segunda-feira, 6 de janeiro de 2025
Genialidade brasileira
Confusão. Sempre confusão. Espírito crítico de antologia universal. Lado a lado todas as épocas, todas as escolas, todos os matizes. Tudo embrulhado. Tudo errado. E tudo bom. Tudo ótimo. Tudo genial.
Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute. Tem asneiras? Tem. Muitas? Santo Deus. Mas são grandiloquentes? Se são. Pois então é literatura e da melhor. Quer dizer alguma cousa? Nada. Rima, porém? Rima. Logo é literatura.
O Brasil é o único país de existência geograficamente provada em que não ser literato é inferioridade. Toda gente se sente no dever indeclinável de fazer literatura. Ao menos uma vez ao ano e para gasto doméstico. E toda a gente pensa que fazer literatura é falar ou escrever bonito. Bonito entre nós às vezes quer dizer difícil. Às vezes tolo. Quase sempre eloquente.
O cavalheiro que encerra a sua oração com um Na antiga Roma ou como disse Barroso Na célebre batalha é orador. Orador, só? Não. Orador de gênio. O cavalheiro que termina o seu soneto com um Ó sol! É raio! Ó luz! Ó nume! Ó astro! É poeta. Também genial. E assim por diante.
Só a gente se agarrando com Nossa Senhora da Aparecida. Essa falsa noção da genialidade brasileira é a mesma do Brasil, primeiro país no mundo. Não há cidadão perdido em São Luiz do Paraitinga ou São João do Rio do Peixe que não esteja convencido disso. E porque o Brasil é o campeão do universo e o brasileiro o batuta da terra, tudo quanto aqui nasce e existe há de ser forçosamente o que há de melhor neste mundo de Cristo e de nós também. Todos os adjetivos arrebatados e apoteóticos são poucos para tamanha grandeza e tamanha lindeza. Ninguém pode conosco. Nós somos os cueras mesmo.
Qualquer coisinha assume aos nossos olhos de mestiços tropicais proporções magnificentes, assustadoras, insuperáveis, nunca vistas. O Brasil é o mundo. O resto é bobagem. Castro Alves bate Victor Hugo na curva. O problema da circulação em São Paulo absorve todas as atenções estudiosas. Sem nós a Sociedade das Nações Unidas dá em droga. Vocês vão ver. Wagner é canja para Carlos Gomes. Em Berlim como em Sydney, em Leningrado como em Nagasaki só temos admiradores invejosos. O universo inteiro nos contempla. Êta nós!
É por isso que seria excelente de vez em quando uma cartinha como aquela de Remy de Gourmont a Figueiredo Pimentel. Um pouco de água gelada nesta fervura auriverde. Para que o trouxa brasileiro caia na realidade. E deixe-se dessa história de gênio, grandeza, importância e riquezas incomparáveis que é bobagem.
E não é verdade.
Alcântara Machado, "Antologia do humorismo e sátira"
Olhem a mania nacional de classificar palavreado de literatura. Tem adjetivos sonoros? É literatura. Os períodos rolam bonito? Literatura. O final é pomposo? Literatura, nem se discute. Tem asneiras? Tem. Muitas? Santo Deus. Mas são grandiloquentes? Se são. Pois então é literatura e da melhor. Quer dizer alguma cousa? Nada. Rima, porém? Rima. Logo é literatura.
O Brasil é o único país de existência geograficamente provada em que não ser literato é inferioridade. Toda gente se sente no dever indeclinável de fazer literatura. Ao menos uma vez ao ano e para gasto doméstico. E toda a gente pensa que fazer literatura é falar ou escrever bonito. Bonito entre nós às vezes quer dizer difícil. Às vezes tolo. Quase sempre eloquente.
O cavalheiro que encerra a sua oração com um Na antiga Roma ou como disse Barroso Na célebre batalha é orador. Orador, só? Não. Orador de gênio. O cavalheiro que termina o seu soneto com um Ó sol! É raio! Ó luz! Ó nume! Ó astro! É poeta. Também genial. E assim por diante.
