terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Pensamento do Dia

 


O autêntico nocivo

Bolsonaro é o autêntico. Assim vai percebido por parcela relevante da população. E não adiantará argumentar que autenticidade não seja qualidade per se. Tampouco explicar que essa autenticidade seja produto — nada novo — de personalismo extremo, ao qual se soma a pregação permanente de polarização para guerra, comando confundido com ser politicamente incorreto. Nem que sua autenticidade tenha a mesma consistência da de um sociopata. Ele é o mito. Muitos anos sob mentalidade autoritária nos trouxeram até aqui.

Bolsonaro elegeu-se vendendo também a imagem de alguém que quebrava a liturgia de Brasília. Num país com baixa cultura republicana, e com tradição personalista, isso é um tesouro para a modalidade de populismo que representa.

Impossível não associar essa concepção de homem público original à maneira como soube explorar as demandas antipolíticas derivadas do lava-jatismo. O sujeito que é autêntico porque nada deveria ao sistema. É desde essa farsa que arma sua carcaça de líder popular — um poderoso que sai do palácio de moto, simulando improviso, para jogar porrinha numa padaria. Porque pode; porque é gente como a gente; porque está limpo.


Isso é investimento de longo prazo, cujos dividendos são colhidos em eventos como o recente encontro com artistas numa churrascaria, pouco depois do episódio “leite condensado”. Bolsonaro estava acuado. E reagiu conforme seu padrão, com a agressividade revestida de fala do povo — resposta de alguém que se apregoa como perseguido e que, injustamente caçado, insurge-se dizendo, com coragem, o que de hábito só se diria em privado. E então cresce.

Ele é limpo — este, o pressuposto. E, porque limpo, não pode admitir que o queiram desonrar — daí que estoure. Sua linguagem é recebida como manifestação de homem difamado, que se defende com indignação — autorizado a tudo. É a vítima e o mito ao mesmo tempo. Bolsonaro tem o termômetro da acolhida de seus “enfia no rabo”. É o zap profundo onde circula influentemente. Confrontá-lo nesse campo é perder de goleada; o terreno em que se sente à vontade, o da briga de rua, e para o qual sempre quererá levar os críticos. Na rinha, vencerá.

O Bolsonaro autêntico vencerá também — já está testado — se confrontado somente com o Bolsonaro nem tão limpo assim; ele próprio gerador de ao menos três décadas de farto material para evidenciar a constituição da mentira eleita à Presidência. E daí? O estelionatário eleitoral, presidente a serviço de corporações, está na vitrine desde 2019, aquele que chamava qualquer negociação de toma lá dá cá, e que agora governa com o mais despudorado comércio de poder — e não balança. Aí está, exaurida, sua história de deputado pendurado nas tetas do Estado, desde onde montou bem-sucedida empresa familiar — e nada.

Não produz efeito mostrar que chegou a presidente engordando nas mesmas bordas fartas do sistema que tornaram Arthur Lira um elemento competitivo. Tampouco explorar a formação de seus gabinetes — aí incluídos os dos filhos. Ou alguém acha que a máquina para peculato movida no de Flávio, com a adesão de milicianos, foi invenção do primogênito? Neste caso, com Queiroz e tudo, os abalos, poucos, só serviram de gatilho para que se blindasse.

O Bolsonaro autêntico precisa ser enfrentado — com praticidade — na cancha da pandemia. Ter expostas, com provas, as consequências da forma como cultiva deliberadamente a peste. O estado de calamidade que tenta perenizar, dependente que é do caos, sendo o mesmo que lhe desguarnece o flanco.

O brasileiro tem de ser informado, com dados, de que sua vida está paralisada — com miséria aos mais pobres — porque o presidente opera para que a pandemia se prolongue; donde se prolongará o desemprego. Sua presidência é deletéria em termos objetivos. Está aí a inflação. Isso é o que deve ser dito e ilustrado. Que, fosse por Bolsonaro, só haveria, em fevereiro de 2021, dois milhões de doses de vacinas no Brasil; carga comprada à Índia por preço duas vezes maior que o pago pela União Europeia. Que, por gestão de Bolsonaro, o país não tem adquirido volume de doses capaz de imunizar a população. Isso se documenta, inclusive à luz do Código Penal.

