quinta-feira, 17 de outubro de 2019
O bom que era mau
Bolsonaro parece viciado em criticar a imprensa. Ontem, por exemplo, atacou o jornal O Globo porque o diário carioca não trouxe em sua primeira página notícia sobre a medida provisória que garante pagamento de 13º aos beneficiários do Bolsa Família.
"Será que é papel do jornal só publicar notícia ruim ou fofoca?", questionou o presidente durante conversa com jornalistas. Mais tarde, ele fez questão de usar suas redes sociais para divulgar a declaração.
Que fique claro: não há problema nisso. Bolsonaro não é o primeiro e não será o último governante a reclamar da cobertura jornalística.
O curioso, nesse caso, é que a manchete do jornal exibido pelo presidente nada tinha de ruim ou de fofoca: "Senado aprova distribuição de dinheiro do leilão do pré-sal".
Para Bolsonaro, contudo, a ausência de uma informação que ele gostaria de ter visto em primeiro plano equivale à ausência de qualquer informação que possa ser lida em chave neutra ou positiva. Na lógica maniqueísta do presidente, é tudo ou nada, amigo ou inimigo, bom ou mau, sem espaço para sutilezas.
Esse tipo de enquadramento do mundo funciona bem no universo virtual e até gera frutos para políticos populistas, mas de nada serve para quem quer levar adiante um debate sério sobre o mundo real.
Tome-se o caso do Bolsa Família. No passado, ainda como deputado, Bolsonaro afirmou que o programa era um sistema de compra de votos. Desse ponto de vista, a concessão do 13º pagamento seria boa notícia?
Como a realidade não se deixa capturar por teorias simplistas, no mesmo dia em que Bolsonaro falou do Bolsa Família, o IBGE divulgou informações sobre o recorde na desigualdade de renda no país. É chocante.
O Brasil é ainda tão pobre que uma pessoa com renda média mensal um pouco acima de R$ 5.000 é mais rica que 90% da população.
Certamente não é papel do jornal publicar apenas notícia ruim. Mas, vamos combinar, faz tempo que as coisas não estão boas por aqui.
"Será que é papel do jornal só publicar notícia ruim ou fofoca?", questionou o presidente durante conversa com jornalistas. Mais tarde, ele fez questão de usar suas redes sociais para divulgar a declaração.
Que fique claro: não há problema nisso. Bolsonaro não é o primeiro e não será o último governante a reclamar da cobertura jornalística.
O curioso, nesse caso, é que a manchete do jornal exibido pelo presidente nada tinha de ruim ou de fofoca: "Senado aprova distribuição de dinheiro do leilão do pré-sal".
Para Bolsonaro, contudo, a ausência de uma informação que ele gostaria de ter visto em primeiro plano equivale à ausência de qualquer informação que possa ser lida em chave neutra ou positiva. Na lógica maniqueísta do presidente, é tudo ou nada, amigo ou inimigo, bom ou mau, sem espaço para sutilezas.
Esse tipo de enquadramento do mundo funciona bem no universo virtual e até gera frutos para políticos populistas, mas de nada serve para quem quer levar adiante um debate sério sobre o mundo real.
Tome-se o caso do Bolsa Família. No passado, ainda como deputado, Bolsonaro afirmou que o programa era um sistema de compra de votos. Desse ponto de vista, a concessão do 13º pagamento seria boa notícia?
Como a realidade não se deixa capturar por teorias simplistas, no mesmo dia em que Bolsonaro falou do Bolsa Família, o IBGE divulgou informações sobre o recorde na desigualdade de renda no país. É chocante.
O Brasil é ainda tão pobre que uma pessoa com renda média mensal um pouco acima de R$ 5.000 é mais rica que 90% da população.
Certamente não é papel do jornal publicar apenas notícia ruim. Mas, vamos combinar, faz tempo que as coisas não estão boas por aqui.
