outros e que eles devem ser fiéis ao seu dever de independência ao julgar. Mas tampouco podem agir de costas para a opinião pública que é quem os mantém no poder e alimenta seus privilégios.

Não podem ignorar que existem decisões que são tão graves que devem ouvir a sociedade, como, por exemplo, a de não permitir que um criminoso seja preso antes de passar por todas as instâncias, o que às vezes leva anos e serve apenas para os ricos e poderosos, porque os pobres acabam presos de qualquer maneira. Não podem ignorar que as pessoas comuns entenderão que toda essa fidelidade à letra da Constituição serve mesmo é aos poderosos. Se a lei fosse tão clara que proibisse a prisão depois da condenação em segunda instância por um tribunal, os próprios magistrados não teriam mudado de opinião várias vezes e de novo estão a caminho de mudá-la outra vez.

Acredito que, por exemplo, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, fez muito bem em atrasar a grave decisão que o Supremo está tomando sobre uma questão que chega à consciência dos menos instruídos e que não deve ser tão evidente se o próprio Supremo está dividido ao meio. Este não parece ser o momento mais adequado, pois os ânimos das pessoas estão crispados, para tomar uma decisão que será difícil não ser vista como uma manobra dos poderosos para deter a luta contra a corrupção, que, como estamos vendo, aparece incrustada até no novo Governo que chegou ao poder em boa parte porque fez sua a bandeira contra a corrupção.

Continuo pensando que a vocação do brasileiro é a busca da felicidade e que não pertence à sua essência o espírito guerreiro que hoje se lhe quer ser imprimir. Fez com que me lembrasse do primeiro conselho que Fernanda Montengro, a maior atriz deste país, que continua lúcida e fiel à sua gente aos 90 anos, me deu quando cheguei aqui há 20 anos. Ela me disse: “Se você quer entender os brasileiros, lembre-se de que uma diferença essencial entre os europeus é que nós não temos vergonha de dizer que somos felizes”.

Que essa vocação quase genética para a felicidade, a liberdade e a riqueza cultural não seja profanada por aqueles que podem arrastar o país para incendiá-lo em uma luta que pode acabar em lúgubres presságios de guerra civil. Nesse dia o Brasil teria que mudar de nome ou se reinventar. E o mundo inteiro seria mais pobre, já que o Brasil não é um número no mapa, é também uma maneira de ser e de viver.
Juan Arias

O amigo oculto e a sala da maldade

Os que até recentemente orbitavam em torno do bolsonarismo têm feito revelações que o país precisa ouvir. São alertas importantes das sombras que cercam o novo poder no Brasil. Fabrício Queiroz negocia cargos públicos, como revelou O GLOBO. A deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) confirma o que tem sido dito pela imprensa. Que dentro do Palácio do Planalto funciona um escritório de atividades ilegais de ataque aos supostos adversários do governo. O deputado Delegado Waldir (PSL-GO) alerta sobre a gravidade de o presidente oferecer vantagens para quem apoiasse o filho na liderança.


Só há um caminho seguro: esclarecer todas as sombras que cercam a presidência de Jair Bolsonaro. A administração tem mais de três anos pela frente e já deu para entender que ela trabalha com dois padrões de julgamento: condena nos outros as irregularidades que aceita para si e para os seus.

O que é preciso para que as autoridades que combatem a corrupção no Brasil entendam o caso Queiroz? Ele foge de depoimentos, o MP se contenta com um documento escrito do suspeito, ele se esconde, é encontrado pela imprensa, e agora este jornal traz um áudio incontornável. Nele, o ex-assessor comprova com todas as letras sua continuidade delitiva. Oferece nomeações políticas e pede dinheiro para isso. “20 continho aí pra gente”. Segundo ele disse, “há mais de 500 cargos” no Congresso e pode-se nomear sem que apareça a vinculação “ao nome”. Revela que sabe o cotidiano do gabinete do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Ele estava sendo investigado, fora exonerado há meses, e exibiu sua influência sobre nomeações políticas.

Joice, uma aguerrida bolsonarista até recentemente, próxima do presidente e dos seus filhos, assinou uma lista e foi deposta da liderança, em retaliação. Reagiu contando parte do que sabe. Confirma o que a imprensa vinha divulgando, sobre como os filhos e o entorno do presidente criam e administram perfis falsos da rede para atacar o que eles consideram que são adversários políticos e divulgar mentiras que afetam a reputação desses alvos.

