segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Os russos precisam derrubar Putin

Vladimir Putin acha que cerca Kiev, mas é Kiev que o cerca. O carniceiro russo esperava fazer uma blitzkrieg na Ucrânia agredida, mas encontrou uma resistência não menos do que heroica do exército oponente, comandada por um presidente que conta hoje com a aprovação de 94% dos ucranianos. Volodymyr Zelensky se tornou um símbolo de coragem e resiliência para os seus compatriotas e para o mundo. O Ocidente, temeroso de uma guerra prolongada que também lhe seria custosa, ofereceu-lhe uma rota de fuga. Ele recusou-se a abandonar a luta, como Vladimir Putin esperava que fizesse — e, com o seu comportamento inspirador e impressionante capacidade de comunicação nas redes sociais, obrigou os líderes ocidentais a mostrar os dentes para a Rússia, seja na forma de sanções econômicas mais duras do que as previstas, seja por meio de ajuda militar efetiva. Ainda que o rolo compressor russo atinja os seus objetivos militares, já está claro que os ucranianos, entre militares e civis, não se dobrarão aos invasores e estão dispostos a transformar o seu país numa espécie de Afeganistão para os russos. Na Europa, a cifra fornecida por Kiev, de que o seus exército matou 3.500 soldados inimigos em cinco dias de conflito, começa a ser levada a sério, depois de ser considerada mera propaganda. Se a informação for mesmo verdadeira, é algo assombroso. Será espantoso ainda que seja um terço disso. Para se ter ideia, em 10 anos de guerra, os russos perderam 14,5 mil homens em território afegão. Moscou anunciou hoje que vai desacelerar a ofensiva.


Volodymyr Zelensky é um ex-comediante que foi subestimado no Kremlin e no Ocidente — e só continua a sê-lo pelos idiotas. Com um simples celular, ele já derrotou Vladimir Putin e a sua máquina de censura e fake news. O carniceiro russo perdeu a batalha de comunicação, como se pode ver pelas manifestações de rua contra a invasão da Ucrânia que ocorrem nos países ocidentais e na própria Rússia. Pelos boicotes esportivos de imensa repercussão. Pelas sanções ocidentais aos canais de notícias falsas patrocinados pelos russos que vinham operando livremente no Ocidente. O mundo livre e moderno constata a diferença entre um Volodymyr Zelinsky, que transmite de lugares públicos de Kiev e sabe se comunicar pelo Twitter (quase 4 milhões de seguidores neste momento) e pelo Instagram (quase 13 milhões de seguidores), e um Vladimir Putin, isolado no cavernoso Kremlin e que faz uso apenas de um TV estatal que lhe é inteiramente submissa, da censura e das fake news. Como disse o jornalista americano Dan Rather no Twitter, “Putin deve estar se mordendo ao ver Zelensky tornar-se um herói mundial, o líder forte e corajoso que se eleva moralmente sobre o pária russo. Isso torna o destino de Zelensky ainda mais precário. E a situação na Ucrânia ainda mais preocupante”.

O ex-agente obscuro da KGB achou que poderia cancelar a Ucrânia como nação, com um discurso montado numa retórica velha da época da Guerra Fria, mas acabou fortalecendo o sentimento nacional ucraniano expresso admiravelmente pelo presidente ex-comediante. Hoje, enquanto a Ucrânia é objeto de solidariedade e ajuda financeira e militar, a Rússia se vê sob um carniceiro que, roído pela vaidade, pela inveja e pela vingança, ameaça não apenas a Ucrânia, mas a humanidade, dizendo que pode lançar mão de armas nucleares, para liquidar um mundo que não reflete a imagem que ele acha ter.

Só há um caminho a seguir para a Rússia. Depois do desmoronamento moral do seu líder e da degradação da imagem do país, da possibilidade de se atolar em outro Afeganistão, mas na Europa, da ruína econômica que se avizinha — o rublo desabou 40%, a taxa de juros foi a 20%, a bolsa de valores não abriu hoje — e, principalmente, do risco de o carniceiro lançar mão de armas atômicas para destruir não somente a Ucrânia, mas a inteira civilização, o que ainda compreende a Rússia, cabe aos próprios russos se livrar de Vladimir Putin. É preciso que eles o derrubem. Zelensky é um líder corajoso e admirável na sua modernidade; Putin é um ditador covarde e perigoso no seu anacronismo. Ele foi longe demais para que a sua palavra possa ser crível em qualquer negociação.

Brasil solidário

 


Idade da Estupidez

Amany Alali
Há quem diga que este período da história da humanidade será conhecido como a Idade da Estupidez. O raciocínio corre sobre o fio da lógica e revela uma contradição. Ao mesmo tempo em que a ciência avança em todas as áreas, no terreno espiritual experimentamos o regresso ao breu da ignorância.

A absoluta maioria dos viventes é beneficiária do avanço, mas não é parte da inteligência que o produziu. Ao contrário, usa os seus resultados para espargir a sua estupidez. A internet é o melhor exemplo. Todas as pessoas podem expor suas ideias, o que é comemorado pelos idiotas da oclocracia com bumbos, trombones e urras à nova democracia. Estudo recente de universidades europeias sobre os conteúdos veiculados nas redes da web informa que 90% dos internautas têm a oferecer apenas sandices, bobagens, preconceitos, pieguices, superstições e todo o tipo de vulgaridade da vida pornográfica. Isso na Europa, onde o padrão intelectual é sabidamente superior ao nosso. Basta comparar a qualificação das nossas universidades no ranking mundial. Perdemos para o Cazaquistão.

O caldo de cultura produzido na internet é espesso em sabedoria extraída do senso comum. Conceitos latrinários de filosofia de boteco adquirem a aura de verdade porque é a verdade da maioria. Os fanáticos de todos os fundamentalismos fazem a festa. Aí incluídos defensores do “politicamente correto”. Gente que insiste em impor à vida pública regras morais e costumes que adotou na vida privada. O que parecia ser parte da luta contra os preconceitos tornou-se instrumento ditatorial de hordas que se organizam contra as liberdades de quem não concorda com suas ideias. Nada mais preconceituoso.

O fenômeno criou um mercado próspero para as teorias de baixa extração intelectual. Os pregadores propõem bobagens absurdas e a maioria, em sua idiotia, repete. A mídia que restou, conformada a esse mercado, reproduz a logorréia que escorre do computador para as manifestações públicas mais deprimentes. Entre elas, essa mania recente de mulheres a mostrar os seios, sendo que algumas deveriam ser proibidas pelo estado de decadência física em que se encontram.

Uma preocupação apresentada no estudo é com a reprodução do lixo cultural por outros meios também poderosos. A pesquisa tomou uma amostra entre professoras do primeiro grau. Todas se mostraram influenciadas por movimentos da ignorância e naturalmente repassam suas ideias aos alunos. Isso indica que teremos uma geração de imbecis bastante fundamentados em teorias estúpidas.

Há salvação? O estudo não é conclusivo. E sabemos que o estúpido é, antes de tudo, um forte, porque sua força se tornou expressão coletiva através da rede mundial da internet. Teremos que conviver com a praga de nosso tempo. O estúpido está em todos os lugares. Seja escabroso, rabelaisiano ou ecológico. Religioso fundamentalista ou acadêmico emérito e laureado. Sacerdote nutricionista, teórico dos gêneros e da liberdade sexual. Há estúpido sumítico e valetudinário, como há estúpido que crê na hierarquia de valores, no patriotismo boçal e no direito de extravasar seus recalques no futebol e no carnaval. Há também os que acreditam nos direitos intocáveis de cães, gatos e de todos os animais irracionais. Talvez por solidariedade e identificação.

Eu, com todo o respeito, não acredito que haja estúpido neófito. Sou pessimista. A vida mostrou-me que não há condição para ser idiota. O idiota é idiota independente de gênero, classe social, idade, escolaridade, opção política, profissão ou religião. O estúpido nasce glorioso. A estupidez se impõe porque é a expressão da maioria que está aí para aplaudi-la. E não duvide, a estupidez, se ainda não chegou, está preparada para assumir o poder em todas as instâncias. Argh!

No cercadinho com o inimigo

Vivemos o tempo dos homens ocos, como lá atrás decretou T.S. Eliot. Também o aguçamento das mentiras, na visão de Marcel Proust ao ler as falsas notícias de vitórias francesas na Primeira Guerra Mundial. Em fuga das armadilhas fáceis das generalizações, Thomas Mann discordava de quem colocava o nazismo em igual patamar do comunismo.

