sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Não há dois terços do Congresso para impichar Bolsonaro, mas há o que fazer

O presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade na sua mais recente investida contra o Congresso e o Supremo? Segundo a Lei 1.079, que também pune as tentativas, nada menos de nove. Antes de concluir o terceiro mês de mandato, já havia outros quatro no currículo. Impeachment nele?

Não agora. Inexiste o mínimo de 342 deputados para levá-lo a julgamento no Senado. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, mandaria a petição para o lixo. Nem precisaria discordar de seus termos para fazê-lo. Seria um erro político, tendente a fortalecer o fanfarrão truculento, admitir uma denúncia que morreria já na Comissão Especial.


É tempo de acumulação de forças no terreno democrático para conter a fascistização do governo e da política. Às armas, cidadãos! Comece-se por convocar o general Augusto Heleno. O seu “dofa-se” — perdão pelo decoro, ministro — para o Congresso quer dizer o quê? Incitar as ruas contra os Poderes Constituídos atende a que propósito? Um Parlamento que não o obrigue a sentar na cadeira das explicações está condenado.

Mais: as lideranças da Câmara e do Senado comprometidas com a institucionalidade têm de ficar atentas ao comportamento de figuras exóticas que hoje integram as suas fileiras. Aqueles que, em nome da liberdade e da imunidade, marcharem contra as próprias Casas que os obrigam têm de ser denunciados ao Conselho de Ética por quebra do decoro e cassados.

Já escrevi centenas de vezes, desde quando o PT no poder parecia mais eterno do que o bacalhau que pesa sobre os ombros do rapaz do rótulo da Emulsão Scott: o regime em que tudo pode é a tirania — ao menos para o tirano e seus amigos. A democracia conta com leis, normas, códigos de conduta. Os que se organizam para fraudar as regras têm de ser expulsos do jogo.

Acumulação de forças em defesa da ordem democrática! É preciso começar a desmontar desde já a delicada equação que nos trouxe até aqui. Não será fácil.

Cinquenta e quatro depois do golpe de 1964, os fardados resolveram se meter outra vez aventura cívico-militar para “salvar o Brasil”. Deu errado antes; dá errado agora. Lugar de fardado é no quartel ou no campo de batalha. Quando na ativa, só para lembrar, Bolsonaro queria explodir algumas bombas nos primeiros. Só entrou em guerra contra a lógica, o bom senso e a língua portuguesa.

Antes por meio do golpe, agora das eleições, o mau propósito dos fardados é o mesmo: colonizar o Estado na certeza de que civis são seres naturalmente degenerados, que se entregam a apetites vários que não o amor à pátria.

O desengano, talvez má-fé, pode ser assim sintetizado: ainda na transição para a democracia, Bolsonaro foi posto para fora do Exército porque revelara tentações terroristas. Na democracia, os quatro-estrelas resolveram submeter-se ao comando político do ex-filoterrorista que, como se vê, não aprendeu nada nem esqueceu algumas porcarias que julgava saber.

Pós-ditadura, os militares haviam recuperado a sua reputação e competência específica, inclusive com o dinheiro vasto que lhes garantiu o hoje demonizado Luiz Inácio Lula da Silva. Têm de começar desde já a organizar a saída, antes que afundem junto com os delírios de um lunático.

Mais uma tarefa para os articuladores do Congresso: além convocar os boquirrotos do Executivo e cassar os sabotadores “enratizados” em suas próprias fileiras, é preciso dialogar com a cúpula das Forças Armadas para dar início à descolonização do Estado.

Encerro a coluna comentando a performance de Sergio Moro, o verdadeiro líder da extrema-direita brasileira, a desfilar sobre um tanque em Brasília. O Mussolini de Maringá o fazia um dia depois de seu chefe (por enquanto...) endossar a convocação para um ato que prega que militares emparedem o Congresso e o Supremo.

Como observador da cena, fico satisfeito por jamais ter caído na lábia do tabaréu assoberbado em demiurgo. Como indivíduo, lamento. Até na imprensa há quem sinta, vendo aquela cena, certo desconforto nos joelhos. São calos decorrentes do vício da genuflexão.

Às armas, cidadãos! As da inteligência.

