quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Pensamento do Dia

 


A nossa avidez infinita

Todos nós sofremos de uma avidez infinita. As nossas vidas são-nos preciosas, estamos sempre alerta contra os desperdícios. Ou talvez fosse melhor chamar a isso Sentido de Destino Pessoal. Sim. Creio que é melhor do que avidez. Deverá a minha vida perder um milésimo de polegada da sua plenitude? É uma coisa diferente avaliar-se a si próprio ou vangloriar-se loucamente. E há então os nossos planos, os nossos ideais. Também eles são perigosos. Podem consumir-nos como parasitas, comer-nos, sorver-nos e deixar-nos exangues e prostrados. E no entanto estamos constantemente a convidar os parasitas, como se estivéssemos ansiosos por sermos sorvidos e comidos. Isto porque nos ensinaram que não há limites para o que um homem pode ser.

Há seiscentos anos um homem era o que o seu nascimento demarcava para ele. Satanás e a Igreja, representante de Deus, lutavam por ele. Ele, pela sua escolha, decidia em parte qual seria o resultado. Mas quer fosse, depois da morte, para o céu ou para o inferno, o seu lugar entre os vivos estava marcado. Não podia ser contestado. Desde então o palco foi novamente arranjado e os seres humanos apenas passeiam nele e, sob este novo ponto de vista, temos uma história à qual responder. Éramos outrora suficientemente importantes para que as nossas almas fossem objeto de luta. Agora cada qual é responsável pela sua própria salvação, que está na sua grandeza. E isso, essa grandeza, é a rocha sobre a qual se fere o nosso coração. Rodeiam-nos grandes inteligências, grandes belezas, grandes amantes e criminosos. Da grande tristeza e desespero dos Werthers e dos Don Juans passámos para as grandes figuras dominantes dos Napoleões; desses passámos para os assassinos que tinham que tinham esse direito sobre as vítimas; aos homens que se sentiam privilegiados por se aproximarem dos outros com um chicote; aos rapazes das escolas e aos funcionários que rugem como leões enfurecidos; a esses proxenetas e outras criaturas dos bas-fond oradores nas cafetarias noturnas que acreditavam que poderiam ser grandes na traição e que poderiam torcer o pescoço daqueles que sentiam ser puros e bons com o laço da sua morbidez; aos sonhos de sombras lindíssimas que se abraçavam num ecrã impecável. Odiamo-nos terrivelmente e punimo-nos por causa destas coisas. O medo de ficar para trás persegue-nos e enlouquece-nos. O medo está em nós como uma nuvem. Forma um clima interior de escuridão. E há ocasionalmente uma tempestade, e ódio, e chuva que fere, a brotar de nós.
Saul Bellow, "Na Corda Bamba"

Vencer o pessimismo

Os tempos são propícios ao pessimismo. Em especial quando o discurso público está dominado pelas indignações permanentes, as redes sociais ficaram cada vez mais transformadas em ringues de boxe – mas de rua, sem regras nem cavalheirismos – e os debates deixaram de ser centrados na realidade para se debruçarem sobre as perceções, em que apenas as negativas são valorizadas e dissecadas até muito para lá da exaustão.

O pessimismo é, ainda por cima, acentuado quando olhamos para o mundo e parece que o caos está instalado um pouco por todo o lado. Os sinais são evidentes: cresce o individualismo e perderam-se noções básicas de solidariedade. O humanismo ficou reservado para algumas raras ocasiões – mais para quando “fica bem” do que para quando seria necessário e até urgente.

Muita da raiva que tem sido canalizada para os partidos extremistas e radicais nasce precisamente deste desencanto latente que se vai manifestando entre quem considera que foi ficando para trás, com dificuldades no acesso à habitação, sem perspetivas de melhoria salarial e, pior do que tudo, com a sensação de que o seu papel na sociedade é menos valorizado e, por isso mesmo, mais dispensável.


À custa de ouvirmos e lermos que “está tudo pior” e que “nada funciona”, vamos destruindo, aos poucos, o pilar essencial de qualquer sociedade: a confiança em nós próprios, enquanto comunidade. Não é por acaso que os inimigos da democracia e das liberdades são, precisamente, os que mais gostam de espalhar o caos e a desconfiança nos serviços e instituições que deveriam representar-nos e proteger-nos. Aproveitam todos os motivos para desmoralizar espíritos. E usam o pessimismo para destruir aquilo que, no fundo, sempre foi o motor do progresso: a esperança.

É nestes momentos de caos e de pessimistas encartados que se torna mais importante não perder a esperança. E acreditar que o futuro, como tantos exemplos do passado demonstraram, pertence aos otimistas, aos que acreditam no progresso, aos que não desistem de melhorar a vida e as sociedades.

Neste mundo cada vez mais habitado por líderes carrancudos e de ar zangado, em que o sorriso passou até a ser menosprezado por muitas máquinas de campanhas eleitorais, não podemos deixar-nos ceder pelo pessimismo.

Vários trabalhos científicos já identificaram uma relação direta entre o otimismo e a longevidade, por exemplo. Um estudo realizado, em 2019, com base em inquéritos feitos em 15 hospitais dos EUA, revelou que os indivíduos com níveis mais altos de otimismo tinham um risco 35% menor de sofrer de doenças cardiovasculares, bem como uma menor taxa de mortalidade. Por outro lado, outros estudos indicaram que as pessoas mais pessimistas tendem a ter hábitos de vida menos saudáveis e a importar-se menos com o seu bem-estar. Além de que o pessimismo patológico pode ser, muitas vezes, uma autoestrada para a depressão – um fator de risco também para as doenças cardiovasculares.