— O nazismo é apenas o niilismo diabólico — teria declarado em 1949, alertando ainda que não era comunista.

Os três escritores passaram por guerras — Proust apenas pela Primeira Guerra (morreu em 1922). Já morando em Londres, Eliot, que era americano, permaneceu como professor e, em seu posto bancário, sem muitos percalços ao longo dos dois conflitos mundiais, somente decepcionado com a maldade humana. Basta ler “A terra desolada” e escutar seu mergulho no desencanto.

Mann, dos três, foi quem mais sentiu na pele os dramas de seu tempo. Para quem hoje joga a toalha diante da bozofrenia e da Covid-19, os desterros do escritor alemão, cuja mãe, Júlia, era brasileira, deveriam servir de paralelo.

Com uma homossexualidade sublimada, para desalento de seu filho Klaus, Thomas Mann, Nobel de Literatura em 1929, sentiu o cheiro do demônio já em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder. Casado com uma judia, tratou de se mudar para a Suíça. Com o avanço das tropas nazistas na Europa, partiu para os Estados Unidos, onde se tornou um dos intelectuais públicos mais ativos e heroicos na luta contra Hitler.

Após a guerra, Mann, lenda viva da melhor intelectualidade, passou a ser perseguido pelo macarthismo — foi visto como comunista por ser um militante da paz. Ele, um rematado humanista, capaz de raciocinar em desafio aos dogmas políticos, resolveu deixar aquela loucura anticomunista e voltou a morar na Suíça, pouco depois do suicídio de seu filho Klaus Mann, também escritor e homossexual assumido. Se recusaria a permanecer muitos dias na Alemanha, por vergonha e inconformidade com o apoio de seus compatriotas ao nazismo.


Um livro como “The magician: a novel”, do escritor irlandês Colm Tóibín, espécie de biografia romanceada da vida de Mann, ao enveredar por seu diário e cartas pessoais, escande outro de seus dramas — a homossexualidade sublimada (definição de seu filho Klaus).

Era um tempo em que a orientação sexual fora do papai e mamãe dava cadeia. Proust morria de medo de como interpretariam o herói ambíguo de “Em busca do tempo perdido”. A França dele parecia ser mais tolerante que a Inglaterra, onde Oscar Wilde foi condenado por sodomia. Depois de cumprir sua pena, foi em Paris que Wilde passou seus últimos anos.

(Apenas em meados de 1960 a homossexualidade deixou de ser crime na Inglaterra dos Beatles e David Bowie.)

Perseguido pelo nazismo e pelo macarthismo, mas sem disposição de enfrentar mais essa pelota, intolerável mesmo para muitos de seus amigos, o alemão Thomas Mann fez da literatura o bunker confessional de sua sexualidade. “Morte em Veneza” explode o desejo entre um jovem efebo (baseado num personagem real) e um famoso e premiado escritor mais velho (alter ego de Mann). Visconti, ao filmar a obra em 1971, carregou mais na tensão sexual entre os dois amantes — vale dizer, ainda um escândalo naquela época.

A desinformação das redes sociais, reprodução preguiçosa do que foram os programas das rádios AM na década de 1980, sob a voz dos idiotas, teima em tirar de perspectiva e nivelar as atrocidades. Nazismo e comunismo não se assemelham em suas desumanidades. Lula não é comunista (ele é sindicalista), Putin (ao menos até agora) não é Hitler, e Bozo nem sequer chega a ser um Plínio Salgado, já que o integralista não era barrigudo e dominava a sintaxe.

Os tempos da alta conectividade sugerem que a comunicação se tornou apenas mais fácil, porém superficial e ainda mais manipulável. A era dos extremos enfrentada por Thomas Mann e T.S. Eliot recebeu em troca obras como “A montanha mágica” e “A terra desolada” ou “Guernica”, de Pablo Picasso, que também enfrentou duas guerras mundiais.

No Ano III de Bozo, até o momento, só se anotam a bunda de Anitta e o barulho pelo cancelamento de “Com açúcar, com afeto”. Pois é.

Estamos todos vivendo agora no mundo de Vladimir Putin

Jornalistas que escreveram sobre assuntos internacionais nas décadas de 1920 e 1930 se referiram à era como “pós-guerra”. Eles viram os eventos através do prisma da Grande Guerra que havia devastado a Europa apenas alguns anos antes. Os historiadores que escrevem hoje referem-se a esses mesmos anos como o período “entre guerras”, pela simples razão de que analisam o que aconteceu durante esses anos como parte da preparação para a ainda mais destrutiva Segunda Guerra Mundial. Se ao menos os jornalistas que escrevem na Europa dos anos 1930 tivessem a clareza da retrospectiva.

Todos nós devemos ter essa clareza hoje. A agressão militar da Rússia na Ucrânia é um daqueles momentos que nos impele a reinterpretar nossa própria época: o que chamamos de paz de 30 anos que se seguiu à Guerra Fria (com tendência a esquecer, consciente ou inconscientemente, as guerras na ex-Iugoslávia) agora terminou. Os historiadores do futuro vão olhar para essas últimas décadas, em geral, como olham para o período entre guerras, como uma oportunidade desperdiçada.

Quanto mais cedo todos admitirmos isso, melhor poderemos nos preparar para o que vem a seguir. Infelizmente, uma espécie de negacionismo egoísta permeia as capitais ocidentais e nos impede de ver o óbvio. Apelos apaixonados para defender a ordem europeia pós-Guerra Fria não têm sentido porque esta era acabou.

Após a ocupação da Crimeia pela Rússia em 2014, Angela Merkel, então chanceler da Alemanha, conversou com o presidente Vladimir Putin da Rússia e relatou ao presidente Barack Obama que, em sua opinião, Putin havia perdido o contato com a realidade. Ele estava, disse ela, vivendo em “outro mundo”. Hoje, todos nós estamos vivendo nele. Neste mundo, para citar Tucídides, “os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem”.

Como chegamos aqui? Primeiro, devemos entender que esta não é a guerra da Rússia. É do Sr. Putin. Ele vem de uma geração particular de oficiais de segurança russos que nunca conseguiram se reconciliar com a derrota de Moscou na Guerra Fria. Diante de seus olhos, a União Soviética desapareceu do mapa sem perdas militares ou invasão estrangeira. Para eles, o atual ataque à Ucrânia é um ponto de inflexão lógico e necessário. A tabela imperial pode mais uma vez ser redefinida. Essas pessoas não estão interessadas em escrever o futuro, elas querem reescrever o passado.

Emad Hajjaj (Jordânia)

Enquanto observava mísseis russos atacando Kiev em um clima de indignação impotente, de repente percebi que muitos russos devem ter se sentido da mesma forma quando a OTAN estava bombardeando Belgrado há duas décadas. A invasão de Putin pode ser mais uma questão de vingança do que de grande estratégia.

Há uma distinção entre revisionismo e revanchismo. Os revisionistas desejam construir uma ordem internacional ao seu gosto. Os revanchistas são movidos pela ideia de retorno. Eles não sonham em mudar o mundo, mas em trocar de lugar com os vencedores da última guerra.

Se Putin está tendo sucesso hoje, o Ocidente só pode culpar a si mesmo. Enquanto a opinião pública ocidental se hipnotizava com a ideia de que a Rússia está em declínio acentuado – “um posto de gasolina com armas nucleares”, alguns gostavam de chamá-lo – o presidente russo começou a realizar sua estratégia. Durante anos, Putin vem consolidando sua esfera de influência sobre a antiga União Soviética, começando com sua guerra contra a Geórgia em 2008 e através da anexação da Crimeia em 2014. Mais recentemente, ele reforçou seu controle sobre a Bielorrússia e a Ásia Central. Agora ele deu o próximo passo dramático.

O presidente Biden disse na quinta-feira que, em resposta à invasão da Ucrânia, pretende fazer de Putin “um pária no cenário internacional”. Essa seria uma punição adequada para essa violação do direito internacional, mas as coisas podem não funcionar dessa maneira. Existe um perigo real de que, em vez disso, seja o Ocidente que se encontre mais isolado.

Nos últimos dois meses, a aliança Moscou-Pequim passou de hipótese para realidade, graças ao objetivo comum de desafiar o domínio americano. Embora as elites chinesas não estejam muito empolgadas com a invasão imprudente da Ucrânia pela Rússia (os chineses valorizam seu compromisso com a não violação da soberania do Estado), não há dúvida de que permanecerão do lado de Moscou. Veja como Pequim se recusou a descrever oficialmente a guerra de Putin como uma invasão. O presidente Xi Jinping pode ser o maior beneficiário da crise atual: os Estados Unidos não apenas parecem fracos, mas também agora se encontram atolados na Europa e incapazes de se concentrar na Ásia.