No Brasil, somos objeto de preconceito de nós mesmos

O Brasil não é um país homogêneo, que se explique e se governe pelo senso comum da mentalidade binária e reacionária. O Brasil é plurissocial, multirracial, multicultural, plurirreligioso, multionírico e até mesmo, multilíngue. Gostamos de achar que somos um povo homogêneo. Em nome, porém, da falta de homogeneidade somos objeto de preconceito de nós mesmos, de intolerância e de desconfiança. Padecemos a incompetência de ser o que não gostamos de ser. É uma questão antropológica que pode se expressar como questão política.

O Brasil é plurissocial porque é o país de desigualdades sociais profundas e de injustiças dolorosas. Até os pobres se concebem diferençados entre graus de pobreza que geram repulsas e exclusões mal disfarçadas entre eles mesmos. A classe média, que, como em todas as partes, é realização insuficiente do que são os ricos, acaba sendo caricatura da riqueza. O tom de voz denuncia todo o tempo a incultura que lhe tolhe a competência para ser o que finge ser, mas não consegue.


Ela tem o dinheiro dos de cima, mas padece a incompetência de classe dos de baixo. No Brasil, as classes sociais não têm a pureza histórica que se supõe na teoria. São um permanente e sofrido fingimento, na penosa necessidade de teatralizar o modo de ser dos outros, daquilo que não se é.

Já no fim dos governos lulistas, a metamorfose da mentalidade dos assalariados ia na direção da negação da classe operária para a afirmação da classe média fingida e prometida até mesmo pela esquerda.

Diversamente do que muitos militantes de esquerda supõem e pretendem, o operário não tem a ambição de ser operário a vida inteira. Ele quer subir na vida, quer negar e superar o confinamento social da condição operária.

A ascensão social da classe trabalhadora foi promessa e engenharia social da elite cafeeira. Está lá, com todas as letras, num discurso notável de Antonio da Silva Prado no Senado do Império. Nele, definiu os termos do imaginário social da nova classe trabalhadora, que nascia com o fim da escravidão. Eram os termos da cumplicidade entre empregados e patrões, na preservação da ordem social.

O Brasil é, também, multirracial porque não é nem branco nem negro. É um país mestiço, além de ser etnicamente diversificado. Multirracial que não quer sê-lo. Muitos querem ser o branco que não são. Ultimamente, muitos querem ser o negro que nunca foram.

É multicultural porque a diversidade das populações que lhe deram a cara que todos temos agregou num todo uma significativa diversidade de visões de mundo, de valores de referência na conduta individual e social.

O Brasil cristão da ideologia geopolítica do atual regime bolsonarista tampouco o é. Nem os cristãos são tão cristãos assim. Dividem-se e conflitam em nome de diferenças de um cristianismo de senso comum e lotérico. O de um Deus que distribui prebendas e riquezas. Que salva distribuindo aquilo que a tradição da religiosidade popular brasileira, de fundo milenarista, considera como símbolo do poder de satanás, o ouro, o dinheiro e o poder. O novo cristianismo de feira livre, que se difunde entre nós e em outros países do terceiro mundo, é o cristianismo da moeda contra o cristianismo do Espírito.

O Brasil é multionírico. As poucas pesquisas sobre sonhos, sobre o mundo onírico do brasileiro, mostram a diversidade de matrizes de referência do imaginário profundo do povo. Sonhos de branco são sonhos de medo. Pretos verdadeiros não são necessariamente os de pele negra. São os que ainda se orientam pelo imaginário onírico referido aos orixás, os que no sonho consultam os ancestrais e são por eles aconselhados, constatou o sociólogo Roger Bastide.

Brancos verdadeiros são os que sofreram ao longo do tempo a faxina ideológica e religiosa que esterilizou suas referências mágicas e marcou as estruturas sociais profundas de suas referências de conduta com a brancura da repressão de enquadramento. Os que sofrem desconforto com a brancura opressora querem sonhar como negros para ter acesso aos mistérios do mundo de uma negritude desalienadora.