A comunicação desses fatos será ainda mais importante, porque logo estará restabelecido o auxílio emergencial, e ele passará a colher as popularidades decorrentes da geração oportunista de dificuldades.

Para desconstruí-lo é preciso mostrar que o Brasil vacina parcamente os seus porque o presidente quer; porque se negou, em agosto de 2020, a contratar 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer; porque até agora nem sequer iniciou tratativas para adquirir a promissora vacina da Janssen.

Para simplificar: que tal bater na tecla da incompetência de Bolsonaro?

É claro que se trata de um autocrata golpista. O golpismo, porém, depende de 2022. E ele só não será reeleito se a percepção sobre o autêntico abarcar o que a autenticidade não exclui: que seja um governante nocivo. Esqueçamos, por ora, a problematização de sua moralidade. Bolsonaro é um presidente péssimo, cujos atos pioram a vida dos que sobrevivem à peste que ele não quer erradicar. Isso é o que deve ser repetido. Sei que não é apenas um incompetente. Mas estou convencido de que só a exploração política dos efeitos de sua incapacidade poderá derrotá-lo.

O pai dos Bolsonaro tchutchucas é o Centrão e a mãe é a Joana

A Câmara dos Deputados é a casa do povo, onde ele se faz representar nos seus interesses de classes, grupos e profissões, cujo denominador comum devem ser as aspirações nacionais comuns; o Senado Federal é a casa dos estados, onde as aspirações nacionais comuns se colocam acima dos interesses dos diferentes segmentos da população, mas sempre em consonância com o pacto federativo. No sistema bicameral, um e outro funcionam como peso e contrapeso na elaboração das leis.

No Brasil, infelizmente, a Câmara e o Senado se tornaram a casa daquela mãe de filhos cujo único objetivo é defender e aumentar o seu próprio quinhão e o das camarilhas à qual pertencem. A mãe, no caso, é a Joana. Câmara e Senado nunca foram grande coisa na Nova República, eleitos que são por um maioria de pobres diabos que funcionam como massa de manobra, para além dos alienados que se recusam a estabelecer conexão causal entre o que vai por Brasília e as próprias vidas. Ambas as casas se deterioraram de tal forma desde o início do século, contudo, que a exceção criminal e o simples folclore de ontem passaram a ser regra hoje. Cabe até assassina. Pioramos de povão? Pioramos de classe média? Pioramos de elite? Talvez a deterioração legislativa espelhe mesmo um declínio geral. Especulo.



Fato é que temos agora uma Câmara presidida por um investigado por corrupção em dois processos e que sempre esteve do lado errado do balcão, o senhor Arthur Lira. No Senado, um parlamentar de primeira viagem, sem nenhum projeto de lei aprovado e mais preocupado em defender os seus interesses privados no mercado de ônibus, aquele mesmo que castiga cotidianamente os mais pobres, é quem dá as cartas como poste de espertalhões mais tarimbados. É o senhor Rodrigo Pacheco. Nada disso é exatamente novidade, mas vai de encontro às expectativas de renovação que parte dos brasileiros começaram a nutrir depois da Lava Jato. Que as aspirações nacionais sejam esquecidas de vez: os apetites do Centrão, do qual ambos são representantes e que mantém o presidente da República como refém, são a única coisa a ser saciada. Arthur Lira, aliás, não demorou a mostrar a que veio logo no seu primeiro ato, ao anular uma decisão do seu antecessor, para tentar afastar partidos adversários da composição da mesa diretora da Câmara. O Centrão quer tudo.

É esse esfaimado Centrão que tem como refém e cúmplice o presidente da República que, por ironia sádica do destino, elegeu-se prometendo acabar com o fisiologismo traduzido como “tomo lá dá cá”. Que arrebanhou votos em 2018, apesar da sua mediocridade como parlamentar e do seu discurso maluco, ao afirmar que apoiaria e ampliaria a Lava Jato — mas acabou se juntando alegremente a fisiológicos e corruptos, para exterminar a operação que inspirou e deu esperança a milhões de brasileiros. Constatou-se, afinal de contas, que ele apenas retornava àquela que sempre foi a sua famiglia.