Muitos países veem o conflito entre a Rússia e o Ocidente como um conflito entre velhos imperialistas que dificilmente os afeta. De mais imediata preocupação é a forma como as sanções impostas pelo Ocidente irão aumentar os preços da energia e dos alimentos. O Ocidente só pode conquistar os céticos de seus esforços para combater Putin se conseguir mostrar aos que estão fora da Europa que o que está em jogo em Kiev não é o destino de um regime pró-Ocidente, mas a soberania de um recém-nascido pós-guerra. estado imperial. Alguns já entendem essa ideia: o embaixador do Quênia nas Nações Unidas captou o que está acontecendo na Ucrânia quando disse: “A situação ecoa nossa história. O Quênia e quase todos os países africanos nasceram com o fim do império.”

O que significa o fim da paz para a Europa? As consequências serão terríveis. A guerra na Ucrânia tem o potencial assustador de aquecer conflitos congelados na periferia do continente, inclusive em outras partes do espaço pós-soviético e nos Balcãs Ocidentais. Os líderes da Republika Srpska podem interpretar a vitória de Putin na Ucrânia como um sinal para desmantelar a Bósnia. Líderes amigos da Rússia dentro da União Européia também se sentirão encorajados pela vitória de Putin. A invasão da Ucrânia uniu a Europa, mas também prejudicará sua autoconfiança.

Mas, mais fundamentalmente, os eventos da semana passada exigirão um repensar radical do projeto europeu. Nos últimos 30 anos, os europeus se convenceram de que a força militar não valia o custo, e que a preeminência militar americana era suficiente para dissuadir outros países de prosseguir a guerra. Os gastos com defesa caíram. O que importava, entoava a sabedoria recebida, era o poder econômico e o poder brando.

Agora sabemos que as sanções não podem parar os tanques. A acalentada convicção da Europa de que a interdependência econômica é a melhor garantia para a paz revelou-se errada. Os europeus cometeram um erro ao universalizar sua experiência pós-Segunda Guerra Mundial para países como a Rússia. O capitalismo não é suficiente para temperar o autoritarismo. O comércio com ditadores não torna seu país mais seguro e manter o dinheiro de líderes corruptos em seus bancos não os civiliza; isso corrompe você. E a adoção dos hidrocarbonetos russos pela Europa só tornou o continente mais inseguro e vulnerável.

O efeito mais desestabilizador da invasão da Rússia pode ser que muitos ao redor do mundo comecem a concordar com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. No Fórum de Segurança de Munique neste mês, ele afirmou que Kiev cometeu um erro ao abandonar as armas nucleares que herdou da União Soviética. A relutância dos Estados Unidos em defender um país amigo como a Ucrânia pode fazer pelo menos alguns aliados americanos acreditarem que as armas nucleares são a única maneira de garantir sua soberania. Não é difícil imaginar que os vizinhos da China também pensem assim. O fato de que a maioria dos sul-coreanos agora é a favor de seu país obter armas nucleares sugere que os movimentos de Putin na Ucrânia colocam em risco o regime mundial de não proliferação nuclear.

Em 1993, o grande poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger previu que a Guerra Fria seria seguida por uma era de caos, violência e conflito. Refletindo sobre o que observou na Iugoslávia e os distúrbios urbanos nos Estados Unidos, ele viu um mundo definido por uma “incapacidade de distinguir entre destruição e autodestruição”. Neste mundo, “não há mais necessidade de legitimar suas ações. A violência se libertou da ideologia”.

O Sr. Enzensberger estava certo.
Ivan Krastev, presidente do Centro de Estratégias Liberais e membro permanente do Instituto de Ciências Humanas de Viena

O veneno do nacionalismo

Existem minorias russas, mais ou menos importantes, e mais ou menos ostracizadas, em todos os países que resultaram da implosão da União Soviética.

Em 2011, visitei Talín, a capital da Estônia, para apresentar a tradução de um dos meus romances. Na época, cerca de um terço da população era de origem russa. Muitos dos russos estonianos, porém, não possuíam cidadania nenhuma — e nenhum direito.

Os estonianos étnicos acusavam os compatriotas russos, que viviam em condições terríveis, de recusarem uma integração efetiva: “Quer um exemplo? Eles se negam a aprender a nossa língua”. Como rapidamente percebi, aquele era um tema incômodo para todos.

Na Letônia, onde os russos chegaram a constituir quase 40% da população, o conflito entre as duas comunidades é ainda mais aceso. 

Consigo compreender o melancólico sentimento de orfandade dos descendentes dos russos nas antigas repúblicas soviéticas. Na mãe-pátria, uma boa parte dos cidadãos também tem dificuldade em aceitar o colapso da URSS. Os russos podem não ter boas recordações do comunismo, mas sofrem com saudades do império, e do tempo em que eram vistos como uma superpotência, lado a lado com os Estados Unidos.


Ironicamente, como ficou claro enquanto tudo ruía, a URSS era um gigante com pés de barro. O equívoco do seu poder foi sendo alimentado pelos próprios americanos, aos quais convinha a imagem de uma União Soviética forte e perigosa, como forma de justificar o crescimento do arsenal nuclear, e o “combate pela civilização ocidental”. Se não tens um inimigo poderoso, inventa-o. Afinal, a grandeza de um país se mede pela dimensão dos seus inimigos.

Tendo tudo isto em conta, o ataque em curso contra a Ucrânia não parece tão surpreendente. Vladimir Putin nunca hesitou em usar o nacionalismo e a nostalgia imperial (um subproduto do primeiro) para reforçar o seu poder. Talvez acredite na legitimidade russa em proteger os órfãos do império. É até possível que acredite no disparate que disse, na quinta-feira, para justificar a invasão: que a Ucrânia é terra ancestral russa. Acredite ou não, muitos dos seus compatriotas acreditam. Milhões de russos, inclusive alguns que sempre o criticaram, irão agora unir-se à sua volta.

O nacionalismo é uma doença infantil da Humanidade — talvez a mais perversa. Em pleno século XXI, depois de termos criado condições extraordinárias para a partilha de conhecimentos e de manifestações culturais, já não deveria haver espaço para pensamentos nacionalistas e outros atavismos ideológicos.

Vladimir Putin, na Rússia, ou Jair Bolsonaro, no Brasil, são excreções de um passado que nos envergonha a todos. Não pertencem a este tempo. A questão é: como fazê-los regressar ao passado a que pertencem?

Pensamento do Dia

 


Meia volta, volver!Brasil é neutro na guerra da Ucrânia, diz Bolsonaro

À caça de votos para se reeleger, Bolsonaro visitou Putin em Moscou e se disse solidário à Rússia para agradar o pessoal do agronegócio que importa fertilizantes de lá. De resto, Bolsonaro admira Putin como governante mão de ferro. E precisava mostrar que não está tão isolado assim como dizem seus adversários.


Se negócios são negócios, ele deveria vestir a camisa da China, nosso maior parceiro comercial no mundo. Acontece que a China se diz comunista, e a Rússia não é. Sem Donald Trump, Bolsonaro perdeu em quem se espelhar. Putin é o governante autoritário que Bolsonaro sonhou ser um dia, e ainda sonha.

Pressionado pelos Estados Unidos e países da Europa, Bolsonaro cedeu a autorizou Ronaldo Costa Filho, embaixador do Brasil junto à ONU, a condenar a invasão russa à Ucrânia. Então, o embaixador disse na última sexta-feira:

“As preocupações de segurança manifestadas pela Rússia nos últimos anos, particularmente em relação ao equilíbrio estratégico na Europa, não dão à Rússia o direito de ameaçar a integridade territorial e a soberania de outro Estado”.


Nem bem haviam se passado 48 horas, depois de mais um dia de sol na praia do Guarujá, Bolsonaro voltou a alinhar-se a Putin. Criticou quem chama a guerra na Ucrânia de massacre. E defendeu o direito de Putin de ocupar regiões separatistas da Ucrânia:

“Eu entendo que não há interesse por parte do líder russo de praticar um massacre. Ele está se empenhando em duas regiões do Sul da Ucrânia que, em referendo, mais de 90% da população quis se tornar independente”.