Uma tragicomédia brasileira
As asneiras e sandices que se leem e se ouvem quase diariamente em torno da família do presidente Bolsonaro são tão inusitadas quanto ridículas e engraçadas. Como se conseguiu queimar tantas pontes, arranjar tantos inimigos e desconstruir tantos entendimentos em apenas dez meses de governo? Trata-se de um recorde negativo que deveria ser considerado pelo “Guinness”. O primeiro governo a se desmilinguir em menos de um ano por absoluta inépcia política. E se não bastasse ter afugentado os que votaram nele para se livrar do PT, que são milhões, o presidente agora trata de afastar o maior partido da sua base. Talvez o único que lhe seja inteiramente fiel e tenha a sua cara.
Depois de semanas de bate-boca com o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, ameaçando sair do partido, Bolsonaro vem a público para dizer que não vai se meter no assunto. “Tô calado e vou continuar calado”, disse o homem que jamais se cala, que usa as redes sociais para fazer o que ele acha ser contato direto com seus eleitores e tem um programa semanal em que fala, e fala o que lhe der na telha, sem medir qualquer consequência. E além disso, o mais opaco presidente da História do Brasil diz ser transparente. Só rindo.
Apesar de tantos episódios inacreditáveis, vemos agora esta troca de mensagens de quinta categoria nas redes sociais entre o vereador Carlos Bolsonaro e o senador Major Olímpio. Não, em nada importa para o país o que esses dois homens escreveram em suas contas no Twitter, mesmo que um seja o filho-problema do presidente da República e outro seja líder do maior partido governista no Senado. Sempre em torno do PSL e das suas contas, Carlos e Olímpio mostraram os dentes. Ambos têm razão. O vereador se acha um príncipe, e o senador se presta ao papel de bobo da corte ao descer para conversar com Carlos em seus termos. Não vale a pena falar de cadela no cio ou de internação psiquiátrica, acusações que fizeram parte da beligerância entre o príncipe e o bobo.
O fato que não consegue ser afastado, contudo, é que o PSL tem que explicar suas contas e seus laranjais. E Bolsonaro também. As investigações, que já vasculharam a casa e o escritório de Luciano Bivar e indiciaram o ministro que não tem sobrenome, Marcelo Álvaro Antônio, do Turismo, mostram que os seus métodos não diferem muito do que se viu na política nacional até aqui. O presidente do partido está enrolado. O presidente da República tem um ministro também enrolado que ele teima em manter no posto, apesar do discurso de honestidade feito durante a campanha e reiterado cem vezes ao longo dos últimos dez meses.
O colunista Elio Gaspari tem toda a razão. Ele escreveu aqui, ontem, que Lula pode fazer diferença nessa mediocridade generalizada que tomou conta da política nacional. Com Fernando Henrique Cardoso fora do jogo por opção própria, não resta mesmo ninguém além de Lula com estatura suficiente para fazer sombra a Bolsonaro. Com sua sentença cumprida ou interrompida pelo Supremo, tanto faz, Lula sairá da cadeia muito brevemente. E daí, salve-se quem puder, o circo tem tudo para pegar fogo.
Maria Laura Canineu não parecia abismada. A diretora regional do Human Rights Watch é brasileira e sabe muito bem como a banda toca. Já o presidente da instituição, Kenneth Roth, não conseguia esconder a estupefação. Falava como se estivesse na Guiné Equatorial de Teodoro Obiang, com todo respeito aos guinéus. Numa entrevista concedida ontem em São Paulo, Roth comparou o Brasil a Egito, Turquia e Indonésia, países que endureceram depois de eleger um presidente autoritário. E aos Estados Unidos de Trump.