Ontem, na vergonhosa eleição para a presidência da Câmara, o deputado Kim Kataguiri, protagonista de uma candidatura de protesto, vocalizou da tribuna a indignação aqui fora. Chamou Bolsonaro e seu filhos de “família de quadrilheiros, vagabundos e corruptos” e calou a boca de Eduardo Bolsonaro, que esboçou uma reação no plenário: “Me processa e ganhe na Justiça. Não tem culhão para isso. Tem culhão para ficar falando na internet. Chega no plenário é tudo tchutchuca do Centrão, é tudo venda de voto.”

O pai dos Bolsonaros tchutchucas é o Centrão e a mãe é a Joana. A casa do povo e a casa dos estados foram dominados e dominam o Palácio do Planalto.

Pior líder mundial? Vamos dar a ele o Congresso!

Jair Bolsonaro é considerado o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Não existe vacina disponível para a grande maioria da população brasileira. A economia patina após um soluço de recuperação à custa de auxílio emergencial e a desigualdade, depois do mesmo soluço, é maior que no início da pandemia.

Qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Simples: dar a este presidente o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam bastante, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de mais sacrifício a gastos que deveriam ser prioritários.

Parece impossível de entender, e é mesmo. A política vai mostrando que não tem nenhum compromisso com as preocupações reais do Brasil, as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, e que viu na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até a cueca na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment, a única coisa que aflige de fato o capitão.


Não importa que, para isso, os partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, as principais siglas mostram incapacidade de projetar as consequências de médio e longo prazo de suas ações, e ignoram a capacidade de Bolsonaro de manter uma base fiel, ainda que minoritária, para construir sua candidatura em cima dos erros dos adversários (além de outros expedientes conhecidos, como fake news, discurso de ódio, negação da política e, agora, rios de dinheiro público).

DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas não levam em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair ainda mais.

E é por isso, pela vida real, que se impõe, que talvez a vitória esperada do presidente nas eleições das Mesas não se configure um respiro longo ou uma melhora efetiva da governabilidade.

Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas no primeiro dia, com mais virulência quanto maior for o desgaste de Bolsonaro nas pesquisas.

O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai demorar, porque o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som e na forma de votações.

Não será simples também a Lira fazer andar a pauta regressiva que Bolsonaro espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante, mesmo que saia derrotada hoje.

A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha.

E o impeachment? Os 60 pedidos que Maia deixa na gaveta deverão ficar lá como um alerta a Bolsonaro de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, pode ser colocado na roda pelo hoje aliado.

Neste caso, aliás, não há que se esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pela persistência do fracasso de seu governo, nem o Centrão vai titubear se tiver de rifar o presidente caso sua popularidade afunde de vez no pântano da pandemia. É como a parábola do escorpião e do sapo, só que a diferença é que os dois companheiros de travessia têm ferrão.

Preço do Brasil

 


Duas Casas de costas para o país

O Congresso virou de costas para a sociedade nesta eleição. Enquanto o país está sendo devastado pela pandemia, atingido pela desastrosa gestão da crise, açoitado pelas ofensas do presidente Bolsonaro, a Câmara e o Senado, como se estivessem em outro planeta, negociavam com olhos em outras questões. Houve ecos, alguns poucos, do que realmente aflige o Brasil, mas o que pavimentou o caminho dos candidatos governistas foram verbas e cargos. Os eventos da sucessão no Congresso terão reflexos na política e na economia.

Na política, houve uma mudança de curso importante, diz o cientista político Jairo Nicolau. O governo Bolsonaro aderiu nesta eleição à construção de uma maioria com base em partidos. Isso significa uma reversão daquela ideia inicial, fracassada por inviável, de ignorar os partidos e fazer acordos com as bancadas. É um equívoco avaliar que houve agora a adesão de Jair Bolsonaro ao centrão, ao fisiologismo e à velha política. Ninguém adere ao que sempre foi. Esse é o seu grupo. Bolsonaro é o que ele definia como “velha política”. Pensou que poderia costurar alianças diretamente com as bancadas temáticas. Não deu certo, porque não daria mesmo.