Da mesma maneira que as perceções erradas devem ser combatidas com factos, também o pessimismo só pode ser atenuado se, a cada motivo de desânimo, conseguirmos apresentar um dado ou uma realidade que incuta esperança. E é nesses momentos em que nos vemos rodeados de guerras, de convulsões e de incertezas, que devemos recordar-nos de que, apesar de tudo, o mundo está melhor do que tantas vezes nos parece ou é difundido pelos agentes do caos.

Mais do que nos concentrarmos nas perceções, temos de regressar ao tempo em que confiávamos, naturalmente, nos factos. E acreditar nos indicadores fornecidos pelas instituições válidas e de trabalho comprovado. Deixar de pensar que cada estudo ou estatística que contrarie a nossa perceção – própria ou induzida por outros – teve origem numa qualquer conspiração, de motivos ocultos. A realidade é bem mais transparente. E a verdade é que, por exemplo, apesar de todos os problemas nos serviços de saúde, a esperança média de vida continua a aumentar em Portugal, as vacinas reduziram a mortalidade infantil em 40% a nível mundial, nos últimos 40 anos, e que, nas décadas recentes, mais de 1,2 mil milhões de pessoas do planeta escaparam à pobreza extrema. E mesmo que ainda esteja muito por fazer no domínio das alterações climáticas, convém ter a noção de que, atualmente, por cada dólar investido em petróleo, gás e carvão, é gasto o dobro na produção de energias renováveis. O mundo precisa de mais otimismo. 

Sem vergonha!

Invadem o nosso espaço, ignoram os nossos limites, matam o bom senso. Sem constrangimento, sem pudor. Agem como se o mundo fosse palco para as suas vontades, e as suas exigências.

Gritam alto, gritam tolices, confundindo liberdade de falar com o exibicionismo.

O insulto e a mentira é a norma. A falta de respeito é a nova etiqueta. Insistem, persistem, assediam.

Causam incómodo, constrangimento. Acham-se impunes. Sem vergonha.

Até um dia. Um dia destes. Há limites a impor, e respeito a exigir. Que falta de noção. Que prepotência. Que abuso. Que cinismo.

De quem se fala aqui? De tantos e de tantas, mas de Trump certamente.

Fim dos tempos

Um dia ainda vamos lembrar dos tempos difíceis de hoje e sentir saudades deles, e vamos chamá-los, com nostalgia, “o tempo em que tínhamos tudo”. Porque já estaremos num tempo em que vai ser mais importante ter uma arma e munição à cabeceira do que comida no refrigerador. A humanidade gosta de correr riscos, ou se não gosta pelo menos dá essa impressão, a julgar pelos riscos desnecessários que corre. Um futuro tipo Mad Max 2 não é mais impossível do que um futuro sem guerras, e ainda existe tanta gente que luta por um mundo sem guerras. “Pobrema”, diria o coronel Galdino, “é que guerra engorda mais o putufu”.


Se a vida é de fato um sonho, como queria o poeta, talvez não seja o sonho de algum redator de Hollywood, e sim o pesadelo de algum professor de filosofia lituano da década de 1930. Em seu mundo paralelo, ele usou, para descrever o mundo industrial pós-moderno, a expressão “cobra que se devora a si mesma deixando apenas matéria negativa em seu lugar”. A imagem o deixou tão fascinado que ele foi o primeiro humano em mais de dois séculos a dar uma guinada na História pela mera intensidade de um pensamento. O mundo em que vivemos é o que ele vem pensando desde então, numa dimensão onde não existe morte.

O parágrafo acima é a sugestão para um começo de conto fantástico, mas seria possível torná-lo mais FC. Digamos que essa imagem mitogeométrica foi divulgada por um grupo de cientistas em experimentos quânticos, e foi ela que sugeriu, a certa altura, a formulação relativamente simples de algum abstruso entrelaçamento infratômico. A descoberta desencadeou, entre outros efeitos medianos, a criação de um videogame simulacrônico onde cada um de nós é apenas um algoritmo ensinado a pensar como cada um de nós. Nós, a Terra, nosso universo, somos um videogame para alienígenas ociosos e com uma dimensão a mais que nós. Jogam conosco com a mesma sede de rejuvenescimento que fazia os deuses do Olimpo descerem aos bailes rurais da Grécia.

O Universo é um “Show de Truman” onde Truman somos sete bilhões de inadvertidos, quebrando a cabeça com os problemas daqui, esquentando o sangue com as patifarias daqui, perdendo o sono por causa das incertezas daqui. E o tempo todo, como naqueles contos do tempo do romantismo, “era tudo um sonho”. Tudo um jogo, não menos honroso que um xadrez, não menos desfrutável do que se fosse um futebol. O mundo não é real? Que seja, mas cada hipótese do Real é um conjunto de regras. É só tê-las em mente e aplicá-las a uma pseudo-existência qualquer. O jogo é para ser jogado, a vida é para ser vivida, mesmo que a gente descubra que é de mentira.