“Nós queremos a paz, [somos] pela neutralidade. Não quero trazer sofrimento para nossa Nação. Uma decisão minha pode trazer sérios prejuízos a agricultura do Brasil. Como já disse, a cada cinco pessoas no mundo, uma é alimentada pelo Brasil”.

À falta de notícias positivas para Putin, a imprensa russa deu farta publicidade às declarações de Bolsonaro, que, não satisfeito com o que dissera, debochou do presidente da Ucrânia:

“O comediante que foi eleito presidente da Ucrânia, o povo confiou em um comediante para traçar o destino da nação. Eu vou esperar o relatório da ONU para emitir a minha opinião”

Bolsonaro, boca de aluguel de Putin e do agronegócio, arrisca-se a virar um pária, se já não é.

Se Putin vencer, será o retorno à barbárie

Vladimir Putin precisa vencer rápido a sua guerra de ofensiva contra a Ucrânia. Não porque tenha uma consciência ou escrúpulos. A questão é, antes, que caixões de jovens russos mortos na luta contra o povo-irmão ortodoxo suscitam dúvidas quanto à propaganda estatal de que esta seria uma guerra defensiva.

Em breve chega no Leste Europeu a época de jejum pré-pascoal, que o ex-homem da KGB, o serviço secreto da União Soviética, aproveitará para se apresentar como cristão devoto, de vela na mão. Só que isso não combina com as imagens de mulheres, crianças e homens que, por estes dias, morrem nos ataques do exército da Rússia.

Mas essa guerra não vai passar tão rápido. Mesmo que tenham que lutar com coquetéis molotov e com as mãos nuas, os ucranianos não vão desistir! O povo russo provou grande capacidade de sofrer durante a era soviética, e coragem na Segunda Guerra Mundial, mas os ucranianos não ficam nada atrás. Além disso, têm a primazia moral: estão defendendo seu país, suas famílias, sua vida. Os soldados russos, em contrapartida, chegam como agressores, ocupadores, fratricidas. 
Paz e liberdade não são grátis


Para o tão reticente Ocidente, a questão é a seguinte: até agora, não havia hostilidade em relação à Rùssia. Pelo contrário: fazíamos negócios, cooperávamos na política, cultura e ciência. Milhões de russos vinham como turistas à Espanha, Turquia ou Grécia, lá onde também os europeus ocidentais passam suas férias. Justamente por isso, quase ninguém no Ocidente conseguia imaginar que Putin cometeria esse crime, e que os russos seguiriam essa loucura.

Sim, o presidente da Rússia tem razão: os europeus estão mal equipados, têm tomado a sua vida na prosperidade como um fato inquestionável. Mas isso está mudando, agora mesmo. Pois todo europeu que ame a liberdade e a paz percebe essa ofensiva contra os ucranianos como um ataque contra si mesmo. Todo mundo está vendo que Putin mente quando abre a boca, que não se atém a nenhum pacto nem regra internacional.

De repente, muitos na Alemanha compreendem, com nitidez maior do que lhes conviria, que só os Estados Unidos garantem a sua segurança – e estão gratos por isso. Mas é justo exigir de uma mãe do Mississipi que seus filhos se engajem pela segurança da Europa, quando outra mãe em Berlim não está disposta a isso? A Alemanha precisa acordar e compreender: a paz, a liberdade e a nossa democracia não são de graça.

A disposição de tornar as Forças Armadas alemãs novamente aptas à mobilização e a fortalecer a Otan cresce com cada foto de mulheres e crianças em prantos nos metrôs de Kiev, onde vão buscar proteção das bombas russas. Os europeus de dispõem a fazer sacrifícios em nome de seus valores. E vão fazer frente à declaração de guerra da Rússia contra a ordem pacítica da Europa.
Putin mente, China observa

As perspectivas que o mundo civilizado tem de ganhar essa luta, são boas. Putin pode bem tentar convencer seus compatriotas e o mundo de que a Rússia é forte, mas também isso é uma mentira. A moral dos russos é forte quando eles sabem que estão do lado do bem. Apesar da imprensa manipulada pelo Estado, vão cada vez mais perceber que sua guerra contra o povo-irmão ucraniano é um crime.

Além disso, a Rússia está economicamente fraca, pois Putin é incapaz de modernizar seu país. A atual classe política é ainda mais corrupta do que nos tempos do líder do Soviete Supremo Leonid Brejnev. E o presente chefe do Kremlin só suporta a seu redor servidores submissos, que ainda por cima humilha diante das câmeras.

Sanções econômicas e gastos de defesa significativamente mais altos não bastarão para vencer a confrontação com o ditador. A elite criminosa da Rússia tem que ser isolada; as relações diplomáticas, reduzidas ao mínimo.

Acima de tudo, entretanto, o Ocidente não deve fechar suas portas aos jovens russos. A economia alemã e americana procura desesperadamente centenas de milhares de profissionais. Quem queira emigra da Rússia, a fim de levar uma vida normal em ambiente seguro, deve ser bem-vindo.

Pois uma coisa é certa: a guerra da Rússia contra a Ucrânia vai custar muito dinheiro. Putin só conseguirá manter seu domínio se transformar seu país num grande presídio – como a China.

O que, aliás, é mais um motivo por que a civilização amante da liberdade deve vencer esse conflito: Pequim está acompanhando minuciosamente o que ocorre na Ucrânia. Caso Putin tenha sucesso, a China atacará Taiwan e, em algum momento, também outras nações.

Aí, só o que vai valer por todo o mundo é a lei do mais forte. A humanidade se precipitaria de volta na barbárie. Mas a coisa não precisa ir tão longe se, a partir de já, estivermos dispostos a também fazermos sacrifícios em nome da nossa liberdade.

Miodrag Soric

Roleta-russa e facciosismos

“Aqueles que se sentiram os vencedores após o fim da Guerra Fria e pensaram que escalaram o Monte Olimpo, logo descobriram que o chão estava caindo… desta vez era a vez deles, e ninguém podia parar o momento.” A frase é de Putin, proferida em outubro passado, durante a Conferência de Valdai, que tinha como tema a “Agitação Global no Século 21”. Agitador destemido, o Presidente russo não desiludiu. No seu discurso sobre o novo equilíbrio para o sistema mundial foi muito claro sobre o que vê como o fim do domínio do Ocidente nos assuntos internacionais, anunciando que se guiará por um “saudável conservadorismo”.

Foi imbuído deste “conservadorismo” que esta semana Putin proferiu o seu mais imperialista, colonialista e radical discurso de que há memória, encenado para consumo tanto externo como interno, ao anunciar o reconhecimento da independência das repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, e dizer que a Ucrânia é uma “colónia de fantoches”, mas que foi inteiramente criada pela Rússia comunista de Lenin. Quase que se ouvia soar em fundo o God Save the Tsar!, o hino nacional do império russo. “Querem descomunização? Está bem. Estamos prontos para vos mostrar o que significa a verdadeira descomunização”, atirou em tom ameaçador.


Há muito que está claro que Putin não acredita na ordem mundial pós-Guerra Fria assente em pactos de não agressão e em princípios democráticos. Sobre a Ucrânia, aliás, Putin já tinha escrito um ensaio em julho em que falava da “união histórica” entre os dois países e deixava claro que via os ucranianos e os russos como “um povo – um único povo”, ligado por uma “unidade espiritual” que determina que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”.

Desde pelo menos 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia e se procurou estabelecer nos Acordos de Minsk uma solução para o conflito na região do Donbass, que esta nova desordem mundial era evidente para quem a quisesse ver. Com a demissão de Barack Obama e de David Cameron do tema, é claro hoje que o “formato da Normandia” estabelecido foi um rotundo falhanço de François Hollande e de Angela Merkel, mais interessados em não hostilizar nem fechar a torneira do gás do que em travar as ambições russas. Putin ficou à solta para continuar em busca do império perdido, aliando-se à China na construção do bloco económico oriental contra o bloco ocidental da Europa e dos EUA.

Com uma situação interna pouco entusiasmante, o mundo a sair de uma pandemia e novos líderes mundiais que considera fracos – Scholz na chancelaria alemã, Biden na Casa Branca e o ex-humorista Zelenski como Presidente da Ucrânia –, Putin sentiu que este era o tempo certo para atacar. Não há inocentes nesta matéria (e os EUA e a NATO claramente não são), mas, não tenhamos dúvidas, é de um ataque que se trata, que tem como pano de fundo a maior deslocação militar desde a Guerra Fria.

