quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Brasil enterra 'Zé Gotinha'

 


Governo perdido e decreto sem dono

Qual é o pior momento para se juntar a palavra “privado” com a expressão “saúde básica” ? Resposta: no meio de uma pandemia, em que temos um ministro da Saúde convencido de que sua única função é obedecer ao presidente, sendo o presidente a pessoa que diariamente atormenta a área com péssimas ideias: ora um remédio sem comprovação científica, ora a negação da ciência, ora a campanha contra a vacina. O governo Bolsonaro conseguiu. Ele vai entrar no livro “Guinness” como o governo mais capaz de ter ideias ruins e na hora errada. Como, por exemplo, quando quis cobrar imposto de desempregado numa escalada de desemprego.

No final, o decreto que o governo havia baixado incluindo as Unidades Básicas de Saúde no Programa de Parceria de Investimentos (PPI) foi revogado. Esta pandemia nos mostrou o valor de se ter o Sistema Único de Saúde (SUS). Público. É conquista da Constituição que o líder do governo Ricardo Barros diz que tornou o país ingovernável. O que dificulta é uma administração sem rumo, atirando a esmo, e agravando as aflições do país no meio de uma pandemia.



Essa ideia de incluir a porta de entrada do SUS num programa que pode levar à privatização é ruim em qualquer momento, mas no meio da maior crise da saúde do mundo é ainda pior. Imediatamente políticos e especialistas se mobilizaram contra o decreto. Diante da reação, o Planalto lavou as mãos e mandou o Ministério da Economia se explicar. Lígia Bahia, professora de economia da saúde da UFRJ e colunista deste jornal, disse que o ministro Paulo Guedes deveria se preocupar com o desemprego, as empresas quebradas e a redução da renda, e completou: o “Brasil precisa de paz”. E paz é o que não temos tido em nenhuma área, notadamente na saúde.



A lista dos afazeres do ministro Guedes é grande. Inclui a resposta que precisa ser dada contra a crise fiscal que o país enfrenta. Os sinais são cada vez mais preocupantes. Ontem, o dólar encostou em R$ 5,80 e obrigou o Banco Central a vender US$ 1 bilhão à vista. O mercado financeiro, que havia comemorado a volta da bolsa brasileira acima dos 100 mil pontos, viu novamente o índice ter uma forte queda diária, voltando aos 95 mil. O investidor pessoa física que saiu da renda fixa para a bolsa precisa ter nervos de aço diante da oscilação dos últimos meses. Quem entrou no início do ano está vendo seu patrimônio reduzido. O país está sem horizonte na economia. Não há um plano para sair da crise. Há apenas ruídos ocupando o lugar de decisões de governo que deveriam ter sido tomadas. Como essa sandice criada pelo decreto das UBS.

Para o Banco Central, contudo, tudo está bem. No dia em que a bolsa caiu 4,5% ele escreveu no comunicado de ontem que “a moderação na volatilidade dos ativos financeiros segue resultando em um ambiente relativamente favorável para economias emergentes”. A propósito, uma comparação feita pela economista Fernanda Consorte entre moedas de países emergentes mostra que o real brasileiro é, como ela disse, o patinho feio. Desvalorizou-se 42%, enquanto a média em outras 15 moedas foi de 12%.

O BC fez o que todos esperavam. Manteve os juros em 2%. Mas foi otimista ao descrever o ambiente econômico. No dia em que a França e a Alemanha decretam novo lockdown ele diz que “no cenário externo, a forte retomada em alguns setores produtivos parecem sofrer alguma desaceleração”. Admite que “algumas leituras de inflação foram acima do esperado”, mas disse que as diversas medidas estão “compatíveis com o cumprimento da meta no horizonte relevante”. O Banco Central admite que o risco fiscal é elevado, mas avisa que não pretende subir os juros — “reduzir o grau de estímulo monetário” — desde que “condições sejam satisfeitas”. E o comunicado diz que estão satisfeitas essas condições: a inflação está abaixo da meta, “o regime fiscal não foi alterado”, e “as expectativas de inflação permanecem ancoradas”.

Por falar em regime fiscal inalterado, a cada dia o governo concede uma vantagem para um setor. Ontem foi sancionada lei que prorroga incentivos à indústria automobilística até 2025, dias atrás foi reduzido o imposto do setor de games, e na semana passada virou permanente um benefício para multinacionais de bebidas na Zona Franca. Cada um, isoladamente, pode parecer pouco, mas o caminho devia ser exatamente o oposto.