Oficialmente, falamos a língua portuguesa de Portugal, que os portugueses não entendem quando com eles falamos. Nem nós os entendemos, quando nos falam. O português de nossos livros não é o português de nossa fala, de nossos sotaques regionais. Falamos com sotaque nheengatu. Descendentes de alemães de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul falam português, mas durante a fala respiram “em alemão”, que é o ritmo da respiração de quem foi educado para falar alemão. O ritmo das falas, no Brasil, está descolado do ritmo da vida e da nossa diversificada identidade social profunda. Falamos uma coisa e pensamos outra.
José de Souza Martins

Pensamento do Dia


Bolsonaro mostra desprezo pelas instituições democráticas

Foram convocados protestos em todo o Brasil para o dia 15 de março. Há vídeos na internet e ativistas postando convocações nas redes sociais para chamar a população às ruas.

O 15 de março não é qualquer data, especialmente quando se trata de manifestações. Em 15 de março de 2015, milhões de brasileiros foram às ruas para pedir o fim da corrupção e a defesa da Petrobras. Houve, também, os primeiros gritos pedindo o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Portanto, é uma data significativa.

No dia seguinte às manifestações, Dilma estendeu a mão aos manifestantes. Mesmo hostilizada por eles, ela disse: "Meu compromisso é governar para os 203 milhões de brasileiros, sejam os que me elegeram, sejam os que não votaram em mim."

Dilma foi até além naquele dia. "Muitos da minha geração deram a vida para que o povo pudesse, enfim, ir às ruas se expressar. Eu particularmente participei e tenho a honra de ter participado do processo da ditadura. Nunca mais no Brasil vamos ver pessoas, ao manifestarem sua opinião, sofrer consequências. Nunca mais isso vai acontecer."

Dilma respeitou as manifestações, que, ao longe dos 12 meses seguintes, levaram ao seu impeachment, ação que ela mesma viria a chamar de golpe.


Pode-se discutir se a palavra golpe é apropriada, levando em consideração que a presidente havia sido eleita, em 2014, pelo voto popular, mas o Congresso também foi. Portanto, ele também representa a vontade popular, e o instrumento do impeachment é previsto na Constituição. Como o orgão julgador não é um tribunal, mas de caráter político, a decisão de tirar Dilma da Presidência foi uma decisão política e não judicial.

Sem entrar na discussão se o impeachment foi um jogo sujo ou não, vale destacar que Dilma acatou a decisão das instituições do Estado democrático de Direito. Assim como antes, também, aceitara a legitimidade das manifestações contra o seu governo e a própria pessoa. Com essa decisão dolorosa, ela prestou um serviço às instituições democráticas, mesmo estando sob ataque destas.

Cinco anos depois, a situação é outra. E não só porque estamos hoje longe daquele dia de 2015, quando o dólar estava a R$ 3,22 e a taxa de desemprego era de 6,2%.

Hoje, diferentemente de 2015, há membros do governo endossando os protestos, na figura do general Augusto Heleno, que foi gravado, no dia 18, com a seguinte fala: "Nós não podemos aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo. Foda-se", disse aos ministros Paulo Guedes e Luiz Eduardo Ramos.

Com esse "foda-se" iniciou-se o movimento pelas manifestações do dia 15. Agora há também o próprio presidente da República chamando seus seguidores para protestar, nesse mesmo dia, contra as instituições – o Congresso e o STF – e a favor de si. "Resgatar o Brasil" é o slogan do vídeo que, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, foi divulgado por Bolsonaro.

Entre os Bolsonaro, o desprezo pelas instituições democráticas parece ser coisa de família. "Se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?", perguntou um dos filhos do presidente, Eduardo, recentemente em seu Twitter. O mesmo Eduardo Bolsonaro já tinha declarado, em 2018, que "se quiser fechar o STF [...] manda um soldado e um cabo."

Vale lembrar: faz parte do repertório dos populistas acusar as instituições democráticas de não os deixarem governar plenamente. Todos fazem isso para enfraquecer o sistema democrático que os fez ser governo. Geralmente é um pretexto para acabar com o sistema democrático de "pesos e contrapesos", criado para equilibrar os poderes e essencial para o pleno funcionamento das instituições democráticas. Coisas que os populistas não querem.

A atuação do presidente tem resultado em críticas, principalmente do próprio STF, alvo das manifestações dos bolsonaristas. Celso de Mello, decano do tribunal, afirmou: "O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredir a supremacia político-jurídica da Constituição e das leis da República."