Com que objetivo final, não sabemos. Ficar-se-á Putin apenas pelos territórios dominados separatistas ou inclui toda a região de Donbass? Avança por outros estados da Ucrânia? Tudo em Putin é imprevisível e potencialmente irremediável, o seu jogo é a roleta-russa. Será preciso nervos de aço para acompanhar o desenrolar da situação que pode ficar-se “apenas” por sanções internacionais, descambar num conflito armado sério na Europa ou escalar para uma guerra mundial. Isto envolvendo um país carregado de arsenal nuclear – que fez questão de exibir nos últimos dias.

Com este pano de fundo, é sintomática mas não surpreendente a posição do PCP. Os comunistas portugueses, que claramente ainda não perceberam que a Rússia de comunista já não tem nada e se transformou num regime autocrata com laivos de fascismo, vieram exigir “o fim da escalada de confrontação promovida pelos EUA e a Nato contra a Rússia”, “uma estratégia agressiva de imperialismo concretizada após o golpe de Estado de 2014 que foi promovido pelos EUA, a NATO e a UE”. Justifica-se, portanto, para o PCP o imperialismo do bem (o russo) contra o imperialismo dos maus (os americanos e seus aliados)…

É muito curioso perceber como os extremos se tocam quando o tema é um herdeiro da derrocada da URSS que se transformou em autocrata nacionalista e conservador. A par dos comunistas e até bloquistas lusos, também a extrema-direita de Le Pen, Éric Zemmour ou Bolsonaro (o Chega não foi ainda tão longe como os “amigos”) relativiza e enquadra Putin. Há coisas que dificilmente mudam, e a tendência para o facciosismo é infelizmente uma delas.

O silêncio da passividade

Primeiro eles vieram atrás dos comunistas, E eu não protestei, porque não era comunista;


Depois, eles vieram pelos socialistas, e eu não disse nada, porque não era socialista;

Mais tarde, eles vieram atrás dos líderes sindicais, E eu calei, porque não era líder sindical;

Então foi a vez dos judeus, E eu permaneci em silêncio porque não era judeu;

Finalmente, vieram me buscar, E já não havia ninguém para protestar.
Martin Niemöller

The end?

É isso mesmo? O fim do mundo? Bem na minha vez? Cinquenta mil anos para eu surgir como ser humano e fui cair justo na geração do Trump, do Putin, do Jair e da dancinha de TikTok? Sacanagem.

Eu não me importaria de ser caçador-coletor no século 170 a.C. Flanar peladão com meu bando, tomando banho de rio, chupando uns cajus, mascando uns Psilocybe cubensis. Ah, mas e o ar-condicionado? A penicilina? O Nike Air? Grandes coisas.

Sabia que a tribo de caçadores-coletores mais ferrada de que se tem notícia trabalhava, para garantir suas necessidades básicas, menos do que oito horas por dia? Viviam lá no deserto da Austrália, numa pindaíba desgraçada, mas não há nos anais da antropologia um único registro de burnout.

Eu nasci em 77. Tá, era ditadura, havia guerra fria, quente e as tragédias de sempre, mas tinha também uns Bobs Marleys e uns Johns Lennons por aí, prospectando possibilidades mais auspiciosas. Evito ser pessimista, mas não me parece que nada de bom virá da imersão intensiva de todos os habitantes do planeta em vídeos do Instagram em que balas Mentos fazem garrafas pet jorrarem Coca-Cola. Imagino os ETs do futuro: “Eles destruíram a atmosfera, as florestas e os mares para produzir energia para trabalhar de graça para o celular?!”. É.

O Bob Marley veio pro Brasil em 1980. Olha isso: teve um dia, em 1980, em que o Bob Marley jogou bola com o Chico Buarque, o Toquinho e outros chegados. Ou seja, teve uma semana, em 1980, em que a conversa nas esquinas foi essa –ainda havia conversas e esquinas, em 1980. Ontem, num grupo de WhatsApp, o debate era sobre as consequências de uma rachadura no casulo de concreto de Tchernóbil. Ó que delícia.


Não quero ser saudosista, mas diante do fim dos tempos vamos focar onde? Os quatro cavaleiros do apocalipse vieram mesmo, juntos e misturados: pandemia, aquecimento global, fome e essa brisinha amena de uma possível Terceira Guerra Mundial. Nunca tinha visto o presidente de um país ameaçar o mundo, ao vivo, com ogivas nucleares. Confesso que foi um tiquinho assustador. Hoje, meu filho de sete anos veio me contar que viu um míssil no céu. Gastei um bocado de saliva diante de um mapa-múndi para convencê-lo de que a guerra é bem longe da gente. (Evitei revelar que a gente faz coisas piores.)

Comparando o Jornal Nacional com o Apocalipse de São João, você pensa: rapaz! Não é que Deus acertou tudinho? Ainda não surgiram os gafanhotos do tamanho de “cavalos aparelhados”, com “rostos de homem”, “cabelos de mulheres” e “dentes como de leões”. Pelo andar da carruagem, contudo, não duvido que já tenha gafanhotão sinistro fazendo escova e luzes em algum hangar cósmico por aí.

Talvez seja Poliana da minha parte, mas cês não acham que teve alguns momentos nos últimos três ou quatro séculos em que a humanidade parecia ter alguma chance? Sei lá, esse lance de substituir o despotismo pela democracia, por exemplo, soava promissor. Agora, se eu entendi bem, o contrato social saiu de moda. Lei –não alguma lei específica, mas a ideia de haver lei– é uma “opinião” que não anda muito em alta. O velho e bom “se organizar direitinho, todo mundo transa”, que vinha sendo elaborado desde Hobbes, Locke e Rousseau, foi trocado pelo “não te estupro porque você não merece”. Aos olhos do Putin, a Ucrânia merece.

Basta de depressão ou nostalgia. Vou fechar essa crônica de forma equilibrada, com uma notícia boa e uma ruim. A ruim primeiro, para terminar por cima: o mundo tá acabando. Agora a boa: é que o mundo tá acabando, também.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Como suportar o “não sei” sobre a Ucrânia

Tenho um preconceito sobre os russos, claro, infundado. Acho que são pessoas muito inteligentes. O tipo de pessoa que sabe tudo, que escreve livros muito longos, sólidos como tijolos, pessoas que podem ordenar a realidade em categorias e tocar violino ao mesmo tempo. Acho que todos os russos tocam algum instrumento musical, outro preconceito, sabe. Talvez seja por isso que, quando conheci Sergei há algumas semanas, ele parecia tão inteligente. Fiz meu primeiro amigo russo em um parque em Madri. Conhecemos-nos vendo nossas filhas brincarem, que são super amigas. E me pareceu o mais lógico que, uma vez ativado seu talento natural, ele soubesse o que ia acontecer com a guerra na Ucrânia.

Meu novo amigo decidiu deixar a Rússia porque queria experimentar outros modos de vida, outras culturas. Ele não fugiu de nada; simplesmente foi embora. Decidiu quando terminou o curso de medicina (em russo, é claro) e lhe ocorreu que seria bom fazer o MIR — um exame impossível em seu próprio idioma — em um idioma que ele nunca tinha ouvido. Assim, dedicou um ano a estudar espanhol e outro a preparar-se para um exame sufocante para todos os que se atrevem a enfrentá-lo. Hoje é neurocirurgião num hospital público de Madrid, graças ao fato de ter obtido uma das melhores notas dessa promoção. Meu preconceito cresceu como uma vela desfraldada em alto mar, enquanto Sergei humildemente me contava sua história em espanhol com pouco sotaque. Evidentemente, na segunda tarde em que nos encontramos no parque, não pude deixar de perguntar o que já era – algumas semanas atrás – a pergunta do ano. O que acontecerá com a guerra na Ucrânia?

O amigo russo me olhou surpreso. “Nada vai acontecer”, ele me informou. “O que acontece é que a mídia europeia está obcecada com a Rússia, mas não faz sentido. Meus pais e minha família estão tranquilos, nada disso aparece nas notícias de lá. Meus amigos da Ucrânia também não estão preocupados. A Rússia não quer ser uma superpotência, é tudo como um filme, mas esses tempos acabaram. Você não acha?”. Então eu fiquei com muito medo, que é o que acontece quando os preconceitos caem. A primeira reação nunca é de alívio, mas de medo. Se uma pessoa tão inteligente e racional como meu novo amigo Sergei não tinha ideia, não apenas do que iria acontecer, mas do que já estava acontecendo, poderíamos estar vivendo no pior cenário possível.

