sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

No Brasil, somos objeto de preconceito de nós mesmos

O Brasil não é um país homogêneo, que se explique e se governe pelo senso comum da mentalidade binária e reacionária. O Brasil é plurissocial, multirracial, multicultural, plurirreligioso, multionírico e até mesmo, multilíngue. Gostamos de achar que somos um povo homogêneo. Em nome, porém, da falta de homogeneidade somos objeto de preconceito de nós mesmos, de intolerância e de desconfiança. Padecemos a incompetência de ser o que não gostamos de ser. É uma questão antropológica que pode se expressar como questão política.

O Brasil é plurissocial porque é o país de desigualdades sociais profundas e de injustiças dolorosas. Até os pobres se concebem diferençados entre graus de pobreza que geram repulsas e exclusões mal disfarçadas entre eles mesmos. A classe média, que, como em todas as partes, é realização insuficiente do que são os ricos, acaba sendo caricatura da riqueza. O tom de voz denuncia todo o tempo a incultura que lhe tolhe a competência para ser o que finge ser, mas não consegue.


Ela tem o dinheiro dos de cima, mas padece a incompetência de classe dos de baixo. No Brasil, as classes sociais não têm a pureza histórica que se supõe na teoria. São um permanente e sofrido fingimento, na penosa necessidade de teatralizar o modo de ser dos outros, daquilo que não se é.

Já no fim dos governos lulistas, a metamorfose da mentalidade dos assalariados ia na direção da negação da classe operária para a afirmação da classe média fingida e prometida até mesmo pela esquerda.

Diversamente do que muitos militantes de esquerda supõem e pretendem, o operário não tem a ambição de ser operário a vida inteira. Ele quer subir na vida, quer negar e superar o confinamento social da condição operária.

A ascensão social da classe trabalhadora foi promessa e engenharia social da elite cafeeira. Está lá, com todas as letras, num discurso notável de Antonio da Silva Prado no Senado do Império. Nele, definiu os termos do imaginário social da nova classe trabalhadora, que nascia com o fim da escravidão. Eram os termos da cumplicidade entre empregados e patrões, na preservação da ordem social.

O Brasil é, também, multirracial porque não é nem branco nem negro. É um país mestiço, além de ser etnicamente diversificado. Multirracial que não quer sê-lo. Muitos querem ser o branco que não são. Ultimamente, muitos querem ser o negro que nunca foram.

É multicultural porque a diversidade das populações que lhe deram a cara que todos temos agregou num todo uma significativa diversidade de visões de mundo, de valores de referência na conduta individual e social.

O Brasil cristão da ideologia geopolítica do atual regime bolsonarista tampouco o é. Nem os cristãos são tão cristãos assim. Dividem-se e conflitam em nome de diferenças de um cristianismo de senso comum e lotérico. O de um Deus que distribui prebendas e riquezas. Que salva distribuindo aquilo que a tradição da religiosidade popular brasileira, de fundo milenarista, considera como símbolo do poder de satanás, o ouro, o dinheiro e o poder. O novo cristianismo de feira livre, que se difunde entre nós e em outros países do terceiro mundo, é o cristianismo da moeda contra o cristianismo do Espírito.

O Brasil é multionírico. As poucas pesquisas sobre sonhos, sobre o mundo onírico do brasileiro, mostram a diversidade de matrizes de referência do imaginário profundo do povo. Sonhos de branco são sonhos de medo. Pretos verdadeiros não são necessariamente os de pele negra. São os que ainda se orientam pelo imaginário onírico referido aos orixás, os que no sonho consultam os ancestrais e são por eles aconselhados, constatou o sociólogo Roger Bastide.

Brancos verdadeiros são os que sofreram ao longo do tempo a faxina ideológica e religiosa que esterilizou suas referências mágicas e marcou as estruturas sociais profundas de suas referências de conduta com a brancura da repressão de enquadramento. Os que sofrem desconforto com a brancura opressora querem sonhar como negros para ter acesso aos mistérios do mundo de uma negritude desalienadora.

Oficialmente, falamos a língua portuguesa de Portugal, que os portugueses não entendem quando com eles falamos. Nem nós os entendemos, quando nos falam. O português de nossos livros não é o português de nossa fala, de nossos sotaques regionais. Falamos com sotaque nheengatu. Descendentes de alemães de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul falam português, mas durante a fala respiram “em alemão”, que é o ritmo da respiração de quem foi educado para falar alemão. O ritmo das falas, no Brasil, está descolado do ritmo da vida e da nossa diversificada identidade social profunda. Falamos uma coisa e pensamos outra.
José de Souza Martins

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