Isso é uma anomalia intolerável. O que está sendo revelado é que uma parte da comunicação do presidente da República é clandestina e age de forma ilegal usando como arma a prática de crime da calúnia e difamação. Isso se faz dentro de um gabinete no mesmo andar onde o presidente despacha e os salários dos difamadores são pagos pelos contribuintes. Do Rio, sem qualquer vinculação funcional com a administração federal, o vereador Carlos Bolsonaro é o porta-voz virtual do presidente da República e o coordenador dessa comunicação das sombras. O general Otávio Rêgo Barros faz seu dedicado trabalho de comunicação da Presidência, com seus briefings diários e respostas técnicas para a imprensa. Mas isso é apenas parte da comunicação de Bolsonaro. No mesmo palácio funciona essa “sala da maldade”, ou “gabinete de ódio”, que faz o trabalho sujo, pratica crimes, assassina reputações, constrói mentiras e as dissemina na rede. Os alvos podem ser políticos, jornalistas, pessoas vistas como adversárias, e até integrantes do governo. Eles já conseguem demitir ministros, como o general Santos Cruz.

O ex-líder Delegado Waldir disse que iria implodir o presidente ao divulgar um áudio. Perguntado depois sobre qual áudio, ele alertou que o que fora divulgado mostrava o presidente oferecendo vantagens e recursos para quem ficasse ao lado do filho dele. “Eu considero isso muito grave.” E é. Bolsonaro apenas insinua, mas suas palavras são claras. “É o poder de indicar pessoas, de arranjar cargos no partido, é promessa para fundo eleitoral,” diz o presidente a um correligionário pedindo a esse interlocutor que apoiasse seu filho Eduardo.

Tudo isso que está sendo revelado pelos ex-amigos e pela imprensa é gravíssimo. O dinheiro dos funcionários do atual senador Flávio, que passava pela conta de Queiroz, não está sendo investigado por ordem do ministro Dias Toffoli, do STF, até que seja julgado o poder de compartilhamento que tinha o extinto Coaf. Mas o deputado Delegado Waldir alerta que “a rachadinha nunca parou”, e Queiroz afirma no áudio: “salariozinho desse aí, cara, para a gente que é pai de família, cai como uma uva”. Tudo isso cai sobre a democracia brasileira. Não como uva. Como ameaça.
Míriam Leitão

O corredor estreito

Afirmar que o desenho institucional de um país importa para que a democracia se consolide de forma estável e sustentável virou lugar comum nos estudos comparados de política. Sabe-se, por exemplo, que regimes presidencialistas em ambientes multipartidários requerem que o Executivo seja constitucionalmente e politicamente poderoso para que tenha condições de governar por meio de coalizões majoritárias. Sem esses poderes, um presidente minoritário perde capacidade de atrair apoio político, especialmente no Legislativo, e passa a enfrentar problemas e custos crescentes de governabilidade.

Já na versão bipartidária, o presidente não necessita ser tão poderoso para governar, especialmente quando seu partido possui maioria de cadeiras no Legislativo, situação que é conhecida como governo unificado. Na condição de minoria, entretanto, seria esperado maiores problemas governativos para o chefe do Executivo, pois a divisão de preferências entre o Executivo e Legislativo estaria conflagrada.

Em seu novo livro, “The Narrow Corridor: States, Societies and the Fate of Liberty”, Daron Accemoglu e James Robinson argumentam que além do desenho institucional entre os poderes, um outro elemento seria fundamental para que a democracia liberal floresça e se consolide de forma intertemporal: uma sociedade forte.


A liberdade requer a presença de um Estado forte. Entretanto, os autores rejeitam a ideia de um Estado superpoderoso, uma espécie de “Leviatã despótico”, como chamam no livro, cujos cidadãos aceitariam a repressão política para obter em retorno à segurança pessoal e de seus investimentos como a única forma de evitar conflitos violentos.

Accemoglu e Robinson propõem uma alternativa intermediária, uma espécie de “Leviatã algemado”, capaz de oferecer ordem política, social e econômica de forma menos repressiva. Os autores consideram que essas “algemas” seriam representadas por uma sociedade forte. Democracia liberal, portanto, também necessitaria de uma sociedade forte.

O corredor estreito do título do livro se refere assim ao espaço em que um Leviatã algemado transita, cercado de um lado por um aparato estatal forte e eficaz, e do outro por uma sociedade vibrante e atuante, os dois constantemente em tensão um com o outro numa espécie de equilíbrio dinâmico.