Os muitos pontos de não retorno

Várias áreas do conhecimento utilizam o conceito de ponto de não retorno (tipping point) para designar fenômenos em que, uma vez atingido uma massa crítica ou ponto crítico, dispara-se uma mudança brusca de padrões de comportamento. É a gota d’água.

As ciências sociais utilizam o conceito para explicar mudanças de costumes da sociedade, como a moda e novos valores. Na saúde, para designar quando uma curva normal de contágio se transforma em epidemia.

O conceito tem sido empregado na questão ambiental. Alguns modelos experimentais preveem a substituição em grande escala da floresta amazônica por vegetação semelhante à savana até o final deste século. Uma vez atingido um certo nível de desmatamento, reduzem-se o ciclo de chuvas e a umidade da floresta, ampliando ou produzindo incêndios. Aumentam os eventos climáticos e o ritmo de degradação acelera, não sendo possível regenerar o bioma.



O cientista Carlos Nobre acredita que a floresta amazônica está chegando no ponto de não retorno, pelas secas prolongadas, pela temperatura média mais elevada e pelo comportamento das espécies – as mais adaptadas ao clima seco prosperam, enquanto as de clima úmido morrem em ritmo recorde.

Também se usa esse conceito na criminalidade urbana. A julgar pelo crescimento das milícias no Rio de Janeiro e também em São Paulo, há razões para temer a existência de um ponto de não retorno. Pesquisadores apontam a atuação das milícias em todo tipo de atividade: de proteção a serviços públicos. Áreas verdes são desmatadas para loteamento e construções. Há sinais de infiltração em instâncias do poder público e associação com o narcotráfico.

Na economia há também aplicação do conceito de ponto de não retorno. Mudanças bruscas de expectativas dos agentes econômicos podem ocorrer em função de alguma informação nova ou nível crítico atingido por alguma variável econômica relevante (threshold).

Ataques especulativos contra a moeda de um país – como os da década de 1990 no Brasil, quando o câmbio era controlado –, podem decorrer de avaliação de investidores de que o estoque de reservas internacionais atingiu nível crítico e o banco central não teria mais como defender a moeda.

No início do processo de impeachment de Dilma, houve relativamente rápida reversão de tendência e alívio de expectativas inflacionárias e de confiança de empresários, por conta da perspectiva de correção da política econômica.

No contexto atual, a percepção sobre o compromisso com a disciplina fiscal pode ser gatilho para mudanças bruscas de expectativas. As projeções de inflação e taxa Selic estão bem comportadas – 3,1% e 2,75%, respectivamente em 2021 –, e refletem o cenário básico dos analistas, que certamente têm como hipótese central a manutenção da regra do teto. É provável que estejam reduzindo a probabilidade desse cenário, em função dos sinais de baixa convicção de Bolsonaro com a disciplina fiscal. Se, por alguma informação nova, se convencerem que o teto será furado, atualizarão suas projeções e utilizarão um cenário alternativo. As mudanças nas projeções poderão ter saltos.

O mesmo vale também para a disposição de investidores de financiar a dívida pública, que poderá se reduzir mais rapidamente.

Não à toa o Banco Central faz seus alertas sobre o problema fiscal. Mudanças de cenários podem ser bruscas.

Não se sabe ao certo quando um ponto de não retorno será atingido. Geralmente se percebe quando é fato consumado, pela mudança de regime. Correções de rumo tornam-se mais difíceis ou mesmo impossíveis.

Em vários aspectos, o Brasil está em situação crítica. A falta de informações e de transparência – não há dados confiáveis sobre o dano ambiental e não há dados consolidados e amplos de segurança pública – e a negação dos problemas pelo poder público sugerem que estamos brincando na beira do precipício com olhos vendados.

É necessário um ponto de não retorno também da sociedade, mudando seu comportamento e dando um basta.

A natureza de Bolsonaro não mudou nem mudará

A natureza do escorpião aflora em qualquer circunstância, mesmo no meio da travessia do rio, naquela hora em que ele não consegue se conter e dá a ferroada fatal nas costas do sapo que o carrega — e, claro, morrem os dois afogados. Assim é Jair Bolsonaro, comandado por sua natureza incontrolável: autoritário, desagregador, paranóico em suas relações políticas e institucionais. Ingênuos foram aqueles que, lá atrás, ainda antes da eleição, achavam que seria "tutelado" por um ministro liberal e um bando de generais. Mais ainda os que, em tempos recentes, acreditaram que alguma mudança se operava num presidente acuado por investigações que recuou temporariamente nos arreganhos institucionais e fez uma aliança com o Centrão.