Ascânio Seleme
Para não se esquecer
A imprensa deve servir aos governados, não aos governantesSuprema Corte dos EUA no processo movido pela Procuradoria Geral da República contra os jornais Washington Post e New York Times
As desventuras da imprensa sem povo - 2
Discutir as coisas nos termos em que as põem os políticos de qualquer dos “lados” da privilegiatura inclusive o “do meio” que é tudo referindo às instituições em que se apoia o sistema de privilégios vigente, é acumpliciar-se com a casta entrincheirada por trás da ordem partidária, da lei eleitoral e do monopólio no tratamento da lei. O espírito reformista sem o qual não desatolaremos só voltará ao primeiro plano se a imprensa vestir os sapatos do Brasil plebeu, passar a olhar o debate nacional com os olhos dele e ir procurar respostas fora da vasta “zeladoria do erro” do “Sistema” como fez todo mundo que passou a dar certo.
É de uma covardia absolutamente vexatória que nenhum órgão de imprensa dentro ou fora da internet esteja em campanha permanente pelo Privilégio Zero Já num país que a miséria mergulhou numa guerra mas continua pagando os maiores salários ao funcionalismo entre os 53 medidos pelo Banco Mundial, e crescendo, por cima da estabilidade, das aposentadorias precoces e da dispensa de apresentar resultados que só sobrevivem aqui.
“Será que os próprios privilegiados admitem pensar num ‘estágio probatório’ antes de saltar para o salário que os porá no círculo dos 3% mais ricos de um país miserável”? Aplica-se ou não tal ou qual artigo de perfumaria segundo a constituição que criou a privilegiatura? Vejamos, é um “assunto polêmico”…
E a propaganda eleitoral que você é obrigado a pagar, ela fere ou não o “principio da igualdade de oportunidade”? E por acaso “eleger” não é sinônimo de “desigualar”? Não deveria sobreviver só partido ou candidato que o eleitor se dispusesse a financiar? Se fosse informado ao eleitor quanto cada candidato recebeu de financiamento antes da eleição (nos EUA o prazo máximo é de cinco dias após o recebimento da contribuição) quem pode avaliar com maior isenção e rigor quem está ou não se vendendo, o colega do Estado que se elegeu na mesma mumunha ou o eleitor? O Brasil foi enfiado nessa armadilha patética e permanece nela porque a imprensa, tal como a privilegiatura, exclui de saída a ideia de que o povo possa proteger-se do Estado mais eficientemente que o próprio Estado, e “topa” o debate infindável sobre o que o Estado deverá fazer para evitar a infecção consequente de estar no lugar errado, com exceção de sair de lá.
O brasileiro sabe ou não sabe votar? Quando você erra o caminho você segue em frente até jogar-se no abismo ou volta atras e tenta outro? Porque é negado ao eleitor brasileiro aprender com o seu erro? Como remediá-los legitimamente sem um sistema de eleição que permita saber exatamente quem representa quem, por acaso o mesmo que mata naturalmente toda a roubalheira de campanha e evita que político ladrão volte a se candidatar com a máscara de outro colada à cara? Esse é o sistema em uso em todo o mundo que funciona. Se você nunca foi apresentado a ele está sendo traído pelo seu jornal.
E o que dizer da falta de eleições primárias que libertem o eleitorado das escolhas de um cacique que só se tornou cacique porque comprovou-se mais corrupto que os seus índios? Como sair do brejo sem conduzir o olhar do senso crítico da nação sistematicamente PARA FORA dos mecanismos de auto reprodução dos nossos aleijões inscritos na constituição?
Urna eletrônica? Um artigo contra. Um artigo a favor. Quando é impossível negar o dolo o assunto torna-se “controvertido”. Jamais a receita alemã: transparência é o valor mais alto a ser extraído de toda eleição. Não se trata de saber se houve ou não houve fraude. O crime está em ver negado o único meio incontroverso de acabar com a dúvida.
E a educação, como melhorá-la partindo da premissa de que é proibido aferir o grau de educação do professor que, como não vê esse “direito” contestado, já trata de proibir que se meça o do aluno que remeteria ao seu? E já que está proibido tocar na raiz da doença tão ululantemente óbvia do professorado e do resto do serviço público tome séculos de discussão sobre currículos mais ou menos “progressistas” e sobre o sexo dos anjos.
