segunda-feira, 29 de julho de 2019

Pensamento do Dia


O Brasil de Jair Bolsonaro, um novo vilão ambiental para o planeta

Em agosto do ano passado, quando um veterano deputado brasileiro conhecido por seu discurso incendiário e sua nostalgia pela ditadura disparou nas pesquisa eleitorais, do outro lado do mundo uma adolescente com tranças deixava de ir à escola às sextas-feiras para alertar sobre a crise climática plantando-se em uma praça com um cartaz feito à mão. Era impossível prever que seus caminhos se cruzariam. Mas foi o que ocorreu. Não fisicamente, mas sim em termos políticos. Greta Thunberg, transformada em uma espécie de flautista de Hamelin, conseguiu levar para as ruas milhões de estudantes e colocar o meio ambiente bem acima entre as prioridades dos políticos europeus enquanto Jair Bolsonaro, já como presidente, confirmava com nomeações, decisões e declarações seu desinteresse por proteger a Amazônia, uma floresta tropical essencial para frear o aquecimento global. Bolsonaro se tornou o vilão ambiental do mundo.



Neste sábado, o presidente declarou que na região apenas “veganos, que comem só vegetais”, estão preocupados com a questão ambiental, e tornou a contrapô-la à economia, porque em sua opinião são incompatíveis. “Quando acabarem as commodities [matérias-primas] do Brasil, nós vamos viver do quê?”, afirmou. “Vamos virar veganos? Vamos viver do meio ambiente?”.

Em sete meses de Governo, o mandatário brasileiro deixou claro que o papel do Brasil como potência agrícola exportadora lhe interessa muito mais do que o Brasil como guardião do pulmão do planeta. E, embora no início do mandato tenha desistido de juntar os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, transformou-os em um casal de fato: “[O ministro] Ricardo Salles está no lugar certo. Consegue fazer o casamento do Meio Ambiente com a produção. Eu falei para ele: ‘Mete a foice em todo mundo no Ibama. Não quero xiitas”, declarou em junho.

Bolsonaro colocou a líder da bancada parlamentar ruralista, Tereza Cristina Dias, como ministra da Agricultura, não declarou novas áreas de proteção ambiental nem demarcou novas reservas de terras indígenas (e ameaça desmantelar umas e outras), pretende desvirtuar o Fundo Amazônia (um fundo milionário impulsionado e financiado principalmente pela Noruega para frear o desmatamento), pôs em dúvida os dados oficiais sobre a destruição de florestas tropicais, elaborados por órgãos do próprio Governo por meio do Inpe, e acelerou a aprovação de novos pesticidas, incluindo alguns com substâncias proibidas na União Europeia. Uma série de medidas que fez com que os ex-ministros do Meio Ambiente ainda vivos acusassem em uníssono o Governo de desmontar todos os avanços conquistados nos últimos 25 anos.

A questão ambiental percorreu um longo caminho no Brasil. Como explica Mica Minami, diretora de campanhas do Greenpeace, “nos anos setenta, com a ditadura, era considerado um obstáculo para o progresso econômico; em 1992, o Brasil acolheu a primeira conferência sobre meio ambiente da ONU e desde então, com altos e baixos, foi desenvolvendo uma política com um potente pacote legal até se transformar em um país líder, principalmente na política climática, e até o próprio setor produtivo se convenceu de que isso era bom [para os negócios]".

Bolsonaro, ultranacionalista e de extrema direita, detesta as ONGs e os ativistas em geral. Considera que são parte de um suposto marxismo cultural. Tampouco oculta seu desprezo pelo diretor de um dos centros científicos mais prestigiosos do país. “Parece que está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum”, disse na semana passada em um café da manhã com jornalistas de veículos de comunicação estrangeiros sobre o diretor do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE), que elabora, graças à vigilância por satélite, a estatística mais precisa sobre desmatamento —que reflete um notável aumento ocorrido nos últimos meses. Graças à lei de transparência, os dados são de domínio público. “Se toda essa devastação que vocês nos acusam que estamos fazendo [tivesse ocorrido], a Amazônia já teria sido extinta, seria um grande deserto”, afirmou Bolsonaro. “Entendo a necessidade de preservar, mas a psicose ambiental deixou de existir comigo.” Aos olhos do mundo, o Brasil é aprovado ou reprovado em função do que desmata.