Então falei com Sergei de Berna Gonzalez Harbour, o jornalista que anunciou neste jornal em 20 de janeiro que já estávamos (quase) em guerra. Também de uma das capas do mesmo mês da revista The Economist, que consistia em uma ilustração de Putin sentado em um grande trono com um Kalashnikov nos joelhos. “O senhor Putin vai vê-lo agora” era o título da ameaça anunciada. O fundo da capa era rosa como chiclete e a guerra parecia então uma questão quase pop.

Sergei não vacilou. “O tempo dirá”, foi sua frase. Então pensei em uma velha piada para me consolar ou talvez trocar um preconceito por outro. A piada, que não contei a Sergei, é assim. “Três homens em uma cela da KGB se perguntam: ‘E você, por que está aqui? Por criticar Klaus Amseck; o outro: por elogiar Amseck, e o terceiro: eu sou Klaus Amseck”. Apenas 15 dias após nossa conversa sem graça, o pior aconteceu. Porque não apenas uma guerra estourou, mas a pior guerra possível, uma em que todos os analistas se sentem como Klaus Amseck. As palavras “escalada”, “castigo”, “nuclear”, “colapso”, “firmeza”, “morto”, “mísseis” são mastigadas em editoriais ao redor do mundo. E a inteligência, a razão e até a história são impotentes para construir qualquer cenário previsível, tão insuficiente e inútil quanto a poderosa inteligência de Sergei ao pensar no futuro de seu próprio país.

A guerra e a inteligência têm apenas um relacionamento superficial e egoísta. Acho que Albert Camus estava certo em A Peste. Outra vez. “Quando uma guerra estoura, as pessoas dizem: ‘Isso não pode durar, isso é muito estúpido.’ E certamente uma guerra é muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez sempre insiste”, escreveu Camus. Mais uma vez este título sobre a mesa, mais uma vez a realidade tornou-se opaca, negra e indecifrável. Novamente o terror da incerteza. Mais uma vez, aceite que ninguém pode saber o que vai acontecer. Mais uma vez carregamos o “não sei” costurado em nossa identidade e em nosso mundo. De novo esse medo e esse horror. Não só compaixão e empatia com aqueles que estão morrendo, com aqueles que se refugiam no terror nos túneis do metrô de Kiev, mas também (ainda acima de tudo) o medo de não saber o que vai acontecer, desarmado diante da arbitrariedade.

É por isso que o ataque de Putin supera o que está acontecendo na Ucrânia e semeia a guerra em todo o mundo. Porque seu ataque quebra a previsibilidade que pensávamos ter estabelecido e dinamita nosso sistema de afabilidade global com a mais pesada artilharia simbólica: o senso de realidade ou tem loucura ou não é senso de realidade. Putin conseguiu fazer a Europa dizer em voz alta “não sei”, para que essas três palavras possam ser ouvidas como um eco no discurso de Biden. Não queremos apenas chorar. Também, e acima de tudo, queremos compreender. O que vai acontecer agora? – perguntamos a jornalistas, políticos, amigos, analistas. E todos nós temos que aturar a resposta: “Eu não sei”.

Não sabemos. E nossa perplexidade é uma arma para Putin. Ele joga com o maior preconceito do Ocidente, falso como qualquer outro: acreditar que a vida é previsível e que podemos projetar o futuro. Só podemos suportar nosso “não sei” e nos render de uma vez por todas à evidência de que a linguagem e a ação humana têm zonas opacas.

Estou em Madrid, segura. Aconchego com minhas filhas à noite e tudo parece seguro neste canto da Europa. Então, um diz: “Você lembra quando em 2019 eles disseram que o morcego da covid nunca chegaria à Espanha?”
Nuria Labari

Guerra tem dono

A História é como uma faca: você pode usá-la para cortar pão, mas também para matar. O falecido Fritz Stern, eminente estudioso da História da Alemanha, dizia o mesmo de analogias históricas — elas tanto podem jogar luz e clareza sobre um tema como gerar contendas envenenadas de insensatez. No caso da invasão da Ucrânia por uma Rússia imperiosa presidida pelo czar moderno Vladimir Putin, tem as duas coisas. Com mandato eleitoral para ficar no poder até 2036, quando fará 84 anos, Putin decidiu recuperar pelo menos algumas zonas de influência perdidas com a implosão da União Soviética. Ou, pelo menos, tentar inverter os últimos 30 anos de arrogância militar por parte dos Estados Unidos e dos países europeus reunidos na Otan.

Para tanto, recorreu a uma “guerra de escolha”, e não “de necessidade”, repetindo terminologia usada por Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations de Nova York. Ao contrário das “guerras de escolha”, que em geral terminam mal para quem as lança, Haass designa como “guerra de necessidade” o recurso à força para a proteção da sobrevivência ou dos interesses vitais de um país. Cita como exemplo a entrada dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Decididamente, não é o caso da Rússia de 2022. O rolo compressor com que Putin atropelou a soberania territorial do país vizinho deixou não só 45 milhões de ucranianos sem chão — seja em fuga, seja de coquetel molotov em mãos —, como estonteou o planeta.


Os desdobramentos do ataque inicial têm mudado de gravidade a cada par de horas, arrastado para o conflito novos protagonismos e produzido riscos ainda desconhecidos. Portanto qualquer previsão seria temerária por ora. O que não muda são os horrores da guerra. “Eu não sei com que tipo de armamento a Terceira Guerra Mundial será travada”, escreveu Albert Einstein em 1949, “mas a Quarta será combatida com paus e pedras”. O cientista tinha visto a humanidade se aniquilar entre 1940 e 1945 e fazer uso decisivo das pesquisas sobre bombas atômicas que ajudou a formular.

Nesta semana, quando Putin disse que quem interferisse na invasão da Ucrânia sofreria “consequências nunca antes experimentadas na História”, foi fácil entender a referência a seu arsenal de 6 mil ogivas nucleares apontadas para o Ocidente. Ato deliberado. Das duas uma: ou o homem forte do Kremlin pensa realmente no impensável, ou fez uso apenas retórico do horror possível para se impor ao mundo.

No fundo, em graus variados, todas as potências nucleares pensam no armagedom que têm em mãos. Vale transcrever aqui um diálogo de 1972, bastante concreto, entre Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, e seu secretário de Estado, Henry Kissinger. O tema era o atoleiro americano no Vietnã, e Nixon cogitava aniquilar, de uma só tacada, a ampla rede de diques, docas e ferrovias construídos pelos vietnamitas. A fita gravada desse diálogo reptiliano só foi tornada pública 30 anos mais tarde, graças à Lei de Acesso à Informação dos Estados Unidos. Nixon começa:

— [O bombardeio de diques] vai afogar a população?

— Cerca de 200 mil pessoas, responde Kissinger.

— Prefiro usar bomba nuclear. Você entendeu, Henry?

— Isso eu acho que seria demais.

— A bomba nuclear, por que ela incomoda você? Pelo amor de Deus, Henry, eu quero que você pense grande... O único ponto sobre o qual divergimos é em relação aos bombardeios. Você vive preocupado com as baixas civis...

— Os civis me preocupam porque não quero que o mundo se mobilize contra você por ser um açougueiro.

Até mesmo estadistas considerados gigantes, como Winston Churchill, questionaram a sensatez de manter algum cavalheirismo humanista em tempos de guerra. Numa minuta em sete pontos de suas anotações pessoais de 6 de julho de 1944, Churchill escreveu: “Necessidade de pensar a sério sobre uso de gás venenoso. Eu não recorreria ao expediente exceto se (a) a situação para nós for de vida ou morte ou (b) se o recurso encurtar a guerra em um ano (...). Plano de encharcar a Alemanha de gás deve ser estudado por analistas frios, e não por aqueles carolas que sempre aparecem uniformizados cantando hinos derrotistas”.

Toda guerra tem seu corolário de barbárie. Assim como toda guerra costuma ter dono. A da Ucrânia leva a assinatura única de Vladimir Putin, enquanto a invasão, ocupação e destruição do Iraque soberano em 2003 (outra “guerra de escolha”, sem motivo) foi obra do presidente americano George W. Bush. O tamanho da condenação mundial, ínfima no caso de Bush, as distancia na percepção global. O grande diferencial entre ambas é de fundo: o ato de guerra de Putin não permite divergências. O regime é autocrático. Os Estados Unidos de Bush eram, e ainda são, uma democracia.