Daí a quem nos diz que o remédio para todos os males dos que somos roubados com a lei é chamar a polícia quando um ladrão romântico ainda insistir em roubar-nos também por fora da lei, não vai diferença nenhuma que faça mesmo diferença. Como não odiar os jornalismos que sobem nesses pedestais?
Como é certo que todo erro será petrificado e que as portas da reforma das leis só se abrirão uma ou duas vezes por século, se tanto; como o povo não existe enquanto instância legislativa nem para sugerir, nem para recusar, nem para alterar, seja para os políticos, seja para a imprensa; como será impossível aprender com os erros e reagir com bom senso ao que der e vier; como é mais fácil um raio cair duas vezes no mesmo lugar que revogar leis imbecis, venenosas ou necrosantes ha séculos identificadas como tal, as leis brasileiras, mesmo nas raras vezes em que são bem intencionadas, tendem a tentar antecipar cada reação possível a fatos que ainda não ocorreram e, portanto, a ir emparedando a vida, a liberdade individual e a liberdade econômica na vã esperança de passar ao largo do que virá para impedi-las de funcionar.
O Brasil tem de romper o seu compromisso com o erro. E a única instância do “Sistema” que pode faze-lo é a imprensa, seja a que está aí, seja a que virá para ocupar esse espaço.
Bolsonaro promove strip-tease no PSL e fica nu
Jair Bolsonaro revelou nos últimos dias um talento insuspeitado para um tipo de música especial: a percussão. Ele exibe uma habilidade extraordinária no manuseio do tambor. Como todo artista talentoso, Bolsonaro cultiva certas idiossincrasias. Ele não toca em qualquer palco. Ao exigir "transparência" do PSL, por exemplo, o presidente bate bumbo sob um enorme telhado de vidro.
Depois de abrir uma crise com o seu partido, Bolsonaro esclarece que não deseja controlar a legenda. Quer apenas transparência. Segundo ele, "o partido está com a oportunidade de se unir na transparência". Diz Bolsonaro: "Vamos mostrar as contas. [...] O dinheiro é público. São R$ 8 milhões (do fundo partidário) por mês." Graças a Bolsonaro, o brasileiro descobriu que o imenso telhado de vidro é o melhor posto de observação para acompanhar a briga interna do PSL. É dali que o país assiste há uma semana ao strip-tease da virtude.
Os próprios correligionários cuidaram de lembrar a Bolsonaro que, antes de exibir transparência do partido, ele precisa levantar o tapete que esconde o enrosco do primogênito Flávio Bolsonaro, o cheque que caiu na conta da primeira-dama Michelle, o empréstimo mal explicado do próprio Bolsonaro para correntista atípico Fabrício Queiroz e os interesses que levam o presidente a contemporizar com o laranjal do ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio.
Num ambiente assim, ao insinuar que a crise é coisa da imprensa, que só enxerga "coisa ruim", Bolsonaro transforma a política num outro ramo do humorismo. Por sorte, quem observa com atenção a gincana de lama que se desenrola no PSL percebe que o presidente não tem apenas o telhado de vidro. O paletó, a camisa e a calça também são feitas de vidro. O mais curioso é que são os próprios correligionários de Bolsonaro, não os oposicionistas, que avisam ao país que o rei está nu.
Inútil passagem
Uma sociedade inteira vive mergulhada num mundo de facilidades e aparências, afogada em sms, mails, blogues e redes sociais, onde procura criar uma estranha forma de vida e de relacionamento humano, que garante o contacto e o sucesso imediato e dispensa o incómodo que é enfrentar a vida real, sem ser a coberto do anonimato ou do disfarce hipócrita, e sem ter de assumir as consequências dos seus actos nem o vazio de passar por aqui sem ter feito nada de útil para os outrosMiguel Sousa Tavares
Mais 600 mil entram em situação de extrema pobreza
- O dado surpreende, já que a massa de rendimentos totais cresceu 4% no ano, mas a renda dos 5% mais pobres caiu 3,7% - afirma Neri.