Os alertas mensais, menos precisos do que o balanço anual de áreas desmatadas, apontam um notável aumento na derrubada da floresta nos últimos meses, que as ONG atribuem ao fato de que o discurso presidencial encorajou madeireiros e produtores agrícolas a conquistar novas terras. Paralelamente, o Governo quer aumentar sua influência e removeu os representantes da sociedade civil do Fundo Amazônia, um sistema para recompensar os esforços de preservação da floresta e da biodiversidade.

Se o desmatamento passar de um certo limite, a contribuição europeia a políticas de preservação é suspensa. Em uma década, a Noruega, a Alemanha e a Petrobras destinaram o equivalente a quase 3 bilhões de reais, administrados e fiscalizados por instituições brasileiras, a cerca de cem projetos ambientais. O Governo Bolsonaro não aprovou nenhum desde janeiro.

O presidente do Brasil se irrita com o empenho de Angela Merkel, Emmanuel Macron e outros líderes europeus em lhe pedir que preste contas sobre a floresta, seus habitantes, rios e plantas. Em junho, na reunião do G20, Bolsonaro convidou os dois líderes a sobrevoar com ele a Amazônia. “Se encontrarem um quilômetro quadrado de desmatamento entre Manaus e Boa Vista, concordaria com eles”, insistiu o presidente em um encontro com a bancada ruralista. É comum o capitão reformado se defender acusando os europeus de ter destruído suas próprias florestas —“sobrevoei a Europa, já por duas vezes, e não encontrei um quilômetro quadrado de floresta”— e criticando que agora venham pedir explicações aos brasileiros.

O Brasil assumiu o lugar da China como vilão ambiental. Mergulhada em um acelerado processo de industrialização, as emissões chinesas de CO2 são de 7,5 toneladas per capita, em comparação com as 6,4 da UE e as 2,6 do Brasil, segundo o Banco Mundial. Mas o gigante asiático conseguiu se livrar da imagem de grande poluidor ao abraçar com entusiasmo o Acordo de Paris.

Em um sinal de que a questão ambiental e climática seduz cada vez mais eleitores europeus —tendo à frente a Alemanha, onde os Verdes têm uma sólida trajetória política—, o recente acordo de livre comércio entre o Mercosul e a UE inclui exigências ecológicas, como a de que os produtos sul-americanos importados pela Europa não sejam originários de áreas desmatadas. No caso da soja da Amazônia brasileira, existe um sistema eficaz, definido em comum acordo pela indústria, pelas autoridades e pela sociedade civil, que garante isso. Mas atualmente é impossível oferecer essa garantia para produtos cultivados em áreas com menos proteção legal e ambiental.

O sino de ouro

Contaram-me que, no fundo do sertão de Goiás, numa localidade de cujo nome não estou certo, mas acho que é Porangatu, que fica perto do Rio de Ouro e da Serra de Santa Luzia, ao sul da Serra Azul – mas também pode ser Uruaçu, junto do Rio das Almas e da Serra do Passa Três (minha memória é traiçoeira e fraca; eu esqueço os nomes das vilas e a fisionomia dos irmãos, esqueço os mandamentos e as cartas e até a amada que amei com paixão) –, mas me contaram que em Goiás, nessa povoação de poucas almas, as casas são pobres, e os homens, pobres, e muitos são parados e doentes e indolentes, e mesmo a igreja é pequena, me contaram que ali tem – coisa bela e espantosa – um grande sino de ouro.

Lembrança de antigo esplendor, gesto de gratidão, dádiva ao Senhor de um grão-senhor – nem Chartres, nem Colônia, nem São Pedro ou Ruão, nenhuma catedral imensa com seus enormes carrilhões tem nada capaz de um som tão lindo e puro como esse sino de ouro, de ouro catado e fundido na própria terra goiana nos tempos de antigamente.