Bolsonaro fez explícita intervenção no Congresso para, desta forma, afastar o fantasma do impeachment. No Senado, conseguiu um feito impressionante. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi eleito com convincente maioria, juntando votos dos seguidores de Bolsonaro e dos partidos de esquerda. Pacheco conseguiu também tirar do maior partido, o MDB, a presidência da Casa. E o fez com apoios do próprio MDB, que abandonou sua candidata Simone Tebet. Pacheco falou em pacificação, sendo o candidato de um presidente que fez


A equipe econômica via o dia de ontem como uma vitória que permitirá que ela siga com a sua pauta de reformas. O problema é que são reformas de Itararé. As propostas feitas são fracas e não terão impacto fiscal importante. E a tendência é agora de aumento de gastos, por vários motivos.

Uma das fontes de despesa serão os compromissos assumidos com os deputados e senadores que frequentaram a sala do ministro Luiz Eduardo Ramos, onde foi instalado um balcão de negócios que custarão bilhões de reais. Havia outros balcões em outros ministérios. Em alguns deles se ofereceu recursos não rastreáveis porque extraorçamentários. Essa farra deu ao governo a vitória e uma conta para pagar.

O Congresso vai também aprovar uma nova etapa do auxílio emergencial. Os quatro candidatos que disputaram ontem falaram isso nos seus discursos. Como a pandemia não acabou, e até piorou, ao contrário do que a equipe econômica acreditava que estaria acontecendo neste momento, será necessário mesmo. Já deveria ter sido proposto pela própria equipe.

Não haverá contrapartidas suficientemente fortes para esse novo gasto. A PEC emergencial tem vários gatilhos para serem disparados em momento em que for preciso conter gastos. Mas o governo desidratou a proposta que havia sido incialmente formulada pelo deputado Pedro Paulo, como lembrou ontem em conversa com o blog o economista Sérgio Vale. Um dos pontos é o não aumento dos benefícios vinculados ao salário mínimo, porém isso só poderá ser acionado no ano que vem, porque neste já foram corrigidos.

Das outras reformas, de que o mercado financeiro e a equipe econômica tanto falam, a administrativa foi esvaziada pelo presidente antes de ir para o Congresso, a tributária foi ignorada pela própria equipe que mandou apenas a fusão de PIS e Cofins. A privatização da Eletrobras, o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, diz que é contra.

É da natureza do centrão ser governista. Foi nos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. Mas seu apoio é negociado a cada projeto e seu preço costuma ser alto. Curta e baixa é a sua lealdade. No racha do DEM, uma parte voltou à sua natureza de centro fisiológico, abandonando a ideia de ser centro programático entre polos. O PSDB, com raras exceções, ficou no muro onde sempre esteve.

É da natureza do centrão ampliar gastos. Portanto, a vitória de ontem de Bolsonaro foi mais uma derrota para a equipe econômica. O pior, contudo, foi essa dissonância entre o sofrimento do país e os acordos opacos feitos pelo Congresso.

Bolsonaro acha que dispõe de uma base, mas o centrão é que tem o presidente

O primeiro ato de Arthur Lira como novo presidente da Câmara foi uma emboscada. Vitaminado por verbas e cargos já liberados ou prometidos por Jair Bolsonaro, o pajé do centrão obteve notáveis 302 votos. Prevaleceu de lavada sobre o rival Baleia Rossi, que amealhou 145 votos. Ao discursar, Lira soou como se desejasse estender a mão para Baleia e Rodrigo Maia, mentor da candidatura do seu rival. Decorridos menos de dez minutos, verificou-se que seria impossível apertar a mão de Lira. Ele trazia o punho cerrado.