Bolsonaro não mudou e nem mudará. Apenas mostrou que é mais esperto do que muitos supunham, deixando de lado o enfrentamento aberto e midiático com o STF — que tem o destino de seus filhos, e o seu próprio nas mãos — e montando, com cargos, favores e etc, uma base fisiológica para evitar um impeachment no Congresso. Esse comportamento, politicamente lógico e razoável, porém, não transformou o presidente. O rio é largo e a travessia, longa.

E lá está agora o escorpião ferroando os militares, desautorizando — ou permitindo que sejam desmoralizados por terceiros — Eduardo Pazuello, Hamilton Mourão, Luiz Eduardo Ramos e quem mais estiver em seu caminho para 2022. Ou quem ele achar que estiver. Que o diga o ex-porta voz Rego Barros, que perdeu uma promoção a general de quatro estrelas por estar no Planalto e agora foi enxotado de lá.

Bolsonaro não hesitará em negar à população brasileira o imunizante contra o veneno do coronavírus se sentir que alguém, como o governador João Doria, poderá tirar partido político disso. Junta-se aos lunáticos para xingar a vacina “chinesa" e acusar de “pressa" os brasileiros que, muito compreensivelmente, querem se imunizar para não morrer de Covid.

Não, Bolsonaro não mudou e nem mudará. A próxima ferroada pode ser em qualquer um, inclusive nos políticos, sejam eles do Centrão ou não. Afinal, de quem será a culpa pela agenda frustrada de reformas e pela paralisação do Congresso que assusta o mercado, afugenta os investidores e faz o dólar subir? Do escorpião é que não. Quem ainda não percebeu isso, e apóia esse governo acreditando que poderá mantê-lo sob controle, já foi ferroado e está, muito provavelmente, sob aquele torpor do envenenamento que precede o desfalecimento irreversível.
Helena Chagas 

Quatro faces da Besta

O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios

O avesso da democracia

O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), acha que a Constituição “só tem direitos” e que “é preciso que o cidadão tenha deveres com a Nação”, razão pela qual defendeu um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte que, afinal, redija a Carta de seus sonhos.

Se falava apenas em seu nome, o deputado revelou-se por inteiro: é dos que enxergam direitos, especialmente os sociais, como empecilhos à eficiência do Estado. Se falou em nome do governo que representa, fez exatamente o que dele esperava seu guia, o presidente Jair Bolsonaro, que sempre que pode demonstra desconforto com os limites impostos pelo pacto democrático representado pela Constituição.

Todos sabem que a Constituição tem defeitos que precisam urgentemente ser corrigidos. Este jornal há tempos defende uma ampla reavaliação da Carta promulgada há mais de três décadas, especialmente em relação aos muitos dispositivos que gravaram na pedra constitucional uma série extensa de políticas públicas que jamais deveriam estar lá, pois, graças à sua natureza circunstancial, devem ser atualizadas ou canceladas conforme mudam os governos, avançam os tempos e variam as receitas disponíveis.

Mas não é disso que o deputado Ricardo Barros pareceu falar. Sua proposta soou muito mais radical: reescrever a Constituição como se estivéssemos a trocar de regime. Isso fazia todo o sentido em 1988, ano da promulgação da atual Constituição, como ato de coroação da transição da ditadura para a democracia, tendo como corolário o resgate dos direitos sociais. Hoje, não faz sentido nenhum – a não ser que o bolsonarismo se considere um novo regime, a clamar por uma nova Carta que o consagre.




Esse espírito já está claro para todos há muito tempo. Até bem recentemente, o presidente Jair Bolsonaro, de viva voz ou por meio dos camisas pardas que o representam, dedicava toda sua energia para atacar o Supremo Tribunal Federal e o Congresso sempre que estes lhe recordavam de seus deveres constitucionais. “Eu sou a Constituição”, chegou a dizer Bolsonaro em um dos entreveros. Em outra ocasião, igualmente contrariado com o Supremo, afirmou: “Eu respeito a Constituição, mas tudo tem um limite”.