Entrar no corredor estreito também tem implicações econômicas. Para Accemoglu e Robinson, o Leviatã algemado teria a potencialidade de criar oportunidades e incentivos e assim promover prosperidade econômica. Nem o Leviatã despótico nem o aprisionamento excessivo a normas, segundo os autores, podem incentivar o tipo ideal de empreendedorismo.

O corredor estreito seria assim uma metáfora adequada que captura a percepção do caminho que uma democracia liberal deveria constantemente percorrer com limites impostos pela sociedade ao invés de atravessar de uma só vez. O caminho histórico percorrido entre Estado e sociedade, portanto, não é visto como destino, mas como escolha.

O Brasil ao longo da sua história mais recente tem feito a sua escolha de constituir um Estado forte, delegando uma ampla gama de poderes constitucionais para que o presidente tenha condições de governar em um ambiente fragmentado. Para evitar que esse executivo poderoso se transformasse em um Leviatã despótico, também constituiu um arcabouço vigoroso de organizações de controle com capacidade de impor limites.

Mas como lembram Accemoglu e Robinson, sem uma sociedade forte e vibrante, a democracia brasileira correria riscos de recuo do liberalismo. A vigilância constante da mídia a desvios cometidos pelos governos de plantão, independente da sua coloração ideológica, é um bom exemplo de restrições sociais que qualificam a nossa democracia.

Portanto, entrar no corredor da democracia liberal não é fácil. Ficar lá é ainda mais difícil.

Gente fora do mapa


Tempestade perfeita

A crise que ameaça dizimar o PSL expôs as entranhas do governo de Jair Bolsonaro e de seus filhos, que ao abrirem fogo contra o partido no qual estavam abrigados evidenciaram os desencaixes e atritos que a embriaguez provocada pelo sucesso eleitoral teimava em ocultar.

Até as eleições de 2018 o PSL era um pequeno feudo controlado por Luciano Bivar. A vitória nas urnas foi bombástica e o partido tornou-se a segunda maior bancada da Câmara, repleta de deputados eleitos no embalo de Bolsonaro. Permaneceu como um agregado sem visão de mundo clara, sendo levado a trafegar pela direita para acompanhar as circunstâncias. Insinuou-se como base de um governo que carecia de sustentação parlamentar.

O crescimento não é processo indolor. Nos partidos políticos costuma vir acompanhado da ampliação das disputas internas por espaços de poder e influência, que invariavelmente se traduzem em lutas pelo controle da máquina partidária, a começar do diretório nacional e chegando aos cargos de liderança em âmbito estadual e no Legislativo. As alas mais fortes tendem a subordinar as demais.


Bastou que o clã Bolsonaro apresentasse suas pretensões imperiais, e o fizesse com a delicadeza e a sutileza que o caracterizam, para que o PSL começasse a soltar fumaça por todas as ventas. A sujeira veio para fora de uma só vez.

O atrito repercutiu no heterogêneo território da extrema direita, uma força que crescia desde o governo Dilma Rousseff e foi repentinamente projetada para o primeiro plano da política nacional. De emergente que era, o movimento ganhou musculatura e autoconfiança, ingredientes com os quais passou a se sentir “dono do País”.

Acontece que a extrema direita no Brasil nem de longe se aproxima de suas congêneres europeus e norte-americanos. Faltam-lhe, antes de tudo, uma doutrina, um pensamento, um grupo de intelectuais minimamente qualificados, órgãos de divulgação e formação de quadros. A própria base material em que opera lhe é adversa: não há imigrantes, estrangeiros “perigosos”, ameaças iminentes à “Pátria imaculada”, o supremacismo não casa com a sociedade brasileira, o racismo não provoca orgulho em ninguém. Sua casa são as redes sociais, onde ela deita e rola, os templos evangélicos e os bolsões fanatizados de lealdade ideológica. Seu negócio é a guerra cultural e a retórica agressiva.

A extrema direita brasileira concentrou-se em questões morais – família, religião, valores, tradições, comportamentos, sexualidade – e em apelos apopléticos contra a esquerda, a social-democracia, o demônio, a corrupção, a “velha política”, o ambientalismo, a globalização, temperando tudo com uma mistura esquisita de “autoridade estatal” e ultraliberalismo econômico. Encontrou nesses pontos sua força e seu limite. O mix de temas mostrou-se indigesto demais, dificultando a coesão do movimento, que evoluiu sem rumo à espera do que Bolsonaro faria enquanto “mito”.