Na canetada inaugural de sua gestão, Lira anulou o registro do bloco de apoio do adversário, que fora referendado por Maia. Fez isso para favorecer o seu próprio bloco partidário no rateio dos seis cargos da Mesa diretora da Câmara. Ao esmurrar o inimigo que já se encontrava na lona, Lira expôs um traço de sua personalidade. Ele é vingativo. Faz lembrar Eduardo Cunha, o ex-presidente da Câmara que a Lava Jato converteu em presidiário. Lira, aliás, foi um fiel aliado de Cunha.

O pretexto invocado por Lira para passar uma borracha no registro do bloco partidário do seu rival foi um atraso de seis minutos na inscrição do Partido dos Trabalhadores, um dos apoiadores de Baleia Rossi. A encrenca parecia superada. Estava entendido entre os líderes partidários que cada bloco ficaria com três dos seis cargos na mesa. O bloco vencedor, por majoritário, apenas teria preferência na indicação do primeiro vice-presidente. Ao PT caberia a primeira secretaria, que é o terceiro cargo mais importante na Mesa. Se prevalecer o arroubo de Lira, o petismo terá de ceder a poltrona para ao partido Republicanos. A encrenca deve subir ao Supremo Tribunal Federal.

A irascibilidade de Lira não chega a ser um exemplo para o neo-aliado Jair Bolsonaro, que também costuma estocar bílis no congelador. Mas o novo presidente da Câmara tornou-se um extraordinário aviso para o inquilino do Planalto.


Hoje, Lira esmurra adversários já nocauteados. Amanhã, desatendido nas demandas fisiológicas do centrão, Lira pode puxar da gaveta um dos mais de 60 pedidos de impeachment estocados na presidência da Câmara, como fez seu ídolo Eduardo Cunha com Dilma Rousseff.

Num ambiente pacificado, o governo já teria enormes transtornos para aprovar propostas do seu interesse no Legislativo, entre elas as reformas econômicas. Numa atmosfera envenenada, o pesadelo será maior. Lira parece interessado em produzir dificuldades para vender —com duplo sentido, por favor— facilidades.

Bolsonaro se encanta com a suposição de que passou a ter uma base congressual. Engano. O centrão é que tem um presidente —mais um.

"Não há um trono no plenário", disse o novo presidente da Câmara no discurso da vitória. "Não há, portanto, um soberano." De fato, Lira não é rei. É réu. Mas alguma coisa está fora do lugar quando uma autoridade precisa trombetear sua pretensa humildade.

Nelson Rodrigues, o célebre cronista, conta o caso de uma senhora brasileira que visitou o papa. Na hora da despedida, Sua Santidade inclinou-se e balbuciou um apelo: "Reze por mim."

Um papa, disse Nelson Rodrigues, pode ter essa modéstia. Arthur Lira, o papa do centrão, talvez cochichasse algo diferente para Bolsonaro: "Reze por si."

A tempestade perfeita

O Brasil se encontra em um ponto muito perigoso da trajetória da pandemia de covid-19, talvez o mais perigoso desde julho do ano passado. Está em formação uma tempestade perfeita que poderá levar o País a experimentar um dramático aumento do número de casos e mortes em decorrência da doença nos próximos meses.

Não se pretende aqui alarmar a população, já angustiada o bastante, mas sim exortar as chamadas autoridades, em especial do governo federal, a cumprirem seu dever constitucional de zelar pela saúde pública e despertar a consciência cidadã para evitar o recrudescimento de uma tragédia que voltou a matar mais de 1,2 mil brasileiros por dia. É inaceitável conviver com isso. Achar normal um patamar de letalidade como esse é aceitar nossa morte como nação.

Três fatos concomitantes compõem a tal tempestade perfeita: 1) circula no País uma nova cepa do coronavírus que é potencialmente mais infecciosa, a variante P.1, identificada pela primeira vez em Manaus (AM); 2) a atuação tíbia do Ministério da Saúde, sob as ordens do presidente Jair Bolsonaro, sabotador de primeira hora de todos os esforços para frear o avanço da doença no Brasil; 3) a irresponsabilidade de muitos cidadãos, que a cada dia parecem mais convencidos de que, se a pandemia não acabou, também já passou o tempo das medidas restritivas e é hora de “voltar a viver a vida”.