Coube ao ex-guerrilheiro tupamaro, ex-presidente do Uruguai e humanista vitalício José Alberto “Pepe” Mujica, de 86 anos, refrasear as palavras de Einstein citadas no início deste artigo. Em comentário de dois dias atrás para a rádio Deutsche Welle, perguntou: “Será possível que a humanidade do futuro não possa abandonar os orçamentos militares, a loucura da guerra? Seguiremos na Pré-História, com a única diferença que a barbárie dos homens primitivos parece brincadeira se comparada à barbárie dos homens contemporâneos”.

Covardes e oportunistas

Mesmo com exemplos de sobra – estatismo exacerbado, ojeriza à imprensa, obediência cega ao chefe, que sempre está acima de tudo e todos -, petistas e bolsonaristas viram bichos quando alguém aponta semelhanças entre eles. Na invasão da Ucrânia por Vladimir Putin, as parecenças reavivaram-se.

Ainda que com argumentos diferentes, ambos evitaram condenar o ataque do neoczar russo. As notas do Itamaraty e do PT, igualmente muristas, poderiam ser assinadas por um ou outro sem mexer em uma única vírgula. Como o que importa não são os mortos e feridos de uma guerra absurda e sim a eleição que se aproxima, os dois lados correram para desautorizar declarações e rearranjar discursos.


Jair Bolsonaro puxou a orelha do seu vice, Hamilton Mourão, que, na primeira hora, condenou veementemente o ataque russo. E o PT de Lula fez com que o seu líder do Senado, Paulo Rocha (PA), retirasse do Twitter uma “nota oficial” em que condenava a política dos Estados Unidos “de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”, que ele chamou de “política belicosa”.

O escorregão de sincericídio dos senadores petistas foi substituído por um texto anódino pró-diálogo e em favor da paz – algo que ninguém em sã consciência criticaria -, assinado pela presidente da legenda, Gleisi Hoffmann. Lula, por sua vez, chegou a repudiar o ataque em entrevista a uma emissora de rádio. Mas recuou em falar mais sobre a invasão, visto que parte de sua militância é aderente ao discurso anti-EUA, o país-diabo para a esquerda do século passado.

Intelectualizada, a retórica petista busca justificativas à base de convenientes reinterpretações da História. Condena a opressão dos Estados Unidos a todos os povos, exalta os tempos de glória da União Soviética, sem considerar a matança política de Stalin. Alia-se às ditaduras da Venezuela, da Nicarágua e de Cuba, destilando ódio às democracias ocidentais. Curiosamente, as mesmas que reverenciam Lula com tapete vermelho.

O raciocínio bolsonarista também é pra lá de tortuoso. O presidente não esconde a proximidade com a pauta conservadora de Putin, especialmente no que diz respeito aos costumes. Mas foi muito mais tímido do que o seu “irmão” ultradireitista Viktor Orbán, da Hungria, que condenou os ataques e abriu suas fronteiras para receber ucranianos.

Bolsonaro justifica sua neutralidade pela “dependência” que o Brasil tem hoje dos fertilizantes importados da Rússia e pela relação “extraordinária” com Putin, novamente confundindo o Brasil com suas simpatias pessoais. Nas redes, sua trupe mais aguerrida alia-se a Donald Trump, que, na tentativa de evidenciar uma alegada fragilidade do presidente Joe Biden, faz alegorias ao agressor russo.

O mais aflitivo para Bolsonaro deveria ser o mico de ter se solidarizado com Putin poucos dias antes da invasão, durante a visita um tanto fora de hora que fez ao líder russo. Impropriedade que se soma aos erros grotescos de sua inteligência militar, que falhou feio. Não viu riscos de guerra iminente, deixando mais de 500 brasileiros entre as bombas na Ucrânia, instruídos a não deixar o país no pré-conflito anunciado e agora sem guarita ou plano de retirada.

Ainda que possa ter reflexos na economia do país, a invasão russa está longe de influir na eleição brasileira de outubro. Mas ela escancara a admiração dos protagonistas mais bem posicionados nas pesquisas a líderes autocratas, que vilipendiam a democracia. É simples: ser neutro na guerra contra a Ucrânia é apoiar Putin. E didática: neutralidade entre agressor e vítima só existe na cabeça de covardes e oportunistas. Figurinos sob medida para Bolsonaro e Lula.

Pensamento do Dia

 


A guerra de cada um

Confesso que não esperava ver nos jornais notícias de uma guerra como essa entre Rússia e Ucrânia. Concordo que é preciso acompanhá-la de perto, para tentar descobrir suas origens e a justiça delas. Para saber sobretudo como podemos ajudar o mundo a se livrar de episódios insensatos como esse.

Menos glamourosa que a invasão da Ucrânia pelo Exército russo, uma outra notícia falou das contas de bilionários em 2021. Pois, por essas novas contas, Mark Zuckerberg, o jovem proprietário da Meta, dona do Facebook, caiu para o 14º lugar no ranking dos ricos festejados pela revista Fortune. Mas Zuckerberg não precisa sofrer horríveis pesadelos por causa disso. Esse acidente em suas finanças não significa que periga ele ter que passar o chapéu na missa de domingo para ver se recupera um pouco o valor de seu cofre. Ele pode continuar a levar a vida que levou até agora, um pouco mais discretamente para não escandalizar ninguém, até recuperar a posição do Facebook e de seus irmãos digitais.

Como a notícia é divulgada pela imprensa em geral e pelas redes sociais em particular, parece até que o céu vai cair sobre a cabeça de Zuckerberg. Nosso amado capitão fez movimento parecido, com o sinal trocado, quando mandou espalhar pelos mesmos jornais, noticiários de TV e redes sociais, além de documentos oficiais, a notícia de que sua iluminada visita a Moscou impediu a declaração de uma Terceira Guerra Mundial, a ser iniciada com um embate entre Rússia e Ucrânia.


Apesar de todo mundo saber que a Ucrânia é uma “potência pós-digital”, com uma posição privilegiada no universo “figital” (físico e digital), reconhecida do Vale do Silício ao mundo inteiro, o Banco Central Europeu se comportou como se estivesse diante de um modestíssimo cliente e não do país que encabeça, por exemplo, a lista global de serviços em TI. Segundo o próprio governo ucraniano, o número de profissionais especializados que trabalham para empresas de fora do país passa de 200 mil. Nem por isso estaria justificada uma intervenção militar russa para controlar o país, qualquer que seja o pretexto usado por Putin. Incluindo o medo da Otan e o perigo de sua proximidade de Moscou. O mundo inteiro vive hoje desse jeito. E daí?

O atual presidente da Ucrânia é Volodymyr Zelensky, um comediante estrela da televisão ucraniana. É mais ou menos como se tivéssemos eleito por aqui nosso inesquecível Chico Anísio que, com sua cultura política, seu interesse pelo país e o papel que exerceu com seus conhecimentos no rádio, na televisão e no cinema, seria um excelente gestor de valores nacionais. Aliás, Ary Barroso exerceu esse papel no Brasil pós-Vargas.

Não estou pedindo apoio a Zelensky, eu mesmo não conheço nada de sua produção pessoal. Estou só tentando lembrar que ele pode ser representante de uma linha de pensamento político na Ucrânia que não é nada vulgar e que merece um certo respeito.

Nossa guerra interna, no Brasil, é sobretudo contra a morte de crianças, pobres e pretos. Como Agatha, de 8 anos, que foi morta com um tiro pelas costas, sentada no carro em que ia para casa vinda da escola. Quem atirou nela foi um PM que dizia estar se livrando de um ataque de bandidos do Complexo do Alemão, um dos bairros mais “perigosos” do Rio de Janeiro. Os pais de Agatha recusaram ajuda financeira do estado para sepultar a filha e até hoje esperam por justiça. Na época do assassinato, o avô de Agatha deu uma clara e generosa declaração à imprensa: “Isso é confronto? Minha neta estava armada? A arma que ela amava usar era o lápis com que escrevia e desenhava os deveres do colégio”. E Agatha era negra e pobre, como o policial que a matou.

E, antes que a gente passe insensível pelo evento, essa semana morreu um dos maiores cineastas do Brasil, um dos mais destacados e reconhecidos gênios do cinema latino-americano, Geraldo Sarno. De Covid.

Os tanques e o sonho europeu

Numa crônica publicada na última edição da revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina, observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos chineses do restaurante.

Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?


