domingo, 17 de novembro de 2019

Dono do Brasil


A pele branca e o mito da paz racial na América Latina

Em uma imagem, como em um texto, é quase tão importante o que aparece quanto o que não aparece. Um exemplo? Qualquer imagem da Argentina. Vamos olhar. E formular uma pergunta elementar: onde estão os negros? Porque a Argentina teve muitos escravos de procedência africana. De acordo com o censo de 1778, de 24.363 habitantes (os indígenas não eram contados), um terço era de negros e pardos. No Exército do Norte comandado pelo general José de San Martín, 60% da tropa era negra. Em meados do século XIX, entre 800.000 habitantes, pouco mais de 100.000 eram pardos e somente 20.000 eram negros. Posteriormente foram desaparecendo, sem que as causas sejam bem conhecidas, ainda que seja possível intuí-las: foram utilizados sistematicamente como carne de canhão na primeira linha de batalha, foram mantidos na pobreza e na insalubridade, foram empurrados ao branqueamento da pele através da mestiçagem.


Em relação às populações nativas, sofreram o extermínio na chamada Conquista do Deserto e sucessivas campanhas militares, como as do general Roca, e foram depois consumidas pela marginalização. Hoje, apenas 2% dos argentinos se consideram membros das etnias originárias.

A Argentina, dizíamos, é um simples exemplo de uma realidade continental. Sobre alguns elementos, como as denúncias de frei Bartolomé de las Casas contra a crueldade exercida sobre os nativos no começo do século XVI, e o fato de que muitos colonizadores espanhóis tiveram descendência com nativas, se construiu um peculiar mito segundo o qual na América Latina a questão racial seria menos sangrenta do que na América de colonização anglo-saxã. É, de fato, um mito.

A questão racial continua sendo um dos pontos fundamentais dos conflitos políticos, especialmente nos lugares em que são mais numerosos os membros de populações nativas e os descendentes de escravos. Jair Bolsonaro sabia que estava ganhando votos quando, após visitar uma comunidade quilombola em 2017, comentou jocoso que “o afrodescendente mais magro ali pesava sete arrobas” e que não serviam “para nada”. “Já não servem nem para procriar”, comentou, rindo.

A Bolívia é o único país latino-americano em que os povos nativos são maioria: 62% dos habitantes, de acordo com dados das Nações Unidas. Quem quiser captar a essência do conflito político e social que ameaça destruir o país deve levar muito em consideração esse fato. Seria bem engraçado escutar os argumentos do novo e espantosamente ilegítimo Governo (ilegitimidade que não justifica os desmandos cometidos por Evo Morales) sobre como são pagãos, selvagens e desprezíveis os índios com suas polleras (traje típico) e sua Pachamama, se não fosse pelo fato de que essas pessoas que assaltaram o poder com a Bíblia na mão encarnam o horror do supremacismo mais estúpido.

É difícil entender, a essas alturas, o prestígio de uma pele branca. O caso é que esse prestígio se mantém. O caso é que todas as oligarquias dessa parte do mundo (caudilhos e burocratas da revolução) veneram a pele branca e a origem europeia de antepassados tão famélicos e desesperados como qualquer imigrante. O caso é que as coisas não têm solução razoável se esse delírio da raça não for superado previamente.

A síndrome de Odorico Paraguaçu

Odorico foi o personagem central e inesquecível da novela da Globo “O Bem Amado”, genialmente concebido por Dias Gomes com a interpretação magistral de Paulo Gracindo e um elenco recheado de artistas talentosos.

A fonte de inspiração do autor foi o que Platão, depreciando a democracia ateniense, chamava de “teatrocracia” e o que Bill Clinton disse sobre a política: “é igual a Hollywood, só que com gente feia”.

De fato, o protagonista interpretava o prefeito de Sucupira, um dos grotões desse imenso Brasil, município imaginário na Bahia, mas em nada diferente do que os estudiosos chamam de “realpolitik”. O edil nordestino era a síntese da cultura que permeia a política brasileira, com todos cacoetes da grandiloquência, do embuste, da esperteza e o completo desprezo pelos mínimos sinais das propaladas “virtudes republicanas”.

Porém, Odorico e seus pares, os prefeitos, pagaram a conta maior da ridicularia. Enquanto isso, autoridades das outras esferas metiam “a boca no capim”, como disse um prócer partidário, ao ser nomeado para um cargo que “tinha poço”. Todo prefeito, justa ou injustamente, é tido como portador da síndrome de Odorico Paraguaçu.