Já a pobreza, medida por quem ganha R$ 233 por mês, ficou estável de um ano para o outro, permanecendo em 12,17%. Como a população aumentou, entraram na pobreza mais 200 mil pessoas. Atualmente, temos 25,3 milhões de pobres no Brasil.
O melhor momento desse indicador social foi em 2014, quando a parcela da população nessa condição era de 9,8%. Para voltarmos a esse patamar vai demorar, segundo Neri.
- Se o Brasil crescer 2,5%, sem que a desigualdade aumente, só em 2030 voltaremos ao mesmo patamar de pobres de 2014.
Segundo o economista, a perda dos mais pobres foi muito intensa desde 2014. Embora o ganho médio salarial tenha voltado aos níveis de 2014, o recorte por renda é muito desigual. Enquanto o 1% mais rico viu os ganhos subirem 9,4% de 2014 a 2018, a renda dos 5% mais pobres caiu 39,3%.
A medida do governo federal de dar uma décima terceira parcela aos que ganham Bolsa Família ajuda, mas é menos eficiente do que o reajuste do benefício:
- Quando se reajusta o valor, a faixa para se tornar elegível ao programa aumenta, incluindo mais famílias. É preciso chamar a atenção para a pobreza. Esse tema está fora do debate. Há uma certa insensibilidade.
O pedreiro Francisco das Chagas Mendes, de Teresina, saiu do emprego em 2017, onde ganhava cerca de R$ 1 mil. Mas não apareceu outro emprego com carteira e a saída foi fazer bico de pedreiro.
Conseguiu trabalho em junho, na casa do cunhado, mas o próximo trabalho só apareceu este mês. O ganho foi de R$ 600, dividido com o auxiliar. Dinheiro insuficiente para sustentar a mulher, o filho e quatro netos que moram com ele:
— O dinheiro simplesmente sumiu, e os serviços foram ficando mais difíceis. E a minha família é grande. Só Deus explica como garanto a sobrevivência de minha família.
Na avaliação de Daniel Duque, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), é necessário que o governo crie meios de combater não apenas a desigualdade, mas também a pobreza. Segundo ele, a concessão do benefício do 13º salário para beneficiários do Bolsa Família tem impacto apenas em um trimestre, o que não resolve a pobreza estrutural do país.
— Além da desigualdade, temos que observar a questão da pobreza. Temos um problema de que o Bolsa Família, se não reajustado, vai perdendo o valor, mesmo com a inflação estando mais baixa. O (13º do) Bolsa Família vai ser só em um trimestre. E essa é a única política de fato que esse governo está implementando (nessa área) — afirma.
Segundo Neri, o nível da desigualdade, harmonizando dados de pesquisas anteriores, é o mesmo de 2009. Toda a queda registrada desde então foi anulada pelo aumento da concentração.
— O ano de 2015 foi de subida forte da desigualdade, aumentando menos entre 2016 e 2017 e voltando a subir forte em 2018. A pobreza vem crescendo no mesmo ritmo desde 2014, o ponto mais baixo da série — diz Neri.
A extrema pobreza sobe também em consequência da perda de renda das famílias que recebem o benefício. Houve queda de 14,3% da renda dessas famílias desde 2014. O ganho per capita passou de R$ 398 para R$ 341.
Entre os domicílios onde não há pessoas recebendo o auxílio, a queda foi muito menos intensa no mesmo período — 2014 a 2018 — de 1,4%. São lares que estão entre os 10% mais pobres e com muito menos acesso à água encanada e tratamento de esgoto do que os domicílios que não recebem o benefício.