A cada mau passo do governo, o movimento estremece. A conduta beligerante do clã Bolsonaro excitou a extrema direita tanto quanto a confundiu. O mal-estar cresceu à medida que a família presidencial apresentou suas pretensões de acúmulo de poder e autoproteção, abandonou a luta contra a corrupção e incorporou as mesmas práticas antes atribuídas à “velha política”, num quadro em que o governo pouco realiza em termos políticos, econômicos e administrativos.

Uma tempestade perfeita começou assim a se formar. O governo governa mal e pouco. Agora, já não dispõe de um partido leal. A falta de coesão da extrema direita é um complicador. O clã Bolsonaro não se mostra com liderança à altura para utilizar de forma adequada os recursos de poder de que dispõe. Quer tudo e mais um pouco. Obriga-se a entrar na “velha política”, mas não sabe nela se mexer: é um elefante na cristaleira. Permanece sem um pensamento, uma proposta. Tem os olhos grandes, mas só enxerga o próprio umbigo.

Flerta com o haraquiri ao comprar briga com o partido que o sustentava na Câmara e deveria ter sido tratado como reserva de valor, seja para o governo conseguir governar, seja para que o clã se saia bem nas eleições municipais de 2020 – base para que possa cogitar de sua reprodução em 2022. Bolsonaro cava uma trincheira para proteger seu crescente isolamento, fato que faz seu governo flertar com a crise institucional. Planta ventos e fogueiras. Poderá levar o País a um beco sem saída.

O PSL apostou em escalar a crise. Ameaçou seguir a ideia do deputado paulista Júnior Bozzella, que declarou que a “missão” do partido seria “salvar o Brasil dos filhos do presidente”. Os bolsonaristas, porém, suaram a camisa e avançaram. Por ora, há um grito parado no ar. Armistícios protocolares, no entanto, não serão suficientes para que se tenha paz duradoura. Inexistindo densidade política ou ideológica na disputa, a guerra se arrastará como uma boa briga de vizinhos para saber quem espalhou a pior fofoca.

Controlar o PSL faz parte de uma manobra maior. Sem ter ideias consistentes, sem conseguir competir com o Congresso na condução de uma agenda reformadora, o clã Bolsonaro precisa exibir suas posses. Dominar um partido despedaçado é sonhar com um simulacro de poder absoluto. Pode servir para intimidar adversários e coagir aliados, mas não será suficiente para dar um eixo à extrema direita ou melhorar o desempenho do governo. É um poder de fancaria. Tanto que a caravana continua a girar, conduzida pelo Congresso, que é de fato o poder que tenta governar o País.

Depois de uma tempestade perfeita, não há certeza de bonança. Sem adequada correção dos estragos, a crise espalhará seus venenos pelo sistema, que já anda bastante abalado. Tempestades desse tipo, porém, podem trazer alguma depuração, como janelas de oportunidade que permitam às pessoas enxergar o mundo com mais generosidade e cuidado.

É para onde devem estar a olhar os democratas.

Provocações

A primeira provocação ele aguentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.

Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.

Foram lhe provocando por toda a vida.


Não podia ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.

Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.

Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.

Estavam lhe provocando.

Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.

Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a ideia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.

Terra era o que não faltava.

Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.

Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.

Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano… Então protestou.

Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:

– Violência, não!
Luis Fernando Veríssimo

Politização do desastre: Governadores do NE x Bolsonaro em novo round

Não cessa com o passar dos dias o pavoroso e estranho desastre que suja de óleo cru, quase piche – os corais raros, pródigos manguezais, fauna e flora marinha e areias das praias, em mais de 200 localidades, recantos turísticos preciosos do Atlântico Sul, em todos os nove estados da região Nordeste do país. Ao contrario, o problema ganha corpo, o mistério se expande e começa exibir outra triste face: a politização do fenômeno de tons inéditos, que cresce e faz mais ruídos. Sem que se saiba de onde vem e quem causou este crime, que alcança também a gente que vive à beira do oceano e seus recôncavos.