Ele está se referindo ao artigo 85 da Constituição, que diz que "são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: [...] o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”.

Agora soam os alarmes. Mas me parece que o STF, como também o Congresso, perderam uma ótima oportunidade para mostrar que há linhas vermelhas que ninguém pode cruzar no sistema democrático. Foi no dia 17 de abril de 2016, na votação pela abertura do impeachment de Dilma Rousseff, que o então deputado Jair Bolsonaro declarou: "Em memória do coronel Brilhante Ustra, o meu voto é sim."

Ninguém quis punir Bolsonaro, naquela época, por ter atravessado a linha vermelha que separa a barbárie da civilização. Não punir tal ato foi o sinal claro de que tudo é permitido. Assim, abriu-se o precedente para denegrir a democracia brasileira e suas instituições. Ao mesmo tempo, a transgressão do dia 17 de abril de 2016 deu início à candidatura presidencial de Bolsonaro.

Ao não defenderem a honra da presidente Dilma Rousseff e, ao mesmo tempo, da democracia brasileira, o Congresso e o STF plantaram a semente. Desde então, estão colhendo o que plantaram. E no próximo dia 15, a colheita deverá ser grande.
Thomas Milz

Carnaval em Guarujá

Existe um dilema na vida nacional que somente a antropologia social dá conta de percebê-lo na sua dimensão cultural: a contradição entre os aspectos autoritários, hierarquizados e violentos da nossa sociedade e a busca de um mundo harmônico, democrático e não conflitivo. O antropólogo Roberto da Matta captou esse dilema no livro Carnavais, Malandros e Heróis, de 1979, um clássico da interpretação do Brasil. Na época, o carnaval de rua não era ainda a grande manifestação de massas que se registra hoje em praticamente todos os estados, porém, os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro já traduziam a alma de um Brasil mais profundo.


Este comentário de Henrique Brandão, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia é quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Sambódromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas histórias. Outras, falaram de personalidades com forte identificação com as localidades de onde surgiram as escolas, como Joãozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palhaço negro do Brasil. Os indígenas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapuã, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro. A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto nível. Enfim, mesmo lutando contra a má vontade do poder público — principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval — as escolas saíram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas raízes a chave para renovarem seus desfiles. Há muito não via um carnaval tão bom na Sapucaí”.

Segundo Da Matta, o lado autoritário e hierarquizado da sociedade brasileira tem três dimensões: uma ordem formal, baseada em posições de status e prestígio social bem definidos, onde não existem conflitos e onde “cada um sabe o seu lugar”; uma oposição sistemática entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privilégios, e um universo igualitário dos indivíduos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opressão e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equalização da sociedade, já que todos são filhos de Deus, mas, ao mesmo tempo, são mantidas estruturas claramente hierárquicas de santidade.

Nesses sistemas, se estabelece uma tensão permanente entre a vida doméstica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que é, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobrevivência é anônima, dura e impiedosa. Os privilégios da elite do tipo “você sabe com quem está falando” impõem à maioria as relações de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidadão comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. É aí que o carnaval subverte tudo, pois é uma manifestação essencialmente igualitária, na qual a transgressão e a liberdade traduzem para as ruas as relações espontâneas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hierárquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os excluídos assumem o lugar que quase sempre lhes é negado nos demais dias do ano.

Paradas militares, procissões e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira; a irreverência dos blocos de rua e os heróis populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval é essencialmente igualitário e, nos seus quatro dias, dramatiza e transpõe para o mundo da “rua” os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas que são o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.

Na antropologia, a “cultura” é um conceito-chave para a interpretação da vida social, não é uma forma de hierarquizar a sociedade. Não marca uma hierarquia de “civilização”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, país ou pessoa. É justamente porque compartilham de parcelas importantes desse código (a cultura) que indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade. Segundo Da Matta, desenvolvem relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situações. A cultura não é um código que se escolhe simplesmente. É algo que está dentro e fora de cada um de nós.