Então, para Bolsonaro, o limite não é a Constituição, mas sua vontade. Acalenta a ideia de exercer o poder sem peias, sob o argumento de que está legitimado por milhões de votos.

É assim que, a partir do instante em que tomou posse, o presidente vem tentando extrapolar seu poder constitucional – desde a edição de uma medida provisória que atropelava o princípio federativo ao lhe dar a prerrogativa de decretar o funcionamento de serviços públicos durante a pandemia de covid-19, até a interpretação golpista da Constituição de que o artigo 142 lhe garantia o direito de convocar as Forças Armadas para intervir em eventual crise entre os Poderes.

Os exemplos são muitos, e nada disso deveria surpreender, vindo de um político que passou a vida a hostilizar as instituições, a exaltar torturadores e a defender a eliminação física de opositores – isto é, o avesso da democracia.

Em todas as situações em que foram desafiados pelo autoritarismo de Bolsonaro, o Supremo e o Congresso impediram os maus propósitos do presidente, sempre conforme manda a Lei Maior, para irritação dos bolsonaristas, desabituados de limites.

Não é casual, portanto, que o líder do governo na Câmara, qualificado porta-voz das intenções do governo Bolsonaro, tenha declarado que é preciso uma nova Constituição porque na atual, segundo disse, o poder dos órgãos de controle, do Ministério Público e do Judiciário é excessivo. “O ativismo do Judiciário está muito intenso, muito mais do que poderíamos imaginar”, disse o deputado Ricardo Barros.

Os eventuais excessos apontados pelo deputado podem ser corrigidos pelo Congresso, se essa for a vontade dos representantes democraticamente eleitos. Não é preciso uma nova Constituição para isso – a não ser que o objetivo seja eliminar os entraves legais que separam Bolsonaro do poder absoluto que ele tanto deseja.

Pensamento do Dia

 


Quando o presidente abusa dos seus poderes em socorro dos filhos

Se nada havia de anormal, por que a presidência da República tentou esconder o encontro de Jair Bolsonaro com duas advogadas de defesa do seu filho Flávio, o Zero Um, denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por lavagem de dinheiro, apropriação de parte dos salários de funcionários do seu gabinete à época em que era deputado estadual, e organização criminosa?

O encontro ocorreu há pouco mais de dois meses no gabinete de trabalho de Bolsonaro que fica no terceiro andar do Palácio do Planalto. Dele participaram também o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, e o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência, órgão encarregado de espionar adversários do governo.

Discutiu-se como salvar Flávio dos problemas que enfrenta na Justiça, e como o aparelho estatal de segurança poderia ajudar na tarefa. As advogadas apresentaram um dossiê onde estão listadas supostas irregularidades cometidas por um grupo de funcionários da Receita Federal no fornecimento de informações sobre as contas bancárias de Flávio a órgãos oficiais de fiscalização.



O governo não diz como o caso evoluiu a partir do encontro. Tudo é segredo. O general Augusto Heleno só falou a respeito quando a imprensa descobriu o uso escandaloso da máquina pública para favorecer o filho do presidente da República. E o que ele disse? Que só participou do encontro porque lhe compete garantir a segurança da família presidencial. Nada demais.

O mundo quase desabou na cabeça da ex-presidente Dilma ao saber-se que ela avisou com antecedência ao marqueteiro de sua campanha em 2014 que a Polícia Federal poderia prendê-lo a qualquer momento. Diz-se, e com razão, que o gesto de Dilma, mais do que uma simples demonstração de afetividade, configura uma clara tentativa de obstrução da justiça.

Ela não poderia ter feito o que fez. Da mesma maneira como Bolsonaro também não. Os dois abusaram dos poderes e dos privilégios do cargo. Acontece que Dilma foi derrubada, mas não por isso. Bolsonaro continua presidente, apesar disso. É investigado porque quis intervir na Polícia Federal em defesa de Flávio e de Carlos, o Zero Dois. O processo dará em nada.

De tanto se sucederem anormalidades desde que Bolsonaro chegou à presidência da República, o país, anestesiado, já não parece se espantar com mais nada. Pandemia é uma gripezinha? Tudo bem. Gripezinha que não matará sequer mil brasileiros? Tudo bem. Cloroquina é o remédio ideal contra o vírus? Tome-se. Vacina só para quem quiser se vacinar? Assim deve ser. Vida que segue.