Cientistas do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (Cadde), que conta com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), publicaram um estudo no dia 16 passado que revela que a variante P.1 do novo coronavírus tem maior potencial de transmissão.

No dia 27, outro grupo de pesquisadores, oriundos da Universidade de Oxford, do King’s College de Londres, da Universidade Harvard e do Instituto de Medicina Tropical da USP, publicou um artigo apontando a variante P.1 como uma das causas mais prováveis do vertiginoso aumento de casos de covid-19 na capital amazonense, o que contribuiu para levar o sistema de saúde da cidade ao colapso.

A precariedade da testagem e rastreamento de casos no Brasil impede a identificação de outros casos da variante P.1 no País. Sabe-se que apenas em São Paulo, Estado com a melhor infraestrutura para diagnóstico, houve ao menos três casos. Não é improvável que a nova cepa já esteja em circulação em outros Estados.

Em entrevista à TV Cultura, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta alertou que o País corre um sério risco de ter uma “megaepidemia” de covid-19 nos próximos dois meses por conta da circulação da variante P.1, que já está presente em 90% dos casos da doença em Manaus. “O mundo inteiro está fechando os voos para o Brasil e o Brasil está não só aberto normalmente, como está retirando pacientes de Manaus e mandando para Goiás, para a Bahia, mandando para outros lugares sem os bloqueios de biossegurança”, disse Mandetta.

Enquanto isso, aprisionado pelas grades de seus interesses particulares, o presidente Jair Bolsonaro segue imperturbável diante das aflições dos brasileiros. Na última edição de sua live semanal, Bolsonaro recomendou que a sociedade precisa “aprender a conviver com a covid-19”. “Eu lamento as mortes, antes que falem que eu sou insensível”, disse, “mas temos que conviver com esse problema.” Até a quinta-feira passada, quando a famigerada live foi ao ar, o “problema” já tinha causado a morte de 221.676 brasileiros. O que se pode esperar de um governo encabeçado por alguém com esta índole?

É justamente diante da incúria e da brutal insensibilidade de agentes do Estado – muitos dos quais ainda haverão de responder pelos crimes que estão cometendo contra a saúde pública – que deve prevalecer a responsabilidade individual dos cidadãos. Aproxima-se o carnaval e teme-se pela falta de cuidado de muitas pessoas dispostas a ignorar as medidas de prevenção, o que já tem ocorrido em boa medida.

Jair Bolsonaro já basta como embaixador da morte.

Confraria da marginalidade

Senado é omisso e até conivente contra a corrupção.
A degeneração tem sido tão grande que chega ao cúmulo de criar uma confraria, uma associação de interesses que atropela os três Poderes
Lasier Martins, senador (Podemos- RS)

As perigosas mudanças no Cadastro Único, o Bolsa Família e o Brasil rumo ao Mapa da Fome

Se em 2014 o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome comemorou que o país dava um passo à frente com a saída do país do Mapa da Fome, em 2020 assistimos à caminhada do Brasil à índices alarmantes que sinalizam o retorno do país a este Mapa e o empobrecimento das famílias de trabalhadores. Como foi possível, em seis anos, termos uma mudança tão acentuada no combate à fome no Brasil?

Para compreender isso, precisamos pontuar as sucessivas tentativas de mudanças no formato do Bolsa Família, dentre as quais vale lembrar da proposta de sua substituição pelo Renda Brasil ou ainda a tentativa de criação de um 13˚ para o programa — que emergiu em meio aos ataques ao 13˚ dos trabalhadores, então indicado como algo exótico a ser retirado pela reforma trabalhista.

Há um movimento de tentativas para deslegitimar a transferência condicionada de renda enxugando o “custo social”, e para isso, é preciso caracterizar o Bolsa Família como algo moroso e ineficiente. Na prática, este é um movimento de confirmação do abismo social brasileiro, e que busca opor os trabalhadores entre si.

As mudanças no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), recentemente tornadas públicas podem parecer uma questão menor ligada à gestão ou mesmo à simplificação do acesso aos benefícios de programas sociais do governo brasileiro. Porém, estas mudanças podem ser encaradas como mais uma das peças de um quebra-cabeças que ilustra a aceleração da conversão em curso para as políticas de proteção social no Brasil.