No entanto, a solução dos grandes problemas nacionais passa pelo poder local. E não é difícil entender. Nos municípios que estão na base da pirâmide federalista, o mundo real se revela. Neles, o governo de proximidade não lida com abstrações: desnutrição não é um conceito científico, é a pessoa sem pão, sem feijão; desemprego não é uma situação socioeconômica, é o sujeito pedindo ou assaltando nos semáforos; mortalidade infantil não é um dado estatístico, é o desespero do pai de família que bate na porta do prefeito ou do vereador.

E assim sucede com todas as carências: no município a necessidade tem cara de gente; as prioridades estão à vista, clamando para serem atendidas; as soluções são mais simples, criativas e baratas.

Paradoxalmente, para começar a falar em pacto federativo, o primeiro e o passo fundamental é aprovar a PEC que propõe, a partir de 2026, a incorporação e fusão de municípios com menos de 5.000 habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total (1.253 municípios, sendo que Serra da Saudade (MG), Borá (SP) e Araguainha (MT) têm, respectivamente, 781, 837 e 935 habitantes).

De 1988 a 1996, aconteceu a “farra” dos municípios: foram criados cerca 1200, dividindo penúria e somando votos. Odorico Paraguaçu é inocente. Só queria inaugurar um cemitério.

Deus, Pátria e Família

Deus, Pátria e Família era o lema do integralismo, movimento de inspiração fascista fundado por Plínio Salgado em 1932. Deus, Pátria e Família é o lema da Aliança pelo Brasil, partido lançado pelo presidente Jair Bolsonaro em 2019.

Os dois grupos de ultradireita são separados por 87 anos e duas ditaduras. Unem-se no apelo à fé, ao nacionalismo e ao anticomunismo para mobilizar seguidores e disputar o poder.

Os integralistas buscaram referências na Europa. Salgado chegou a ser recebido por Mussolini, que comandava a Itália com seus milicianos de camisas negras. Voltou decidido a copiar o modelo de Estado autoritário, com partido único, hierarquia rígida e submissão total ao chefe.

Alguns rituais do fascio foram abrasileirados. A saudação com o braço esticado ganhou a companhia do grito indígena “Anauê!”. Em tupi, a palavra significa “Você é meu irmão”. Os integralistas desfilavam de camisas verdes e, a exemplo dos nazistas, se engalanavam com braçadeiras. No lugar da suástica, exibiam a letra grega sigma.

“O símbolo lembra que o nosso movimento tem o significado de integrar todas as forças sociais do país na suprema expressão da nacionalidade”, explica o site da Frente Integralista Brasileira, que cultua a memória e o ideário de Salgado.

Na quinta-feira, o grupo celebrou a reciclagem do lema pelo partido de Bolsonaro. “É mais uma demonstração do quanto estão vivos os ideais essencial e sadiamente cristãos e brasileiros do integralismo”, festejou, nas redes sociais.

O historiador Odilon Caldeira Neto, da Universidade Federal de Juiz de Fora, vê traços de continuidade entre os dois movimentos. “O integralismo ajudou a formar uma cultura política nacionalista e autoritária”, explica.

Autor do livro “Sob o Signo do Sigma: Integralismo, Neointegralismo e o Antissemitismo” (Eduem, 2014), ele acompanha os pequenos grupos que se espelham em Salgado. Depois da extinção do Prona, do ex-deputado Enéas Carneiro, eles se aproximaram do PRTB, do vice-presidente Hamilton Mourão.

Com a eleição de Bolsonaro, os neointegralistas encontraram um governo partilha suas bandeiras ultraconservadoras. Isso não significa que a Aliança pelo Brasil seja uma nova versão da Ação Integralista Brasileira. O mundo é outro, os personagens também.

Plínio Salgado cultivava veleidades intelectuais. Circulou com os modernistas e escreveu cerca de 70 obras. Bolsonaro e seus filhos não têm intimidade com os livros: preferem os vídeos do guru Olavo de Carvalho. O líder integralista admirava Mussolini, fuzilado em 1945. A família presidencial mira-se em Donald Trump, que sonha com a reeleição em 2020.

Na campanha, o capitão usava uma camiseta com a frase “Meu partido é o Brasil”. Para o historiador Caldeira Neto, a criação da Aliança reforça o caráter antissistêmico do bolsonarismo. “Ela nasce como um partido e, ao mesmo tempo, como um antipartido”, define. Ao mesmo tempo, o clã promove uma “purificação” na tropa, abandonando os dissidentes no PSL.