Além de duro golpe ambiental, social e econômico – o turismo é uma das forças motrizes do trabalho e da circulação de riquezas na região ­- do ponto de vista político, é o que se pode chamar de o terceiro round da briga ideológica dos governadores “de esquerda”, donos do poder nos 9 estados nordestinos, contra o governo “de direita” da União, comandado pelo presidente Jaír Bolsonaro. Briga que degenera em arruaças de parte a parte, até em atos vis, tipo a sujeira largada em frente ao Palácio do Planalto, por ativistas da ONG Greenpeace, que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, denomina de “ecoterroristas”. O presidente da República acompanha tudo da Ásia.

O vice, general Hamilton Mourão, , no exercício da presidência, tenta abafar o conflito. Até determinou a entrada em operação de 5 mil homens, integrantes de tropas fardadas, baseadas na região militar de Pernambuco, para ajudar no trabalho insano e diário, de voluntários e equipes especializadas de órgãos governamentais, para conter o avanço das placas de óleo, que esta semana alcançaram Morro de São Paulo, importante destino turístico da Bahia, receptor de milhares de visitantes nacionais e estrangeiros todos os anos.

O choque entre o presidente Bolsonaro e ocupantes do poder no NE vem de longe. Desde suas primeiras escaramuças com o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B). Mas o primeiro round de arrepiar se deu contra Rui Costa, petista baiano, na inauguração do Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, que levantou faíscas no ar. O segundo embate foi também na Bahia. Enquanto o presidente participava da entrega, no Vale do São Francisco, de moderna experiência de geração de energia eólica, sobre plataformas flutuantes instaladas no Lago de Sobradinho, os governadores optaram por não ir ao ato. Se reuniram em Salvador, para a formar o chamado Pacto do Nordeste, espécie de declaração de guerra ao Governo federal. O encontro reuniu os nove governadores da região: à frente o anfitrião Rui Costa (PT) e o comunista Flávio Dino, do Maranhão.

Trava-se agora, à margem do piche no mar e nas praias, o terceiro momento desta luta política e ideológica. Envolve desta vez, mais diretamente, o governador Paulo Câmara, de Pernambuco, chamado de “espertalhão” por Bolsonaro, no auge do desastre ambiental sem precedentes na costa nordestina. Em dura carta aberta, os donos do poder do Pacto do Nordeste saíram em defesa do pernambucano, em novo ataque ao governo federal. Enquanto isso, ativistas da causa ambiental convocam comício para este fim de semana no Farol da Barra, praia emblemática no coração da Baia de Todos os Santos, atingido pelo óleo cru. Como dizia o personagem de Jô Soares em antiga chanchada do cinema nacional: “Vai dar bode!”. A conferir.
Vitor Hugo Soares

Mudanças climáticas reforçam desigualdade no mundo

Enquanto secas, inundações e incêndios estampam as manchetes em todo o mundo, o preço mais alto está sendo pago por aqueles que já são pobres ou marginalizados.

Estas são as conclusões de um estudo recente dos pesquisadores Noah S. Diffenbaugh e Marshall Burke. A pesquisa revelou que a diferença econômica entre países ricos e pobres teria sido menor sem a crise climática.

"O Produto Interno Bruto [PIB] da Índia é aproximadamente 30% menor do que teria sido sem aquecimento", afirmou Diffenbaugh, coautor do estudo, em entrevista à DW. Ele acrescentou que o PIB per capita do Brasil está em torno de 25% abaixo da provável taxa se não tivessem ocorrido mudanças climáticas.

Oito dos dez países mais afetados por eventos climáticos extremos – como furacões e chuvas de monções – entre 1998 e 2017 foram países em desenvolvimento com renda baixa ou média-baixa, segundo o Índice Global de Risco Climático da Germanwatch.

"Regiões como o Sudeste Asiático são muito vulneráveis, não apenas porque são frequentemente atingidas, mas porque não têm recursos para lidar com o impacto", disse David Eckstein, coautor do índice da Germanwatch, em entrevista à DW.


Embora os desastres naturais não sejam algo novo, as mudanças climáticas aumentam sua frequência e intensidade, dificultando para os afetados enfrentar os impactos. "Muitas vezes, esses países estão em processo de reconstrução e são atingidos novamente por um evento", disse Eckstein.

De acordo com a Oxfam International, os dois ciclones que atingiram Moçambique em rápida sucessão no início deste ano deixaram 2,6 milhões de pessoas precisando de comida, abrigo e água limpa. Milhares tiveram que procurar por um novo lugar para morar.

E segundo a instituição suíça Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno, eles estavam entre os sete milhões – de um total de 10,8 milhões de pessoas forçadas a deslocamentos internos entre janeiro e junho deste ano por causa de desastres relacionados ao clima e terremotos.