Para os 'homens de bem', só algumas pessoas têm direito a ter direitos
Não é por acaso que, em uma era em que a democracia é golpeada todos os dias, há um termo que passou a ser alvo de ataques frequentes: os direitos humanos. Sim, aquele arcabouço de leis que prevê a proibição da tortura, as garantias de liberdade e a possibilidade de se defender. Aquele sistema que também estabelece o direito à saúde, à educação e, acima de tudo, à vida. Passou a ser lugar comum no Brasil questionar a conveniência dos direitos humanos, visto por uma ala do país como sinônimo de um pacote de leis que defende bandidos. Mas defende de quê? Da Justiça? Ou de justiceiros, herdeiros de uma sociedade escravocrata, racista e injusta? Em cada ocasião que ouvimos o ódio ao conceito de direitos fundamentais, vale a pergunta: quem é que tem medo dos direitos humanos? Num Estado falido, será que a tortura empregada por agentes em supostos interrogatórios vem mesmo daqueles com a ambição de garantir a segurança e Justiça a uma população?
O medo dos direitos humanos, no fundo, é o medo de que tenham de dar explicações, de investigar, de ser transparentes na busca de criminosos. De uma forma indireta, ao apelar para que direitos fundamentais sejam respeitados, escancara-se o despreparo do Estado para garantir a segurança de seus cidadãos. E não a proteção de bandidos.
Quando esse arcabouço de leis coloca as mulheres num mesmo patamar de direitos em relação aos homens, não faltam aquelas vozes que, na surdina, reclamam de que está havendo um “exagero”. Num país com 164 estupros por dia, ouvimos recentemente um chanceler reclamar que o moralismo estava ultrapassando a realidade da época vitoriana, que “hoje olhar para uma mulher já é uma tentativa de estupro” e que estava “preocupado com a demonização da sexualidade masculina”.
Mas quem tem medo de tal situação senão aquele que vê nesses direitos humanos um limite ao seu poder? Quando um Estado é convidado a reparar um dano histórico a um grupo da sociedade explorado por 300 anos, rapidamente ouvimos vozes de que não é justo com os nossos filhos ter de competir contra cotas. “Eu não sou culpado pela escravidão. Eu falo com todos”, garantem, numa referência certamente ao porteiro, ao segurança e ao lixeiro. Fala-se com todos no Brasil. Mas para dar ordens. Para exigir respeito. Mas será que todos são também escutados?
Quando o direito à defesa é ignorado ou violado, rapidamente há quem tome as dores para alertar que o crime precisa ser combatido. Que há uma “inversão” do papel entre os delinquentes e aqueles que querem combater o crime. Um versão do século 21 para a ideia de que os fins justificam os meios.
Numa democracia, tal atitude é simplesmente um crime, além de ser sua própria ruína. Robert Bolt, em sua peça A Man for All Seasons, traduz em um diálogo encenado no século 16 o falso dilema de que certas pessoas não mereceriam nossas nobres instituições. Na cena, o advogado William Roper questiona Thomas More sobre o fato de ser adequado defender um homem que seria um representante das forças do mal na sociedade.
Então, você daria ao Diabo o benefício da lei — exclamou Roper. Sim. O que você faria? Abriria uma grande estrada pelo direito para agarrar o Diabo?, perguntou More. Eu cortaria toda a lei na Inglaterra para isso, respondeu Roper. E quando a última lei for derrubada e o Diabo se virar contra você, onde é que você se esconderá se todas as leis foram destruídas?, alertou More. Este país está repleto de leis, de costa a costa, as leis dos homens, não as de Deus! E se você as cortar, você realmente acha que pode ficar de pé diante dos ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei, por minha própria segurança!
Evocar o estado de direito ou direitos humanos, portanto, é garantir nossa própria sobrevivência e liberdades fundamentais. Onde está consolidada a relação de que estados que não seguem regras básicas de respeito ao ser humano são mais seguros? Onde estão os indícios de que um estado que mata é aquele que mais liberdades assegura aos “cidadãos de bem”? Onde estão as provas de que um Estado que dribla o estado de direito é quem vai garantir a liberdade? Se essa linha entre nós e eles é desenhada sobre a areia, que garantias temos de que um dia não seremos colocados do outro lado da fronteira por dar a mão na rua a quem desejarmos, ler o que sonharmos, orar por quem nos inspira?