No que isso vai dar? “Ainda é uma incógnita”, diz o professor da UFJF.

De curtos-circuitos e centelhas

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.

Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.

Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.

No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.

A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.

Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.

A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.

Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.

Gente fora do mapa

Há 652 mil pessoas na miséria só no Rio 

A política é uma folia

Jair Bolsonaro demitiu o partido que lhe servia de cavalo e anunciou a fundação de um novo partido, o Aliança pelo Brasil, a partir do zero. Faz sentido —zero é mesmo o patamar dos partidos políticos brasileiros, exceto pelas subvenções que eles recebem do dinheiro público. Como Bolsonaro se diz defensor desse dinheiro, o mais econômico seria que se filiasse a um dos 32 partidos já existentes. Poupá-lo-ia, inclusive, de achar para seu partido uma denominação que o distinguisse dos outros 32.

Todas as combinações possíveis já pareciam esgotadas. Apenas entre os que comercializam a sigla trabalho, temos o Partido Trabalhista Brasileiro, o Partido Democrático Trabalhista, o Partido Trabalhista Cristão, o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e —epa!— o Partido dos Trabalhadores.


Na área socialista ou social-democrata, temos o Partido Socialista Brasileiro, o Partido Social Cristão, o Partido Social Democrático, o já citado e meio coringa Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e o Partido da Social-Democracia Brasileira, o falecido PSDB. E alguém sabia que o ex-partido de Bolsonaro, o PSL se chama Partido Social Liberal?

Não há quem se entenda nessa algaravia de siglas: Pode, Pros, PCO, PTC, PRTB, PSTU. Há um PSB, um PSC e um PSD —quando virá o PSE? O dito PCO é o Partido da Causa Operária, com 3.688 filiados que chegam de kombi. Há o PMB, Partido da Mulher Brasileira, que, dizem, tem mais homens do que mulheres como adeptos. E a Justiça Eleitoral está analisando os registros de mais 76 partidos, entre os quais o Partido Militarista Brasileiro e o Partido Nacional Corinthiano.

Vou sugerir ao pessoal do Bola a criação do Partido Nacional do Bola Preta. Se a política é uma folia, um partido que leva para as ruas dois milhões de foliões no Carnaval pode arrasar nas urnas.

Caminho dos 'eleitos'

A Aliança pelo Brasil é o caminho que escolhemos e queremos para o futuro e para o resgate de um país massacrado pela corrupção e pela degradação moral contra as boas práticas e os bons costumes
Programa do novo, e nono, partido do presidente

Tomar dinheiro de desempregado é covardia

O doutor Paulo Guedes garantiu a sua presença nos anais da ciência econômica: propôs a taxação dos desempregados para financiar um programa de estímulo ao emprego. Não se conhece iniciativa igual no mundo, nos séculos afora.

Pela proposta da "ekipekonômica", os brasileiros que recebem o seguro-desemprego, que vai de R$ 998 a R$ 1.735, pagarão de R$ 75 a R$ 130 como contribuição previdenciária. O sujeito perdeu o emprego, não tem outra renda, pede o benefício, que dura até cinco meses, e querem mordê-lo em 7,5% do que é pouco mais que uma esmola.

Se isso fosse pouco, no mesmo pacote a ekipekonômika desonerou os empregadores que aderirem ao programa do pagamento de sua cota previdenciária de 20%. Tinha razão o poeta Augusto dos Anjos, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”, mas o doutor Paulo Guedes afaga para cima e apedreja para baixo.


Tomar dinheiro dos miseráveis era coisa comum no tempo da escravidão. Em 1734, para combater “a ociosidade dos negros forros e dos vadios em geral”, a Coroa cobrava quatro oitavas de ouro a cada bípede livre que vivia na região das minas. Em 1835 a Assembleia da Bahia tomava dez mil réis de todos os negros libertos nascidos na África. Esse imposto rendia um bom dinheiro, algo como 7,6% do orçamento da província. Eram tungas de outra época.

No século 21, a ekipekonômica de Guedes quer arrecadar R$ 11 bilhões em cinco anos com argumentos mais refinados e cosmopolitas. Como o programa de estímulo ao emprego (e à propaganda oficial) gera despesa, deve-se indicar uma fonte de receita para custeá-lo.

Sob o céu de anil deste grande Brasil, os doutores miraram no bolso dos desempregados que conseguem acesso ao seguro, um benefício restrito aos trabalhadores do mercado formal. Em julho, 11,7 milhões de pessoas trabalhavam sem carteira assinada.