O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guarujá, não gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval é a negação de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandatário da nação, porém, deveria prestar mais atenção ao recado dos foliões, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspirações mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convocação de uma manifestação para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’état”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobilização, numa afronta à Constituição de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Luís Napoleão.
Luiz Carlos Azedo

Organizações alertam ONU sobre o crescente risco para os índios isolados do Brasil

Eles são os mais vulneráveis ​​entre os vulneráveis. Três ONGs brasileiras se aliaram para alertar nas Nações Unidas sobre o grave risco que representa o desmantelamento da política ambiental do Brasil para os povos indígenas isolados, aqueles que não têm contato com outros grupos étnicos, sejam indígenas ou não. Essas entidades advertem que o aumento do desmatamento e das invasões de garimpeiros e madeireiros ilegais têm sido muito mais acentuados nas terras onde foi confirmada a presença dessas comunidades — ou onde se acredita que elas vivam, já que de muitas delas só existem registros superficiais — especialmente sensíveis a doenças e ao desaparecimento da flora e da fauna.


O Instituto Socioambiental, a Comissão Arns e a Conectas Direitos Humanos prepararam um relatório que “detalha o processo de desmantelamento das políticas ambientais e indigenistas por parte deste Governo” que, liderado por Jair Bolsonaro, tomou posse há quase 14 meses. Desde a campanha eleitoral, o militar reformado anunciou sua intenção de permitir a exploração econômica das terras indígenas —o projeto de lei está no Congresso—e enfraquecer a política ambiental. O líder indígena David Kopenawa Yanomami ficará encarregado de apresentar o estudo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU em 3 de março, em Genebra (Suíça). O Brasil é o país com mais povos indígenas isolados. Está confirmada a presença de 28 comunidades e a existência de outras 86 está em estudo, segundo o relatório do ISA, da Comissão Arns e da Conectas, que mencionam cifras oficiais.

Uma das medidas que melhor representa a guinada radical impulsionada por Bolsonaro é a nomeação de um ex-missionário evangélico para comandar o órgão dedicado à proteção de índios isolados e de recente contato. As doenças dos não índios e os evangelizadores são duas das grandes ameaças a esses grupos desde o desembarque dos jesuítas com a conquista portuguesa em 1500. Ricardo Lopes Dias, o indicado pelo presidente para a área, trabalhou por muitos anos com uma organização norte-americana chamada Missão Novas Tribos do Brasil, um culto focado em povos indígenas e com táticas agressivas de assimilação. Segundo a ONG Survival, eles proclamam que pretendem chegar até a última etnia, porque só então Cristo voltará.

Essa espécie de SOS que querem lançar à ONU tem por base os alarmantes balanços do ano passado. “Mais de 21.000 hectares foram destruídos somente em 2019 em terras com índios isolados, o que representa um aumento de 113%. É um incremento muito superior aos valores médios na Amazônia e nas áreas protegidas (por lei) em geral, o que indica o aumento de ilegalidades e invasões e a gravidade do problema.” As ONGs apontam quatro casos de perigo iminente: a presença constante de missionários no Vale do Javari, a terra indígena com mais povos isolados, bem como o assassinato de um ex-funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai) e o ataque a tiros contra uma de suas bases. Nas terras Yanomami a ameaça são os 20.000 garimpeiros que degradaram 300.000 hectares e que, com seu mercúrio, poluem os rios; os 60 indígenas isolados Awá, filmados recentemente e que vivem em uma reserva onde madeireiros ilegais já construíram mais de 1.000 quilômetros de estradas para extrair seu minério e onde um indígena de uma patrulha de vigilância da flora foi assassinado; o quarto grupo em grave perigo foi avistado pela última vez quando fugia dos incêndios na ilha do Bananal.

Na mesma linha das conclusões de uma cúpula de líderes indígenas realizada na Amazônia brasileira em janeiro, o trio de ONGs alerta para o crescente risco de etnocídio e de genocídio, embora nenhum dos dois termos apareça no documento que será apresentado à ONU. As ONGs pedem que a ONU exija que o Governo brasileiro fortaleça os órgãos oficiais de proteção dos povos indígenas (a Funai), do meio ambiente (o Ibama), da biodiversidade (o Instituto Chico Mendes) e os encarregados da fiscalização, notavelmente enfraquecidos nos últimos meses por uma série de medidas que levaram todos os ex-ministros do Meio Ambiente vivos do Brasil a expressar juntos sua preocupação. Eles também pedem um maior investimento para localizar povos indígenas isolados e que os processos de demarcação de terras indígenas (que lhes dão proteção legal) sejam retomados.