Nesta quinta-feira, dia 17, o Brasil tem enormes possibilidades de ser eleito para mais um mandato no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Caberá ao Estado usar tal mandato para fazer avançar a proteção de minorias e grupos vulneráveis, do estado de direito e do espaço democrático. Justamente para que toda a sociedade seja preservada em seus direitos fundamentais. A defesa dos direitos humanos é a defesa da civilização. É a garantia de Justiça e o único caminho para a paz. Não existem atalhos. Para isso, teremos de defender, diariamente, o direito de todos. Do rei e do diabo. E inclusive de nossos maiores adversários.
A guerra fria de Bolsonaro
“Temos inimigos dentro e fora do Brasil. Os de dentro são os mais terríveis”. Foi com esse espírito que o presidente Jair Bolsonaro participou de cerimônias no Rio de Janeiro e em São Paulo na última sexta-feira. No sábado foi a vez de seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, se manifestar durante a 1ª edição do CPAC, uma conferência organizada em parceria com a União Conservadora Americana, com críticas à mídia e ao “domínio cultural marxista”.
Atribui-se ao general Golbery de Couto e Silva a autoria da doutrina de Segurança Nacional, segundo a qual era preciso povoar o centro-oeste e o norte do país e se aliar aos Estados Unidos como garantia da nossa soberania. Essa doutrina, formulada em plena Guerra Fria, trabalhava com o conceito de inimigos externo e interno.
O primeiro era o comunismo internacional, liderado pela União Soviética, e que tinha em Cuba a sua plataforma de exportação para os países latino-americanos. No plano interno, a chamada subversão era o inimigo a ser vencido. Esses eram os agentes da infiltração comunista em nosso país.
A ocupação da Amazônia se deu a partir desse figurino. Era preciso integrar para não entregar a região a interesses escusos.
Havia os inimigos internos. Desde a esquerda que combatia o regime de armas nas mãos até a oposição legal e democrática, passando pela área da cultura e por entidades da sociedade civil, como OAB, CNBB, ABI, SBPC, entre outras. Em particular, o regime via a Igreja Católica como foco de subversão e enxergava como “maus brasileiros” todos os que criticavam o governo no exterior.
Jair Bolsonaro e muitos de seu núcleo militar vieram dessa época. Isso explica em grande medida o fato do presidente trabalhar com as mesmas categorias mentais, apesar de viver em outros tempos. Mudaram os atores e a conjuntura, mas a concepção é a mesma.
O conceito do inimigo externo foi adaptado aos tempos atuais. Não é mais o comunismo internacional, ainda que o presidente e seu governo façam do anticomunismo uma peça de coesão ideológica do seu campo. Em sua ótica, a ameaça à soberania nacional vem do globalismo inspirado no “marxismo cultural”, que quer destruir a sociedade judaico-cristã do mundo ocidental.
Assim, por trás das críticas ao seu governo à crise amazônica estariam os interesses escusos do globalismo de se apropriar das riquezas da região, em especial dos minérios: "O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério.”
As ONGs, os indígenas como Raoni, a imprensa, os órgãos públicos como INPE, e todos que denunciam o desmatamento da Amazônia são vistos como infiltrados de um globalismo que vai de Emmanuel Macron a George Soros, passando pela ONU, a União Europeia e outros fóruns internacionais.
A política externa também é ditada pela geopolítica bolsonariana e por uma ótica fundamentalista que vê nos Estados Unidos de Donald Trump os novos cruzados que vão salvar a civilização ocidental. A aliança com países de governo “soberanistas”, como a Hungria de Victor Orbán também decorre da mesma visão apocalíptica do globalismo.
Internamente, há um rol infindável de inimigos. Os professores que fazem lavagem cerebral nos alunos, os críticos de sua política externa, a área cultural, a OAB, a imprensa, e, não poderia faltar, a Santa Madre Igreja, que ousa organizar um sínodo para discutir a Amazônia.