Os livres ao Paraíso


Apraz-me crer que o Criador preferem entre todas as suas criaturas, justamente as que souberam se tornar livres
Imin Maalouf, " O périplo de Baldassare"

Linguiça

Minha avó Ema usava uma expressão que nunca chegamos a decifrar exatamente, embora seu sentido fosse claro: “Pendura na linguiça”. Uma notícia sem importância, uma informação absolutamente inútil, uma fofoca irredimível? Pendura na linguiça. De onde a vó Ema tirara a linguiça, de que lembrança de um remoto passado rural ela trouxera a frase pronta, ninguém sabia — acho que nem ela. Mas a frase foi adotada pela família. O destino do que era falso ou irrelevante era ser pendurado numa linguiça, na companhia presumível de tudo o que tradicionalmente enche as linguiças.

Grande parte do discurso público ouvido no Brasil não merece outra coisa além de ser pendurado na linguiça. Não se trata de fake news fabricada especificamente para confundir, ou da retórica vazia do discurso político, facilmente caricaturável, nem do folclore instantâneo do mal explicado dinheiro entre as nádegas. Trata-se do discurso oficial, ou pseudo-oficial, do governo, da língua com a qual o poder se comunica e se desnuda, e expõe sua mediocridade. A língua de um governo de generais de fatiota, comandados por um capitão e seus filhos, e dividido em facções que não se entendem só pode ser a língua do caos disfarçado. Pior do que isso é quando o próprio capitão parece ter um gosto pelo caos.

Para um dos seus musicais de sucesso na Broadway, o compositor americano Stephen Sondheim escreveu uma canção em que uma veterana atriz lamenta que sua vida acabou como um circo vazio, sem público, sem brilho, sem amor, sem nada. E ela canta “Que entrem os palhaços”, pois só faltam palhaços para que o cenário da sua tristeza volte a ser um circo. O mesmo melancólico fim nos espera num Brasil que cada vez mais se parece com um circo falido. Para ser um circo, só faltam os palhaços. Onde estão os palhaços? Não é preciso procurá-los. Os palhaços somos nós.

As filas da fome percorrem Nova York

Em meados de março, quando a pandemia do novo coronavírus avançava pelos Estados Unidos, muitos fazendeiros no estado de Nova York foram forçados a se desfazer de sua produção após o fechamento das lojas e restaurantes que abasteciam antes da quarentena. Ao mesmo tempo, os trabalhadores desses estabelecimentos perderam sua renda e começaram a recorrer aos bancos alimentares para sobreviver.

Para remediar o desperdício e a fome — muitas vezes as duas faces da mesma pobreza — a senadora estadual de Nova York Jessica Ramos planejou um circuito de abastecimento, sem intermediários, para alimentar milhares de residentes do Queens, seu distrito — um dos mais atingidos pela Covid-19 —, com a distribuição gratuita de cerca de 16 mil quilos de alimentos por semana.

Os agricultores cobrem os custos da produção e recebem um pequeno lucro, enquanto os vizinhos podem voltar a encher a despensa. Na entrada do espaço onde a distribuição é feita, Ramos conta que há também uma geladeira “para gente do bairro pegar a comida ou, para quem puder, deixar um pouco lá".


Cerca de 1,5 milhão de nova-iorquinos, em uma cidade de quase nove milhões, dependem hoje da distribuição de comida para sobreviver. É a nova pobreza causada pela crise do coronvaírus, que aumentou ainda mais as filas já conhecidas para conseguir alimentos, mas que, em algumas áreas, não tinha tamanha proporção.

— Eu ando muito pelo meu bairro e todos os dias encontro dezenas de novos moradores de rua, a situação é alarmante — explica Ramos, nome novo no Partido Democrata e que alerta para uma emergência “rumo a um inverno muito rigoroso”, às vésperas de uma eleição em que, nos programas econômicos dos candidatos, entre a ostentação pré-pandêmica de Trump e o brinde de Biden à classe média, parece não haver espaço para novas párias.

Em sete meses, desde o início da crise sanitária, os bancos de alimentos da cidade receberam 12 milhões de visitas, 36% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo a ONG City Harvest. A demanda por comida de graça é tanta que foi criado um aplicativo online para pesquisar despensas comunitárias por regiões. Segundo um estudo da Universidade de Columbia, oito milhões de americanos engrossaram as fileiras da pobreza no país desde maio, quando acabou o plano de assistência, como um cheque de US$ 1.200 (cerca de R$ 6 mil) e um pagamento semanal extra de US$ 600 (R$ 3 mil) para desempregados.