O argumento dos doutores pode ser uma girafa social, mas parece matematicamente correto. É intelectualmente desonesto porque o programa de estímulo ao emprego dos jovens durará só até 2022, enquanto a tunga do seguro dos desempregados ficará para sempre.

Há três semanas, neste espaço, Eremildo, o Idiota, propôs que junto com a discussão do fim dos incentivos à energia solar se pensasse também na cobrança de um imposto aos desempregados, pois eles usam os serviços públicos e não contribuem para a caixa da Viúva. Eremildo é um cretino assumido e se orgulha disso.

Amazônia Centro do Mundo

Neste momento, na Terra do Meio, coração da maior floresta tropical do planeta, uma formação humana inédita está reunida para criar uma aliança pela Amazônia. É um encontro de diferentes em torno de uma ideia comum: barrar a destruição da floresta e dos povos da floresta, hoje devorada por predadores de toda ordem. Entre eles, as grandes corporações de mineração e o agronegócio insustentável. É também um encontro para salvar a nós mesmos e as outras espécies, estas que condenamos ao nos tornarmos uma força de destruição. Nesta luta, devemos ser liderados pelos povos da floresta – os indígenas, beiradeiros e quilombolas que mantêm a Amazônia ainda viva e em pé. Este é um encontro de descolonização. Por isso, não um encontro na Europa nem um encontro nas capitais do Sudeste do Brasil. Deslocar o que é centro e o que é periferia é imperativo para criar futuro. Na época em que nossa espécie vive a emergência climática, o maior desafio de nossa trajetória, a Amazônia é o centro do mundo. É em torno dela que nós, os que queremos viver e fazer viver, precisamos atravessar muros e superar barreiras para criar um comum global.

Em busca de soluções para barrar o desmatamento e o extermínio da biodiversidade, Davi Kopenawa Yanomami, Socorro de Barcarena, Anita Juruna, Isis Tatiane da Silva, Bedjai Txucarramãe, Raimunda Gomes, Mitã Xipaya, Chico Caititu, Mukuka Xikrin, entre outras lideranças indígenas, quilombolas e beiradeiras hoje estão sentados em círculo conversando com as jovens lideranças do movimento Fridays For Future Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, da Bélgica, e Elijah Mackenzie, do Reino Unido, com os ativistas do movimento Extinction Rebellion Robin Ellis-Cockcroft, Alejandra Piazzolla e Tiana Jacout e com a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot. Nesta roda pela vida da Amazônia estão também alguns dos mais inspiradores cientistas e pensadores do Brasil: o cientista da Terra Antonio Nobre, o arqueólogo Eduardo Neves, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze, o engenheiro florestal Tasso Azevedo e o cientista social Maurício Torres.

Todas estas pessoas deixaram suas casas e seus países convidadas por mim, pelo Instituto Ibirapitanga, pelo Instituto Socioambiental e pela Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Iriri. Algumas viajaram semanas num barco à vela, para conhecer de forma profunda, com seu corpo no corpo do território, a floresta e os povos da floresta. É instinto de sobrevivência o que as move, mas é também amor. É movimento de vida numa geopolítica que impõe a morte da maioria para o benefício e os lucros da minoria que controla o planeta. É uma pequena grande COP da Floresta criada a partir das bases. Aqui, não há cúpula.


Ao final desta travessia, parte deste grupo se somará ao grande evento chamado Amazônia Centro do Mundo, que começa às 17 horas deste domingo, 17 de novembro, em Altamira. Os movimentos sociais do Xingu e as organizações da floresta, além da Universidade Federal do Pará – campus Altamira, estão conjurando os brasis e os brasileiros a deslocarem seu corpo para o verdadeiro centro do país e do planeta para criar uma aliança pela Amazônia. Estes, que agora estão na floresta, levarão suas vozes para que sejam somadas a destas outras vozes. Neste centro, nos conjugamos no plural e nos realizamos no coletivo.

Em Altamira, o grupo da floresta encontrará lideranças históricas, como Antonia Melo, do movimento Xingu Vivo, e Antonia Pereira, da Fundação Viver Produzir e Preservar. Também Jackson Dias, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), religiosos como os bispos Dom Erwin Kräutler e Dom João Muniz e a sacerdotisa de umbanda Mãe Juci D’Óyá. Também artistas do Xingu e de outras regiões do Brasil. Algumas das vozes mais representativas da Amazônia atenderam ao chamado para virar uma voz só em defesa da floresta e de seus povos. Altamira, epicentro da destruição da Amazônia, será epicentro de uma aliança pela vida. Buscamos a paz para todos, humanos e não humanos – e não apenas para alguns.