A geopolítica dos militares do passado tinha sua explicação. O mundo dividia-se em dois blocos, havia uma corrida nuclear, guerras regionais, como a da Coreia e do Vietnã, e o fantasma de uma terceira guerra mundial quase se materializou na crise dos mísseis em Cuba. Tínhamos espaçonaves e guerrilhas, com Guevara na Bolívia, Lamarca e Marighela no Brasil.
As batalhas de Bolsonaro se dão em um mundo inteiramente diferente, de economia globalizada e movimentos sociais complexos, no qual a grande corrida para definir as potências é a tecnológica.
Atribui-se ao general Golbery de Couto e Silva a autoria da doutrina de Segurança Nacional, segundo a qual era preciso povoar o centro-oeste e o norte do país e se aliar aos Estados Unidos como garantia da nossa soberania. Essa doutrina, formulada em plena Guerra Fria, trabalhava com o conceito de inimigos externo e interno.
O primeiro era o comunismo internacional, liderado pela União Soviética, e que tinha em Cuba a sua plataforma de exportação para os países latino-americanos. No plano interno, a chamada subversão era o inimigo a ser vencido. Esses eram os agentes da infiltração comunista em nosso país.
A ocupação da Amazônia se deu a partir desse figurino. Era preciso integrar para não entregar a região a interesses escusos.
Havia os inimigos internos. Desde a esquerda que combatia o regime de armas nas mãos até a oposição legal e democrática, passando pela área da cultura e por entidades da sociedade civil, como OAB, CNBB, ABI, SBPC, entre outras. Em particular, o regime via a Igreja Católica como foco de subversão e enxergava como “maus brasileiros” todos os que criticavam o governo no exterior.
Jair Bolsonaro e muitos de seu núcleo militar vieram dessa época. Isso explica em grande medida o fato do presidente trabalhar com as mesmas categorias mentais, apesar de viver em outros tempos. Mudaram os atores e a conjuntura, mas a concepção é a mesma.
O conceito do inimigo externo foi adaptado aos tempos atuais. Não é mais o comunismo internacional, ainda que o presidente e seu governo façam do anticomunismo uma peça de coesão ideológica do seu campo. Em sua ótica, a ameaça à soberania nacional vem do globalismo inspirado no “marxismo cultural”, que quer destruir a sociedade judaico-cristã do mundo ocidental.
Assim, por trás das críticas ao seu governo à crise amazônica estariam os interesses escusos do globalismo de se apropriar das riquezas da região, em especial dos minérios: "O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério.”
As ONGs, os indígenas como Raoni, a imprensa, os órgãos públicos como INPE, e todos que denunciam o desmatamento da Amazônia são vistos como infiltrados de um globalismo que vai de Emmanuel Macron a George Soros, passando pela ONU, a União Europeia e outros fóruns internacionais.
A política externa também é ditada pela geopolítica bolsonariana e por uma ótica fundamentalista que vê nos Estados Unidos de Donald Trump os novos cruzados que vão salvar a civilização ocidental. A aliança com países de governo “soberanistas”, como a Hungria de Victor Orbán também decorre da mesma visão apocalíptica do globalismo.
Internamente, há um rol infindável de inimigos. Os professores que fazem lavagem cerebral nos alunos, os críticos de sua política externa, a área cultural, a OAB, a imprensa, e, não poderia faltar, a Santa Madre Igreja, que ousa organizar um sínodo para discutir a Amazônia.
A geopolítica dos militares do passado tinha sua explicação. O mundo dividia-se em dois blocos, havia uma corrida nuclear, guerras regionais, como a da Coreia e do Vietnã, e o fantasma de uma terceira guerra mundial quase se materializou na crise dos mísseis em Cuba. Tínhamos espaçonaves e guerrilhas, com Guevara na Bolívia, Lamarca e Marighela no Brasil.
As batalhas de Bolsonaro se dão em um mundo inteiramente diferente, de economia globalizada e movimentos sociais complexos, no qual a grande corrida para definir as potências é a tecnológica.
Bolsonaro trava a guerra do passado em vez de se dedicar à guerra do futuro.
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