É apenas um sino, mas é de ouro. De tarde seu som vai voando em ondas mansas sobre as matas e os cerrados, e as veredas de buritis, e a melancolia do chapadão, e chega ao distante e deserto carrascal, e avança em ondas mansas sobre os campos imensos, o som do sino de ouro. E a cada um daqueles homens pobres ele dá cada dia sua ração de alegria. Eles sabem que de todos os ruídos e sons que fogem do mundo em procura de Deus – gemidos, gritos, blasfêmias, batuques, sinos, orações e o murmúrio temeroso e agônico das grandes cidades que esperam a explosão atômica e no seu próprio ventre negro parecem conter o gérmen de todas as explosões –, eles sabem que Deus, com especial delícia e alegria, ouve o som alegre do sino de ouro perdido no fundo do sertão. E então é como se cada homem, o mais pobre, o mais doente e humilde, o mais mesquinho e triste, tivesse dentro da alma um pequeno sino de ouro.

Quando vem o forasteiro de olhar aceso de ambição e propõe negócios, fala em estradas, bancos, dinheiro, obras, progresso, corrução – dizem que esses goianos olham o forasteiro com um olhar lento e indefinível sorriso e guardam um modesto silêncio. O forasteiro de voz alta e fácil não compreende: fica, diante daquele silêncio, sem saber que o goiano está quieto, ouvindo bater dentro de si, com um som de extrema pureza e alegria, seu particular sino de ouro. E o forasteiro parte, e a povoação continua pequena, humilde e mansa, mas louvando a Deus com sino de ouro. Ouro que não serve para perverter nem o homem nem a mulher, mas para louvar a Deus.

E se Deus não existe não faz mal. O ouro do sino de ouro é neste mundo o único ouro de alma pura, o ouro no ar, o ouro da alegria. Não sei se isso acontece em Porangatu, Uruaçu ou outra cidade do sertão. Mas quem me contou foi um homem velho que esteve lá; contou dizendo: “eles têm um sino de ouro e acham que vivem disso, não se importam com mais nada, nem querem mais trabalhar; fazem apenas o essencial para comer e continuar a viver, pois acham maravilhoso ter um sino de ouro”.

O homem velho me contou isso com espanto e desprezo. Mas eu contei a uma criança e nos seus olhos se lia seu pensamento: que a coisa mais bonita do mundo deve ser ouvir um sino de ouro. Com certeza é esta mesma a opinião de Deus, pois ainda que Deus não exista, ele só pode ter a mesma opinião de uma criança. Pois cada um de nós quando criança tem dentro da alma seu sino de ouro que depois, por nossa culpa e miséria e pecado e corrução, vai virando ferro e chumbo, vai virando pedra e terra, e lama e podridão.
Rubem Braga

Bolsonaro cristão, Bolsonaro pagão

A plataforma política que levou Bolsonaro ao Palácio do Planalto incluiu um vasto suporte entre evangélicos em geral e neopentecostais em particular, com promessas de proteger e apoiar a causa religiosa.

Joel Pinheiro da Fonseca diz na revista Exame: “Em toda oportunidade que tem, diz que embora o Estado seja laico, ele próprio é cristão. Seu lema de campanha incluía Deus. Ele já fez menção de que a religião evangélica será um critério para sua indicação de ministro no Supremo Tribunal Federal. Fez questão de participar da Marcha para Jesus no mês passado. Contudo, quando olhamos para suas propostas e valores, a impressão é bem diferente.”

Sabemos que a sua vitória eleitoral ocorreu na sequência de um fenómeno de rejeição por parte do eleitorado dos actores políticos em geral e do Partido dos Trabalhadores (PT) em particular, devido à extrema corrupção, aos altos níveis de violência e à imposição duma agenda de temas fracturantes. Foi isso que levou ao poder um velho deputado como Bolsonaro, sem qualquer currículo parlamentar ou cívico, a não ser protagonizar as ideias da direita a roçar o extremo político.

De facto, bastam alguns indicadores para entender rapidamente que o seu discurso religioso não confere com a acção política. Se a fé cristã prega o perdão dos pecados e a redenção dos homens, Bolsonaro propõe e exalta a execução dos criminosos. Se o evangelho proclama a dignidade da pessoa humana, Bolsonaro defende publicamente a tortura e a execução sumária. Se o cristianismo prega uma mensagem universal e a missionação, Bolsonaro coloca-se como inimigo dos indígenas e procura submetê-los aos interesses da expansão agrária. Se Jesus frisou o cuidado pelos pobres, o governo de Bolsonaro não parece interessado nas políticas sociais. Se o cristianismo fala de paz, Bolsonaro propõe a difusão das armas.