As ações de distribuição de cestas básicas têm se multiplicado, a Ação da Cidadania — que, inclusive, teve forte influência na escolha pelo formato das transferências condicionadas de renda, ainda nos programas de governo ao longo dos anos de 1990 — está mais ativa que nunca. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) — em um ato que talvez seja mais simbólico do que consigamos dimensionar agora — foi extinto no início de 2019, os conselhos sociais que permitem a gestão democrática, pública e transparente das ações de proteção social foram, na prática, quase que inteiramente desmantelados.

Este desmantelamento é melhor compreendido se retomamos o fio da narrativa sobre esta conversão, que tem aparecido em episódios — prontamente solapados por sucessivas crises — e muitas vezes de forma fragmentada, mas que envolvem o desmanche, ou no mínimo, a inativação de pilares da assistência social brasileira.

O CadÚnico é um destes pilares, e é a mais recente medida de assistência social a ser atingida pelo desmonte sistemático do sistema atual de políticas sociais. No entanto, o impacto do desmonte deste pilar específico pode passar despercebido, dada a complexidade do programa. De fato, a proposta de mudanças em seu formato, com o autocadastramento por meio de aplicativos para celular implicam, necessariamente, na desativação de toda uma rede socioassistencial organizada a partir desta base informacional, e também do controle, transparência e fiscalização da implementação dos programas sociais.

Se, em meio à convulsão política que experimentamos desde 2015, abriu-se caminho para a aprovação do teto de gastos, das reformas trabalhista e da previdência, agora, tudo indica que os programas sociais são os próximos da fila, enquanto o Bolsa Família passa por um apagão sem precedentes.

Todos estes acontecimentos no campo das políticas sociais, constituem peças deste quebra-cabeça que sinaliza a busca pela alternativa política, social e econômica para a desregulamentação dos programas sociais, na esteira das reformas macroestruturais levadas a cabo em anos recentes.

No entanto, o Bolsa Família é um programa internacionalmente reconhecido e socialmente legitimado. Ainda que receba críticas derivadas de certa aversão àqueles identificados como pobres — a aporofobia manifesta em campanhas políticas ao longo de 2018 e que agora realiza sua potência —, seu tempo de existência e sua abrangência são um peso político a ser considerado para que seja alterado de forma brusca. É convenção econômica e social básica que nenhuma mudança deste porte irá ser operada sem o mínimo de apoio da sociedade, pois o custo político ainda é muito alto.

Aqui entra o desenvolvimento do Auxílio Emergencial. Negociado por uma articulação política diversa, e, sem dúvidas, como uma medida necessária e urgente, efetiva e de curto prazo, se sobrepôs às possibilidades de aumento dos auxílios já existentes e se mostrou alternativa viável de ser implementada. No entanto, por ter sido gestado em meio a um fluxo de ataques sistemáticos às políticas sociais brasileiras, a forma de sua implementação — por meio de autocadastramento — pode vir a ser um balão de ensaio para a desregulamentação dos programas sociais.

A não utilização do CadÚnico como forma prioritária de seleção das pessoas que seriam atendidas e a interrupção da atualização dos dados referentes ao Bolsa Família no CadÚnico, indicam um movimento de atenção importante às parcelas da população que até então não eram atendidas pelos programas sociais, a exemplo o Bolsa Família, pois ficavam fora das faixas de corte de renda. Dentre estes, estão os desempregados, os trabalhadores informais, os pequenos comerciantes, os precários, os autônomos etc... que, de certa forma, forjaram um novo estrato de trabalhadores brasileiros que se beneficiaram não das recentes reformas trabalhista e da previdência, mas de políticas sociais consistentes e estruturais dos governos anteriores, tal como o aumento real do salário mínimo, do acesso ao crédito e do acesso aos serviços sociais em geral.

Se em momentos anteriores o CadÚnico foi elogiado e tido como uma referência de gestão dos programas sociais, é quase uma ironia que agora a hiper focalização que se desenha no horizonte ocorrerá por meio da eliminação de uma das etapas consideradas mais importantes para conferir responsabilidade governamental ao gasto social.