— Não estamos falando de moradores de rua, mas de pessoas que tinham dois, três empregos precários, e hoje no melhor dos casos são vendedores ambulantes e com isso conseguem sustentar a família; também de muitas pessoas que, por falta de documentos, não podem solicitar o auxílio — explica Ramos, que continua — Mas embora a pandemia seja uma novidade, o déficit estrutural não é e foi ignorado por muitos anos, e que a Covid-19 só ajudou a evidenciar. A ajuda dos governos é muito limitada, na verdade, os fundos federais para bancos de alimentos foram cortados, o que fortaleceu ainda mais as redes de apoio comunitário. Por exemplo, a geladeira que instalamos na entrada do escritório, disponível 24 horas por dia a semana toda, e que se esvazia imediatamente.

A favor de dar "uma solução política a um problema estrutural", Ramos apresentou um projeto de lei para taxar a fortuna dos bilionários.

— Em sete meses, os habitantes mais ricos de Nova York viram sua renda aumentar em US$ 77 bilhões (R$ 385 bilhões). Pois bem, o imposto que proponho [para combater a crise] seria de apenas um terço disso — explica.

Em junho de 2019, Ramos conseguiu que o Senado estadual de Nova York aprovasse uma lei de comércio justo para 80 mil a 100 mil trabalhadores agrícolas do estado, que pela primeira vez desfrutam de direitos como seguro-desemprego. Graças a essa iniciativa, a senadora os tem ao seu lado para combater a fome.

Além de campanhas específicas como a de Ramos, a maior parte da distribuição de ajuda fica a cargo de organizações humanitárias ou de caridade, muitas delas vinculadas a ordens religiosas. É por isso que os cartazes coloridos da despensa comunitária Love Wins, em Jackson Heights no Queens, sugerem a princípio a presença de uma congregação evangélica, embora a bandeira do arco-íris rapidamente mostre que não é verdade.

Todas as sextas-feiras, cerca de trinta voluntários — alguns deles, beneficiários da ajuda — transformam um bar LGTBI forçado a fechar devido à pandemia em uma despensa para os vizinhos, que formam duas filas (uma exclusiva para idosos) horas antes do início da entrega. Graças aos suprimentos da ONG do chef José Andrés, World Central Kitchen e, desde a semana passada, do banco de alimentos da prefeitura, alimentam milhares de pessoas desde abril.

Carmita Sancho, equatoriana, espera com suas duas filhas pequenas pela comida.

— Meu marido está desempregado há mais de seis meses, e o pouco que economizamos foi para o aluguel de nossa casa, de US$ 1.750 (cerca de R$ 8.750). Tenho mais dois filhos no Equador e não posso mais mandar dinheiro para eles, minha mãe cuida deles, mas ela também depende do que eu mando, então não estamos passando aperto só aqui. Cuidava dos filhos de alguns europeus, mas com o vírus eles foram embora logo depois. Meu marido trabalhava na construção e agora o chamam para trabalhar no máximo cinco dias por mês, com isso não podemos comer — conta Sancho, numa curva da fila de distribuição, que dá a volta no quarteirão, cercada por dezenas de vizinhos asiáticos mais esquivos.

Algumas consequências profundas da pandemia podem ser deduzidas da história de Sancho: o fechamento da torneira das remessas, que manteve viva muitas economias nos países de origem; a incapacidade de pagar as contas e o aluguel — numa cidade em que os preços imobiliários chegam às nuvens —; o iminente horizonte da pobreza energética diante de milhões de norte-americanos enquanto a pandemia se agrava.

— De que adianta terem suspendido os despejos devido à situação de emergência se o proprietário pode cortar a luz ou a água por falta de pagamento, forçando o inquilino a sair? — pergunta Daniel Puerto, um dos organizadores da Love Wins. — O problema era, e é, a falta de moradias populares, a falta de acesso à saúde, a ausência de uma abordagem abrangente das necessidades dos grupos que já estavam à margem do sistema.