Mas da parte das lideranças cristãs o panorama não é melhor. Recentemente uma vintena de deputados da Frente Parlamentar Evangélica votou favoravelmente a reforma da Previdência, que obriga os trabalhadores brasileiros a trabalhar mais para se aposentar, mas não foram capazes de prescindir das suas próprias mordomias nessa matéria. Ou seja, aprovaram uma lei punitiva para a população em geral mas puseram-se de fora, conservando os privilégios de que tinham em mãos. Já não bastava que parte dos deputados evangélicos tenham sido considerados dos mais corruptos nos tempos do famigerado Mensalão…

Outro exemplo. O pastor Marco Feliciano, chegou-se rapidamente à frente para afirmar publicamente que gostaria de concorrer à vice-presidência do Brasil ao lado de Bolsonaro, em 2022, manifestando assim a sua indisfarçável e desmedida ambição política. Agora se compreende melhor a campanha suja que vem fazendo contra o actual vice, o general Mourão. Aliás, os líderes neopentecostais têm vindo a manifestar ao longo das últimas décadas uma preocupante sede de poder. Apoiaram abertamente candidatos e presidentes de quadrantes políticos tão diferentes como Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. No fundo eles não apoiam pessoas, políticas, programas ou ideologias. São apenas atraídos pelo poder como as traças pela luz.

Mas a cereja em cima do bolo será talvez a decisão já anunciada publicamente por Jair Bolsonaro de designar o seu filho Eduardo para o cargo de embaixador do país nos EUA. E a justificação para este acto de puro nepotismo é hilariante: “(Eduardo) é amigo dos filhos do Donald Trump, fala inglês e espanhol, tem uma vivência muito grande do mundo”, pelo que “poderia ser uma pessoa adequada e daria conta do recado perfeitamente”.

A personagem tem procurado capitalizar o apoio dos evangélicos mas não revela qualquer identificação séria com a ética cristã, nem sequer na aparência. Calcula-se que produza em média uma afirmação falsa ou distorcida por dia. Alguém lembrou, a propósito, as palavras de Jesus de Nazaré: “Nem todo o que me diz: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” (Mateus 7:21). Já S. Paulo advertia o jovem Timóteo sobre aqueles que, tendo aparência de piedade, todavia negavam a eficácia dela. E concluía: “Destes afasta-te” (2 Timóteo 3:5).

Ao contrário de qualquer político experiente, Bolsonaro, uma vez eleito, não se posicionou como presidente de todos os brasileiros. Pelo contrário, continuou a cavar o fosso entre direita e esquerda. Assiste-se assim ao extremar de posições e ao desaparecimento do centro político. Se alguém critica Bolsonaro é taxado de comunista ou, no mínimo, de lulista e recomenda-se que vá para Cuba ou Venezuela. Se apoia o presidente é apelidado de fascista.

Assim é difícil construir qualquer coisa.

Paisagem brasileira

Morada, Edgar Walter

A degeneração ética de um herói

O exercício de funções públicas pressupõe a observância permanente de requisitos de honestidade. Essa premissa emerge da incidência do princípio constitucional da moralidade na administração pública (artigo 37, caput) e implica, entre outras obrigações, a rejeição de expedientes de abuso de poder e obtenção de vantagem pessoal.

A noção de integridade, essencial sob o paradigma da ética pública, costuma ser posta à prova justamente nas situações em que os agentes públicos são levados a encarar e esclarecer as suas condutas perante a sociedade.


Isso significa que o autêntico e definitivo juízo sobre a decência e a probidade das pessoas públicas não se concretiza quando elas, investidas em competências judicantes, investigatórias ou de controle, apontam desvios praticados por outros personagens da vida pública. É diante da prestação de contas de seus próprios atos que emerge a coerência das atitudes ou se escancara a desfaçatez dessas autoridades.

Prudência e moderação no exercício do poder são virtudes necessárias sobretudo quando exista alguma hipótese de envolvimento do interesse pessoal da autoridade em questão.