Quando há um conflito, a vida de gente comum é abruptamente atropelada pela geopolítica. “Em Belgrado, na guerra da Sérvia, observei que as pessoas se preocupavam primeiro com a família e depois em conseguir coisas básicas como comida, que começava a faltar nos supermercados”, diz o jornalista Ricardo Alexandre, entrevistado no minipodcast da semana. Ele acaba de lançar um livro sobre o Afeganistão e é um dos maiores especialistas portugueses em conflitos internacionais.

O bom jornalismo sempre esteve atento para o efeito das guerras sobre o cotidiano. Em 2003, Jon Lee Anderson, da The New Yorker, conversou com representantes da classe média iraquiana às vésperas do bombardeio americano. Um dos entrevistados era um violinista que não sabia se sua orquestra continuaria existindo. Era iraquiano. Podia ser nova-iorquino.

Da mesma forma, o médico japonês descrito no livro Hiroshima, do repórter John Hersey, podia ser americano. Ele estava na varanda de seu hospital quando a bomba atômica o lançou a vários metros de distância. Teve o azar de estar do lado errado no conflito em 1945.

Da guerra, o ucraniano Artem guardou a frase de um colega do front: liberdade é poder se preocupar com coisas triviais. A Rússia invadiu a Ucrânia, e talvez não seja mais possível a Irina e Artem pensar em pasteizinhos chineses. Eles também sonhavam com um futuro europeu para o filho de 11 anos. Grande parte dos ucranianos escolheu esse futuro em eleições. A geopolítica, com seus tanques, pode fazer terra arrasada do sonho.

Verdade tá na cara

Nós já esquecemos completamente o axioma de que que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana é capaz de fabricar ou conceber... de facto, os homens conseguiram finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico.
Fiodor Dostoievski, "Diário de um Escitor"

Putin perdeu

Vladimir Putin perdeu. Se o plano era marchar até Kiev, arrancar o presidente ucraniano de sua poltrona e enfiar um fantoche em seu lugar, em meio à apatia geral, pode-se dizer que ele fracassou. Volodymyr Zelensky, usando como arma apenas seu telefone celular, tornou-se um símbolo poderoso demais. De fato, mesmo que consiga assassiná-lo nos próximos dias, o carniceiro russo já foi derrotado. Não no campo de batalha, onde sua brutalidade deve se impor, e sim no campo do Manchester United, que tirou da camisa o patrocinador russo, ou no quintal de Homer Simpson.

Isoladamente, esses gestos de solidariedade que se espalham pelas redes sociais podem parecer pitorescos; somados, porém, eles produzem um estrago maior do que qualquer bazuca, porque empurram as democracias ocidentais a um empenho jamais visto. Quem poderia imaginar que os europeus apoiassem o expurgo da Rússia do comércio internacional, apesar do risco de escassez de gás? Foi o que ocorreu.

Até os aliados de Vladimir Putin viraram as costas para ele. Só sobraram uns personagens desimportantes e aloprados como Jair Bolsonaro, mais uma prova de que o criminoso da KGB perdeu. O presidente brasileiro está disposto a trocar a democracia por um saco de fertilizantes. Isso dá uma medida de seus valores. Mas o fato é que, assim como Vladimir Putin, ele também foi derrotado por CR7 e Homer Simpson.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 


Contra as democracias

Nikolai Patrushev é o chefe do Conselho de Segurança Nacional da Rússia e o principal ideólogo da “turma” de Vladimir Putin, um grupo de ex-membros da KGB que comanda o governo. Sua visão básica: o Ocidente pretende esmagar a Rússia, impondo-lhe “agressivamente os valores neoliberais que contradizem nossa visão de mundo” (citado em The Economist, edição de 19 a 25 de fevereiro).

Qual visão de mundo? Não é a volta do comunismo, até por razões pessoais. É dinheiro. Esses ex-agentes da KGB, como o próprio Putin, acumularam fortunas quando caiu o regime soviético e foram introduzidas reformas capitalistas. Acumularam não pela capacidade como investidores. Foi roubo.

Primeiro, nas privatizações das grandes estatais. Aqueles funcionários tiveram acesso privilegiado a informações e a “moedas de privatização”, como títulos da dívida pública, vendidos a preço de banana e aceitos a preço de ouro na compra das estatais.

Depois, seguiram ganhando concessões “informais” de negócios nas áreas de energia, infraestrutura e bancos, principalmente.

Em resumo, um caso de capitalismo de amigos, levado ao limite.


Ao mesmo tempo, porém, foram introduzidas reformas capitalistas, como amplo direito à propriedade privada de bens e serviços, proteção do lucro e abertura de negócios para o exterior. Há uma política econômica baseada em metas de inflação, controle das contas públicas e taxa de câmbio mais ou menos flutuante. Com empresas privadas e seus acionistas, a Bolsa de Valores de Moscou passou a ser um alvo de investidores ocidentais.

Nesse quadro, surgiram magnatas não oriundos do regime soviético, mas investidores e negociantes que souberam aproveitar oportunidades na Rússia e, depois, em toda a Europa Ocidental. A formação de uma classe média cosmopolita foi a consequência direta — classe que se sente europeia.

Por que, então, o ideólogo de Putin tem tamanha bronca dos “valores neoliberais”? Ele se refere a direitos e liberdades individuais. Na visão de mundo de Putin e sua turma, a democracia à ocidental é ineficiente, incapaz de gerir a economia e a sociedade.

Dito de maneira direta: oposição só cria caso e atrapalha o governo; imprensa livre só serve para inventar fake news; as minorias são um estorvo; liberdade partidária divide o povo.

Essa é também a visão de mundo da China. Quando as democracias ocidentais enfrentavam dificuldades para lidar com crises financeiras e com a pandemia, o presidente Xi Jinping decretou o fim desse “modelo” e o sucesso do modo chinês de administrar um capitalismo de Estado.

De certo modo, Putin cometeu um erro ao acreditar demasiado nessa versão. Para ele, as democracias ocidentais — com suas liberdades dentro e fora dos países — jamais conseguiriam se unir para enfrentar seu expansionismo.

Foi o contrário, pelo que se vê até agora. Entre as principais democracias, é praticamente unânime a condenação da Rússia e o acordo para impor pesadas sanções econômicas a governo, empresas e indivíduos.

Sim, o Ocidente também pagará um preço pelo bloqueio aos negócios russos, mergulhados principalmente na economia europeia. Mas a ideia é provocar uma reação das elites empresariais russas e da classe média.

Até agora, as elites, em privado, manifestavam desagrado com o regime. Mas, como estavam ganhando dinheiro e em expansão, bom, deixa pra lá. Declaravam-se neutras e não se metiam em política.

Mas, se a economia russa for levada a uma forte recessão e perda de riqueza, muita gente por lá vai cogitar: tudo isso para anexar a Ucrânia? Tudo isso para alimentar as ambições sanguinárias de Putin?

Não existe a possibilidade de uma invasão à Rússia para derrubar o governo Putin. Seria iniciar uma guerra mundial nuclear. Mas é real a possibilidade de os próprios russos perceberem os danos causados pela turma de Putin.

Também é real a possibilidade de Putin endurecer ainda mais o regime ao se sentir pressionado internamente. Esse é um problema que os russos terão de resolver.

O medo

Uma das consequências do medo é a submissão aos chefes. Todo o grupo social que tenha um vivo sentimento de medo, volta-se instintivamente para um chefe que julga digno da sua confiança. Este às vezes é bom, outras vezes é mau , mas o mecanismo do instinto é o mesmo nos dois casos. Um movimento idêntico fez com que a Inglaterra se voltasse para Churchill em 1940 e os alemães para Hitler na época de grande crise. No momento do perigo, a submissão a um chefe é muitas vezes necessária. É evidentemente bom, num naufrágio, que se obedeça ao capitão. Mas uma tal submissão comporta perigos inevitáveis que a tornam lamentável, quando o medo que a inspira não é necessário. Rouba o gosto da responsabilidade individual e o hábito de pensar por si mesmo. Se o chefe que se escolhe não possui uma elevação de espírito excepcional, sacrificará cedo ou tarde , os seus partidários aos seus interesses pessoais , o que faziam quase invariavelmente os tiranos gregos. E como o seu poder assentava apenas num medo geral e difuso, ele não cuidava de o dissipar , mas pelo contrário, encorajava os seus concidadãos a crerem-se cercados de inimigos. Daí a "caça às bruxas" no interior e as guerras no exterior. Toda esta cadeia trágica resulta do medo que o homem sente pelo seu semelhante.

Bertrand Russell, "A Última Oportunidade do Homem"