Em uma rua que já foi comercial no Lower East Side de Manhattan, que teve um fechamento massivo de suas lojas, três homens negros idosos discutem do lado de fora do velho casarão Bowery, uma missão cristã fundada em 1879 — a antítese em espírito e doutrina da Love Wins — se lhes convêm se cadastrarem no albergue para terem acesso à roupa usada. O outono ganhou de repente um aspecto azedo e a chuva revela a degradação dos prédios, carentes, quase dickensianos na crueza do tijolo.

— Somos velhos conhecidos aí dentro [na missão], eles nos dão comida há muito tempo, mas agora com a pandemia e o frio não poderemos seguir em frente, nem sequer com ajuda — diz um dos homens, enquanto encolhe os ombros, talvez de frio.

Bolsonaro decepciona os generais

Foi já para lá da metade de 2018 que os altos oficiais das Forças Armadas encantaram-se com a popularidade de alguém que surfava a onda disruptiva, que oferecia a oportunidade de se alterar os rumos do País. Hoje levanta-se a tese se houve mesmo uma alternância entre “esquerda” e “direita” em 2018, pois o que se percebe é a prevalência de um sistema pelo qual os donos do poder descritos já há tantos anos continuam acomodando interesses setoriais e corporativos às custas dos cofres públicos, sem visão de conjunto ou de Nação – tanto faz o nome ou o partido.

Além da bem amarrada ou não agenda econômica proposta por Paulo Guedes, foram os militares formados em academias de primeira linha que trouxeram para Bolsonaro o que se poderia chamar, com boa vontade, de “elementos de planejamento” num governo que, logo de saída, titubeou entre entregar a coordenação dos ministérios para uma ala “política” (enquanto se recusava a praticar a “velha” política) ou depositá-la no que era a esperança dos generais: um dos seus como chefe de “Estado-Maior” (a Casa Civil). Hoje se constata que era o primeiro sinal inequívoco do que acabou virando a marca do governo: sem eixo, sem saber como adequar os meios aos fins (supondo que “mudar o Brasil” seja o objetivo final) num espaço de tempo definido (um mandato? Dois mandatos?). Portanto, sem estratégia.

Os militares de alta patente no governo carregaram consigo uma aura de respeito e credibilidade e, em alguns ministérios, de eficiência e competência, mas não estão usufruindo disso. Ao contrário, a reputação deles como grupo está sendo moída em casos como o da Saúde, área na qual o presidente interfere como se entendesse alguma coisa disso, e da Amazônia, com um “governo do B” entregue a quem conhece a área (o general Hamilton Mourão) enquanto o enciumado Bolsonaro deixa que Meio Ambiente e Relações Exteriores pratiquem o “fogo amigo”.



Dois fatores políticos levaram os militares à “confortável mudez” à qual se refere o ex-porta-voz do governo, general Rêgo Barros, na destruidora descrição que fez do esfarelamento da autoridade dos militares num governo que eles nunca controlaram. É “subserviência”, diz o ex-porta-voz, que impede a prática da “discordância leal” (coisa de fato complicada para quem cresceu em hierarquias). O primeiro fator político era a consolidada noção de que governar o Brasil se tornara impossível por culpa de outros Poderes, como Legislativo e Judiciário. Caberia ao grupo militar “defender” o Executivo.

O segundo componente político é mais amplo e difuso. Tem a ver com 2018 e o medo do esgarçamento do tecido social. Os militares “compraram” em boa medida o mantra repetido por Bolsonaro, segundo o qual “as esquerdas”, sorrateiramente postadas atrás da esquina, só estão esperando maus resultados econômicos, crise ainda maior de saúde pública e aumento de criminalidade para promover a baderna que colocará de joelhos o governo e, portanto, o projeto de “mudar o Brasil”. Fugiria tudo ao controle.

Ironicamente, Bolsonaro acabou encontrando seu porto seguro não tanto nos militares, de cuja coesão e capacidade de articulação desconfia (como desconfia de tudo ao redor). O presidente acomodou-se no conforto do Centrão e na capilaridade que esse conjunto de correntes políticas, desde sempre empenhadas em controlar o cofre e a máquina pública, exibe em todas as instâncias decisivas no Legislativo e também do Judiciário, onde acaba de ser colocado no topo um ministro para o Centrão chamar de seu.

“Jair preocupou-se mais com seus filhos e reeleição do que com o País”, queixou-se, confidencialmente, um dos militares que chamam o presidente pelo primeiro nome. O desabafo do general Rêgo Barros não é simplesmente o de um indivíduo decepcionado. É de um grupo desarticulado.