Resulta, portanto, em vilipêndio aos predicados da ética pública a atuação de ministro de Estado que desencadeie e interfira em processo investigativo sobre o qual tenha interesse direto, revelando a terceiros, em seu favor, parte do conteúdo de apuração sob sigilo.

A lei 12.813/2013 repele tal conflito entre interesse público e privado, que possa comprometer a predominância dos objetivos de Estado e influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública respectiva (artigo 3º). E determina que o ocupante do cargo previna ou impeça o conflito de interesses, sobretudo resguardando informação privilegiada, obtida em razão das atividades exercidas (artigos 4º e 5º, inciso I).

Em tais casos, a prática de atos de gestão em benefício próprio constitui séria transgressão (artigo 5º, inciso V) e pode configurar até mesmo improbidade administrativa (artigo 12), evocando a aplicação da lei 8.429/1992, por atentar contra os princípios da administração pública, ao violar o dever de imparcialidade (artigo 11, caput) e revelar fato que tem ciência em razão de suas atribuições e deva permanecer em segredo (artigo 11, inciso III).

Convém ainda assinalar que, de acordo com o princípio republicano, traduzido no dever constitucional de impessoalidade do administrador (artigo 37, caput), é imperioso o distanciamento entre o desempenho de funções públicas e o patrocínio de interesses pessoais da autoridade, especialmente ante suposições de irregularidades cometidas em função pública pretérita.

Por essa razão, o Código de Conduta da Alta Administração Federal, em seu artigo 10, prescreve que ministros de Estado e altas autoridades públicas federais respeitem eventuais impedimentos de participação em atividades ou decisões que possam vir a beneficiá-los.

Toda autoridade sob escrutínio público deve observar a autocontenção. Quem, alçado ao poder, considere-se ungido em missão redentora e, destituído de sobriedade e equilíbrio, ceda ao êxtase da glorificação, decerto cometerá abusos em sequência, revelando sua verdadeira face. Afinal, como escreveu Jorge Luis Borges, os espelhos têm algo de monstruoso.
Mauro de Azevedo Menezes

Viver sem medo

Se você ama, terá AIDS;
Se fuma, terá câncer;
Se respira, terá contaminação;
Se bebe, terá acidentes;
Se como terá colesterol;
Se fala, terá desemprego;
Se caminha, terá violência;
Se pensa, terá angústia;
Se duvida, terá loucura;
Se sente, terá solidão

Para ter fôlego é preciso ter desalento;
Para se levantar tem que saber cair;
Para ganhar tem que saber perder.
E temos que saber que assim é a vida,
e que você cai e se levanta muitas vezes.

Alguns caem e não se levantam nunca mais,
geralmente os mais sensíveis,
os mais fáceis de se machucar,
as pessoas que mais dor sentem ao viver.
Os mais sensíveis são mais vulneráveis.

Em contrapartida, esses que se dedicam a atormentar
a humanidade têm vida longuíssima, não morrem nunca.
Porque não têm uma glândula, que na verdade, é bem rara
que chama consciência,
aquela que nos atormenta pelas noites.

Acho que o exercício de solidariedade,
quando se pratica de verdade, no dia a dia,
é também um exercício de humildade
que ensina você a se reconhecer nos outros
e a reconhecer a grandeza escondida nas coisas pequeninas.
O que implica denunciar a falsa grandeza nas coisas ‘grandiosas’.

Eduardo Galeano

A máquina do prazer

Num dos mais memoráveis experimentos mentais da filosofia, Robert Nozick propôs que imaginássemos uma máquina de gerar estímulos prazerosos tão perfeita que, se nos ligássemos a ela, viveríamos uma vida de júbilos sem fim, que não teríamos como distinguir da realidade. Se lhe fosse dada a escolha, você, leitor, optaria por acoplar-se à engenhoca até o fim de seus dias ou preferiria seguir no mundo real?

Nozick, que criou esse experimento para refutar o hedonismo ético, mais especificamente os utilitaristas, que erigem a promoção do prazer (e a supressão da dor) em fundamento universal da ética, obviamente imagina que a maioria de nós rejeitaria ligar-se à máquina e articula razões para a recusa.