Lideranças de grande expressão estão trazendo seu conhecimento para encontrar soluções para manter a floresta e seus povos vivos: entre elas, Raoni, indicado para o Nobel da Paz, Maria Leusa Munduruku, representante de um dos povos indígenas que mais lutam pela integridade da floresta e da bacia do Tapajós, Michael Heckenberger, um dos mais renomados arqueólogos do planeta.

No encontro Amazônia Centro do Mundo haverá população da cidade e da floresta. E também os produtores rurais que colocam alimento na mesa da população, aqueles que respeitam os povos tradicionais e atuam preservando a Amazônia, porque sabem que dela depende o seu sustento. Sabemos que há fazendeiros que destroem a floresta, mas também sabemos que há agricultores que a respeitam e têm mudado suas práticas para responder aos desafios do colapso climático que atingirá a todos, produtores que respeitam a lei e a democracia e que também querem viver em paz. Pessoas que perceberam que precisam não apenas parar de desmatar, mas reflorestar a floresta.

O fim do mundo não é um fim. É um meio. É o que os povos indígenas nos mostram em sua resistência de mais de 500 anos à força de destruição promovida pelos não indígenas. À tentativa de extermínio completo, seja pela bala, seja pela assimilação. Hoje, meio milênio depois da barbárie produzida pelos europeus, as populações indígenas não apenas não se deixaram engolir como aumentam. E erguem, mais uma vez, suas vozes para denunciar que os brancos quebraram todos os limites e constroem rapidamente um apocalipse que, desta vez, atinge também os colonizadores: a maior floresta tropical do mundo está perto de alcançar o ponto de não retorno. Dizem isso muito antes do que qualquer cientista do clima. Alguns de seus ancestrais plantaram essa floresta. Eles sabem.

Como Raoni tem repetido há décadas:

“Se continuar com as queimadas, o vento vai aumentar, o sol vai ficar muito quente, a Terra também. Todos nós, não só os indígenas, vamos ficar sem respirar. Se destruir a floresta, todos nós vamos silenciar”.

Os humanos, estes que sempre temeram a catástrofe na larga noite do mundo, tornaram-se a catástrofe que temiam. Alteraram o clima do planeta. Ameaçaram a sobrevivência da própria espécie na única casa que dispõem. Mas não todos os humanos. Uma minoria dos humanos, abrigada nos países desenvolvidos demais, consumiu o planeta. As consequências, porém, já são sentidas pelas maiorias pobres e pelos povos que não cabem nas categorias de rico e de pobre impostas pelo capitalismo.

Na Amazônia brasileira, estes povos são principalmente indígenas, beiradeiros (ou ribeirinhos), e quilombolas. A ONU chama de “apartheid climático”, mas talvez apartheid pressuponha que os que estão fora queiram entrar. Essa crença de que o desejo maior de todos aqueles que não consomem é se sentar à mesa do consumo. Como é a crença de que tudo o que uma “nação” deve querer é crescer infinitamente, como se isso fosse possível. Não. Estes outros que são chamados de povos tradicionais não querem entrar, se tornar também eles devoradores de mundos. Eles querem que não destruam esta casa a qual pertencem, mas não possuem nem querem possuir. Querem apenas viver nela segundo seus próprios termos. Porque são parte dela, são outros e o mesmo.

Enquanto isso se passa na Amazônia há séculos, em 2018, no lado de lá do mundo, uma garota de rosto redondo, uma trança loira de cada lado, postou-se sozinha diante do parlamento sueco. Ela fazia uma greve escolar pelo clima. “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”, dizia. Aos 15 anos, Greta Thunberg, hoje o mundo inteiro conhece o seu nome, inspirou um movimento de resistência que abarcou o planeta.

Inspirada por ela, outras adolescentes, como Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, na Bélgica, e Luisa Neubauer, na Alemanha, levaram milhares de jovens às ruas de vários países da Europa, Oceania, Ásia, África e América. Já na primeira greve global, em março de 2019, mais de um milhão de crianças e adolescentes deixaram a escola para denunciar a falta de políticas públicas para enfrentamento do colapso climático e para barrar os grandes poluidores do planeta. Também em 2018, o movimento Extinction Rebellion (Rebelião contra a Extinção) bloqueou as pontes de Londres e se espalhou por outras cidades do mundo, defendendo a desobediência civil e não violenta para evitar a extinção em massa e a aniquilação da biodiversidade do planeta.