Infâmia pública: Bolsonaro passa dos limites todos os dias

Existe ato mais grave do que o chefe do Poder Executivo divulgar vídeo convocando seus seguidores para ato de protesto contra o Poder Legislativo? Existe, e atende pelo nome de ruptura democrática.

O presidente Jair Bolsonaro passa todos os dias do limite. Não importa qual o limite, ele rompe todos. No começo do seu mandato, ele ultrapassava apenas as fronteiras do bom gosto e do senso comum. Há um ano, no seu primeiro carnaval, o presidente perdeu a linha ao reproduzir em rede social o famoso “golden shower”, uma brincadeira idiota em que um homem urina sobre outro no meio da folia. Também fez gracinha com um homem de traços orientais, sugerindo que ele tinha um pênis pequeno.

Logo o capitão começou a quebrar as barreiras que separam o estado de direito do estado de força. Sentido-se cada vez mais à vontade, aplaudido por puxa-sacos palacianos, ouvindo claques de apoiadores plantadas onde quer que vá, sempre cercado por seguranças, ele fala, ouve urras e risadas e acha que está mandando bem. E assim vai construindo um círculo vicioso onde diz uma bobagem, sua turma repercute com vivas nas redes, e a repercussão volta a ele, que aumenta o tom.

Nesta terça, o tom foi alto demais. Bolsonaro distribuiu um vídeo chamando para um ato no dia 15 de março em apoio a ele e contra o Congresso Nacional. Embora não faça menção ao Legislativo, a convocação é para o mesmo dia em que apoiadores do presidente marcaram manifestações em todo o país em favor do governo e dos militares (como se eles estivessem ameaçados) e contra o Congresso. Os posts convocatórios para o dia 15 dizem coisas como “Os militares aguardam as ordens do povo”, “Fora Maia e Alcolumbre”, ou “”Foda-se” inscrito sobre uma imagem do general Heleno fardado.

O presidente, que jamais poderia aliar-se a uma manifestação contra um poder da República, foi muito além ao incentivar a sua organização e ao entrar agora na corrente de convocação, mesmo que no WhatsApp entre amigos.

O vídeo é ridículo. Diz que Bolsonaro “enfrentou os poderosos (...) e quase morreu por nós”. Usando sempre o “nós”, como se falasse em nome do povo brasileiro, afirma que o presidente combateu a “esquerda corrupta e sanguinária” e que “sofre calúnias e mentiras”. De acordo com o vídeo, de clara inspiração totalitária que trata seu líder como único e infalível, Bolsonaro é “trabalhador, incansável, patriota, cristão, capaz, justo e incorruptível”. Um Kim Jong-un tropical de direita.

É crime atentar contra o Poder Legislativo. Fazer pressão contra ou a favor de projetos em tramitação no Congresso é legítimo e democrático. Esse tipo de ação política é feita de maneira sistemática e continuada. O que não se pode é contrapor o Poder Legislativo a outro poder. Associar as forças armadas ao protesto, como mostram os panfletos digitais da convocação, á ainda mais grave. Sugere que o poder das armas estaria posicionado em favor de um dos lados, o lado de Bolsonaro.

O que está em disputa é o poder constitucional do legislativo de realocar recursos do orçamento. Foi por isso que o general Heleno produziu aquela barbaridade, chamando os parlamentares de chantagistas e mandando um “foda-se” ao Congresso. E a ele associaram-se a direita nacional, a tradicional e os seus novos rebanhos, e agora o presidente da República. O que se verá nas ruas do país do dia 15 de março serão pessoas pregando contra um dos alicerces da democracia. Será uma infâmia pública.

Apenas um dos três poderes da República pode ser suprimido sem que faça falta ou se interrompa o processo democrático. É o poder Executivo, que pode ser assumido pelo legislativo no regime parlamentarista. Mesmo assim, a mudança de regime só pode ocorrer como resultado de um consenso político. Já os poderes Legislativo e Judiciário não podem ser suspensos jamais. O Congresso e o Supremo eventualmente decidem contra a vontade da maioria e mesmo assim são imprescindíveis. Eles podem até mesmo errar, mas suas virtudes serão sempre muito maiores do que seus erros.

Ascânio Seleme