Não pretendo discutir aqui se o hedonismo é ou não a base da moralidade, mas apenas constatar, consternado, que os tempos estranhos em que vivemos podem ter realizado a façanha de criar uma versão virtual da máquina do prazer de Nozick e introjetá-la nas mentes das pessoas.

O achado é empírico. Pesquisa Datafolha mostrou que 7% dos brasileiros acreditam que a Terra é plana e que 26% não creem que os americanos tenham pousado na Lua. Os disparates anticientíficos não se limitam à astrofísica. Sondagem de 2010 revelara que 25% dos nossos conterrâneos acreditavam em Adão e Eva.

Minha hipótese é que, diante da profusão de narrativas sobre tudo e da indecidibilidade de alguns temas, as pessoas estejam simplesmente desistindo da ideia, tão fundamental para a modernidade, de que suas crenças (ou pelo menos parte delas) devem estar amparadas por fatos verificáveis e raciocínios lógicos e estejam optando por adotar a opinião que mais lhes dá prazer, como se rodassem uma máquina de Nozick dentro de suas cabeças.

O resultado desse processo se mede num anti-intelectualismo cada vez mais exacerbado e do qual as pessoas têm cada vez menos vergonha. “O tempora, o mores”.

A lição de Tião Salgado

Em setembro de 2000, fui convidado para um seminário em Nova York, patrocinado pelo Global World Forum. Na sala onde faria a participação, havia jovens até sentados no chão. Antes que eu começasse a falar, um deles perguntou o que eu achava de internacionalizar a Amazônia: “Não quero sua resposta como brasileiro, mas como humanista”.

Falei que poderia considerar a hipótese se antes fossem internacionalizados todos os poços de petróleo, armas nucleares, museus, cidades históricas, tudo de importante para a humanidade. Declarei que, quando tudo isso for internacional, poderemos discutir a internacionalização da Amazônia. Até lá, ela é só nossa. A fala teve grande repercussão, foi traduzida em muitos idiomas; inclusive incorporada em coletânea de grandes discursos.


Sempre achei que fiz uma boa conclusão, até que o fotógrafo Sebastião Salgado, amigo há 50 anos, disse que não gostava da conclusão, porque, se não formos capazes de cuidar dos patrimônios da humanidade que estão no nosso território, não merecemos tê-los só para nós. Lembrei-me de Tião Salgado ao ver o ministro general Heleno Nunes dando a impressão de que temos o direito de queimar a Amazônia porque ela é nossa.

A Amazônia é nossa, mas é um patrimônio mundial. Sua destruição irresponsável, em nome do nacionalismo, é um holocausto verde ao sacrificar a humanidade inteira. Nenhum nacionalismo tem o direito de se opor ao humanismo porque é imoral e estúpido, indecente e insensato. Por isso devemos usar a Amazônia com responsabilidade planetária. A Terra é um condomínio de países. No mundo atual, na Era Antropocena do poder humano descomunal, nenhum país está isolado.

O presidente Bolsonaro comete grave erro diplomático e pecado humanista ao apontar para o presidente francês e para a chanceler alemã e lembrar que, desde os romanos, a Europa queima florestas e que, por isso, eles não têm autoridade para nos criticar quando queimamos a Amazônia. Deveria desafiar Macron e Merkel a reflorestar o mundo; propor uma disputa para ver que país reflorestaria mais do que nós, brasileiros; uma disputa humanista no lugar do holocausto verde que o general e o presidente parecem estar querendo cometer em nome de um nacionalismo suicida.

Poderíamos desafiá-los a enfrentar Donald Trump e Vladimir Putin que vão explorar petróleo no Polo Norte e enfrentar o governo japonês, que autorizou caça às baleias.

A Amazônia é nossa, mas nós, brasileiros, temos a obrigação de entender que somos também humanos e humanistas, nacionalistas e inteligentes, e, portanto, devemos cuidar bem de nossas florestas, porque elas existem há mais tempo do que o Brasil e porque o mundo do qual somos parte precisa delas para sempre.

Aprendi a lição de Tião Salgado e tento passá-la a outros, mesmo que generais e presidentes não estejam preparados para entender o quanto o nacionalismo suicida é anti-humanista, insensato e indecente.