Mas mesmo as pessoas que não vivem em extrema pobreza correm o risco de se tornar pobres, disse à DW Harjeet Singh, chefe de política climática da ONG ActionAid International. Ele visitou recentemente o mangue arbóreo de Sundarbans, em Bangladesh, onde a terra foi engolida pelo aumento do nível do mar.

"As pessoas de lá tinha recursos, mas suas vidas foram completamente devastadas pelos impactos das mudanças climáticas", disse Singh. "Elas caíram no ciclo da pobreza."

Singh disse ter testemunhado uma situação semelhante no Delta do Saloum, no Senegal, onde o aumento do nível do mar dificulta o cultivo ou a pesca das comunidades. É desta forma que as pessoas "se tornam ultra pobres e migram sem recursos e se tornam mão-de-obra não qualificada nas áreas urbanas", acrescentou.

As disparidades econômicas devido às mudanças climáticas não são exclusivas dos países mais pobres. Um estudo de 2017 publicado na revista Science afirmou que temperaturas mais altas em estados dos EUA, como o Arizona, levarão a um uso mais intenso de sistemas de refrigeração, o que implicaria num maior uso de energia e custos mais elevados para consumidores.

No entanto, alguns estados americanos mais ao norte poderiam se beneficiar com o uso reduzido de sistemas de calefação, entre outros fatores. No Maine, por exemplo, no extremo nordeste americano, o Produto Interno Bruto pode aumentar em até 10%, enquanto no Arizona o PIB pode diminuir em até 20%, segundo o estudo.

Em Madri, mais de 20% das famílias correm o risco de pobreza energética – a falta de capacidade de manter as casas aquecidas no inverno e frescas no verão, segundo apontou um estudo encomendado por autoridades regionais espanholas.

"Pessoas com menos recursos não podem pagar pelo aquecimento ou pelo ar-condicionado e costumam morar em prédios muito mais velhos sem isolamento adequado", disse Cristina Linares, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Espanha, em entrevista à DW. Isso torna as temperaturas extremas particularmente ameaçadoras.

Linares sugeriu que o risco para os lares mantidos por mulheres é entre 35% e 120% superior à média. Mulheres idosas que vivem sozinhas e mães solteiras são particularmente vulneráveis.

A análise atribui isso ao fato de que a pensão média mais alta entre as mulheres em Madri está abaixo da pensão média mais baixa para homens e que em 50% dos casos, as famílias de mães solteiras vivem abaixo da linha de pobreza. As mulheres são frequentemente as mais afetadas pelas mudanças climáticas e carecem de recursos para lidar com os impactos.

"Quando as colheitas fracassam, as famílias em dificuldades são frequentemente forçadas a tirar seus filhos da escola e são sempre as meninas que são afastadas primeiro", afirmou Kiri Hanks, consultora política da Oxfam International, em entrevista à DW.

Tentativas de diminuir a lacuna de desigualdade sem um planejamento adequado podem causar mais danos do que benefícios. Fornecer a todos na Espanha sistemas de aquecimento e refrigeração, por exemplo, ajudaria as pessoas a lidar com temperaturas extremas, mas "isso exacerbaria o problema em sua fonte devido ao maior consumo de energia", segundo Linares.

Eckstein, da Germanwatch, afirmou que iniciativas para ajudar os países a se recuperarem são importantes, "mas o que também é necessário é que esses países se preparem com antecedência".

Ele apontou que Bangladesh melhorou sua posição no Índice Global de Risco Climático porque lida melhor com os impactos das mudanças climáticas do que outros países. Entre outras medidas, Bangladesh construiu barragens para evitar inundações e introduziu sistemas de alerta para acelerar a retirada de pessoas.

Mecanismos de proteção social para ajudar as pessoas a se realocarem e aprenderem novas habilidades também são importantes. "Se a realocação for necessária, deve ocorrer de uma maneira muito bem planejada", disse Singh. Mas como os países afetados geralmente não têm capacidade econômica e técnica para tal, o apoio internacional desempenha um papel decisivo, acrescentou.

Singh disse concordar que o planejamento preventivo é a chave para reduzir a diferença de desigualdade intensificada pelas mudanças climáticas. "Os atores globais atuais estão nos levando a um mundo mais quente em 3 graus Celsius", disse. "Realmente esperamos não chegar a esse ponto, mas nosso planejamento tem que ter isso em mente."
Deutsche Welle