A geração climática encarna a primeira grande adaptação psíquica e comportamental ao Antropoceno, esta nova época geológica em que os humano tragicamente substituíram a natureza como força dominante do planeta. Pela primeira vez, os filhotes são obrigados a proteger o mundo que seus pais e avós destruíram e destroem com afinco. Deve ser aterrorizante lutar contra adultos que acreditam que o melhor que podem fazer por um filho é “lhe dar tudo”, quando é justamente este “tudo” de materialidades que vem arruinando a Terra. Os meninos e meninas europeus que vão às ruas estavam inscritos na infância protegida, esta infância que na época do colapso climático já não pode ser. Quando vão para as ruas apontar o dedo contra o sistema que exauriu o mundo, estão sinalizando também a passagem para um outro conceito de infância.

O que esses jovens europeus que lutam pelo clima talvez não saibam é que são também índios. Sua forma de compreender seu ser/estar no planeta é muito mais semelhante a dos povos originários, com os quais nunca conviveram, para além de referências distantes em livros e exposições, do que semelhantes a de seus avós e bisavós. A compreensão de que a Terra é casa e que a “casa está em chamas”, como diz Greta, os lançou numa outra inscrição. Nesta inscrição parecem ter se tornado capazes de reconhecer outras gentes e também as outras gentes de si.

É desta percepção que parte a ideia deste encontro na floresta amazônica. Deslocamos o que é centro e o que é periferia para recolocar o que estava deslocado. Numa época de emergência climática, vale repetir mais uma vez, o centro do mundo é a Amazônia. A cada 24 horas, a maior floresta tropical do planeta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera. Pela transpiração. A floresta transpira e salva o planeta todos os dias. Como aponta Antonio Nobre, cientista de Gaia, não há como conter o superaquecimento global sem manter a floresta criando rios voadores. Uma apoteose cotidiana não alcançável por nenhuma das obras-primas da arte humana.

Mas o centro do mundo é a Amazônia também porque nela habitam os povos que sabem como viver no planeta sem destruí-lo, os povos que compreendem, das mais diversas maneiras, que a sua carne é a carne da Terra. Os povos que também são floresta. Os povos com os quais os brancos precisam aprender, se eles ainda estiverem dispostos a ensinar, depois de tudo o que a chamada “civilização” fez contra os seus corpos.

O encontro entre outros e outros acontece na floresta profunda, no lugar chamado Terra do Meio, na bacia do Xingu. Um mosaico de terras indígenas, reservas extrativistas ocupadas por beiradeiros, uma estação ecológica e um parque nacional. Os não índios, os não beiradeiros, os não quilombolas fizeram o gesto de se deslocar até o coração da floresta que é também coração do planeta. Vieram para falar. Vieram principalmente para escutar. E sentir. Os rios, as árvores, seus povos humanos e não humanos. Reconhecem, com o deslocamento do corpo, a centralidade da floresta.

Vieram para a criação de uma aliança pela Amazônia. Vieram também para a refundação de um humano outro, um que possa ser múltiplo. Este encontro, este de corpo encarnado no corpo encarnado da floresta, de todas as florestas que compõem a floresta, é o ponto inicial de uma tessitura de múltiplas centralidades. É também um gesto de rompimento dos muros e das barreiras que não param de se reproduzir sob o domínio dos déspotas eleitos – e seus nacionalismos que deixam apenas os corpos que já exauriram de fora, depois de já terem devorado as riquezas naturais de seus mundos. Nesta época de nacionalismos de ocasião, os que vêm de dentro e de fora vêm também para mostrar que não há fora, que somos +um+um+ na única casa que temos. A potência desse gesto é tecer o comum na horizontalidade colorida de nossas diferenças.

É imensamente simbólico que as jovens ativistas climáticas Anuna De Wever e Adélaïde Charlier tenham escolhido alcançar a Amazônia de barco à vela desde a Europa. Não mais saltar sobre os mundos. Mas percorrê-los, por semanas, no gesto de alcançar o outro e encontrar a si mesmas. Desta vez as caravelas são de descolonização. Este é um encontro para descolonizar o pensamento e também a ação. E é, sim, um encontro de índios. Os que sabiam que eram, os que só descobriram agora.

Bem-vindos ao centro do mundo.