A conversão indicada aqui e que conecta estas peças como partes de um processo está, portanto, em uma mobilização pelo apagão do Bolsa Família. Aqueles identificados como pobres pelo Estado e os que se identificavam como não pobres foram postos em um mesmo programa. As regras do jogo, que também são morais, mudaram. O Estado ampliou a cobertura com o Auxílio. No entanto, e agora? Os que foram beneficiados em situação de emergência aceitarão sair? Os sujeitos atendidos pelo Bolsa Família aceitarão a diminuição no auxílio? Estas pessoas aceitarão viver a insegurança em seu nível mais básico — por comida e moradia?

Há uma narrativa política em curso sobre a necessidade de “reformular” ou de “modernizar” o atual funcionamento da rede de atendimento socioassistencial e que está na esteira de um processo de reconstrução de certa coesão social que parecia consolidada em torno do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O SUAS foi institucionalizado em 2005 e está em relação direta com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) para possibilitar a construção de um sistema descentralizado de gestão que integra as ações entre os governos federal, estaduais e municipais, em síntese, o SUAS é a linha de frente da proteção social brasileira. Portanto, observar as mudanças no CadÚnico como parte de um processo, pode ajudar a esclarecer o avanço na transformação do sentido de programas sociais, a exemplo do Bolsa Família, e a compreender o ensaio político gestado com o uso que será feito da experiência de implementação do Auxílio Emergencial ao longo de 2020.

O CadÚnico, mais que uma simples plataforma de cadastro de dados, é uma base informacional crucial para o funcionamento dos programas sociais brasileiros. Todo programa social direcionado às parcelas populacionais de baixa renda está obrigado a utilizar o CadÚnico. Dentre eles o Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a Tarifa Social de Energia Elétrica, Programa de Cisternas, Isenção de Pagamento de Taxas de Inscrição em Concursos Públicos, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar — Pronaf, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil — PETI, dentre tantos outros que são desenvolvidos pelo governo brasileiro e que compõe a rede de proteção social do país.

O CadÚnico é um sistema de informações globais que permite diagnosticar e acompanhar o crescimento ou redução dos números que medem a pobreza, informações sobre os programas sociais e estabelecer metas de atendimento, e por sua vez, de repasses de verbas aos municípios para a gestão dos programas, através do Índice de Gestão Descentralizada (IGD). O IGD mede a qualidade da gestão dos programas sociais pelos municípios e, por meio do repasse de verbas, possibilita o desenvolvimento de ações de assistência social a nível local, bem como a fiscalização do cumprimento das condicionalidades do Bolsa Família nas áreas de saúde e educação.

O CadÚnico permite estabelecer retratos do país, é por meio desta base informacional que são possíveis o desenvolvimento de pesquisas, planejamento de políticas públicas e a garantia da focalização dos programas sociais para públicos específicos, priorizando a extrema pobreza e a pobreza. A focalização, ponto polêmico, é uma técnica de direcionamento da proteção social a partir de critérios que se opõe à universalização dos Direitos Sociais.

Por unir a transferência condicionada de renda e o acesso aos Direitos Sociais com a focalização, o CadÚnico, reformulado em 2003, é tido por organismos multilaterais como um dos bastiões da garantia de gestão e eficiência econômica do gasto social com a transferência condicionada de renda.

A rede que o sustenta se completa e se inicia, portanto, com o cadastramento no CadÚnico a partir do momento em que as pessoas que necessitam do auxílio buscam os postos de atendimento dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e dos Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que, por sua vez, são parte determinante para a atuação de assistentes sociais e medição do impacto social dos programas. É este nível de atuação municipal, por fim, que permite a manutenção de sistemas de Busca Ativa, pelos quais o Estado procura ativamente as pessoas que necessitam dos programas, mas por diferentes motivos, ainda não são atendidas por eles.

Permitir o desmonte desta rede é assumir que estamos dando muitos passos atrás, cada vez mais próximos do retorno ao Mapa da Fome.
Denise De Sordi