Só a gente se agarrando com Nossa Senhora da Aparecida. Essa falsa noção da genialidade brasileira é a mesma do Brasil, primeiro país no mundo. Não há cidadão perdido em São Luiz do Paraitinga ou São João do Rio do Peixe que não esteja convencido disso. E porque o Brasil é o campeão do universo e o brasileiro o batuta da terra, tudo quanto aqui nasce e existe há de ser forçosamente o que há de melhor neste mundo de Cristo e de nós também. Todos os adjetivos arrebatados e apoteóticos são poucos para tamanha grandeza e tamanha lindeza. Ninguém pode conosco. Nós somos os cueras mesmo.
Qualquer coisinha assume aos nossos olhos de mestiços tropicais proporções magnificentes, assustadoras, insuperáveis, nunca vistas. O Brasil é o mundo. O resto é bobagem. Castro Alves bate Victor Hugo na curva. O problema da circulação em São Paulo absorve todas as atenções estudiosas. Sem nós a Sociedade das Nações Unidas dá em droga. Vocês vão ver. Wagner é canja para Carlos Gomes. Em Berlim como em Sydney, em Leningrado como em Nagasaki só temos admiradores invejosos. O universo inteiro nos contempla. Êta nós!
É por isso que seria excelente de vez em quando uma cartinha como aquela de Remy de Gourmont a Figueiredo Pimentel. Um pouco de água gelada nesta fervura auriverde. Para que o trouxa brasileiro caia na realidade. E deixe-se dessa história de gênio, grandeza, importância e riquezas incomparáveis que é bobagem.
E não é verdade.
Alcântara Machado, "Antologia do humorismo e sátira"
Os sábios
Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem.
Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.
Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht"
Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres.
Na reunião, os sete sábios por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha.
Gonçalo M. Tavares, "O senhor Brecht"
Com essa polícia, para que bandidos?
Confira se essa descrição se aplica a alguma cidade que você conheça. Apesar do luxo de seus quarteirões abastados, ela abriga 2.000 favelas. Nelas, os moradores vivem em casas improvisadas, com puxadinho de tijolo aparente, alugadas do dono do pedaço. As ruas não têm calçamento, o correio não chega, e a luz é fornecida por "gatos". Não há rede de esgotos. Muita gente boa mora ali, mas suas visitas não lhe batem à porta com três dedos —já entram com o pé na porta. Cada favela é controlada por uma facção. Se às vezes a chapa esquenta, com tiros e granadas, é porque esse controle está sendo disputado por outra facção, pela milícia ou pela polícia.
Aos seus jovens habitantes, sem escola, sem emprego e sem qualquer interesse, resta o manejo de armas, a venda de cocaína e o progresso na hierarquia do tráfico. Não leem nada. São individualistas, "empreendedores" e esforçados. Seu vínculo é com a facção a que pertencem, mas, como variação, sustentam-se como motoboys de restaurantes, choferes de mototáxi, segurança dos bacanas locais e, agora, operadores de apostas online. Tudo clandestino —nunca terão carteira assinada nem pagarão impostos. Por serem tidos como atraentes, promoverão uma ou outra prostituição na comunidade, usando as meninas que os admiram.
Se você pensou no Rio, onde essas zonas de conflito estão à mostra, acertou. Se pensou em São Paulo, onde elas não estão, acertou também. Mas os parágrafos acima são do repórter americano John Lee Anderson, num número recente da revista The New Yorker, sobre o presidente argentino Javier Milei. A cidade que ele descreve é Buenos Aires.
As nossas são parecidas, mas, por causa da polícia, talvez mais excitantes. Nelas, os tiras têm uma noção particular de suspeito —é todo aquele que se move na frente deles. Com tão vasto leque de opções, aspergem gás de pimenta em passantes, agridem senhoras de idade, matam pelas costas, jogam suspeitos da ponte ou fuzilam carros na presunção de que pais de família desarmados, jovens bonitas ou bebês a bordo são criminosos.
Com uma polícia dessas para que bandidos?
Aos seus jovens habitantes, sem escola, sem emprego e sem qualquer interesse, resta o manejo de armas, a venda de cocaína e o progresso na hierarquia do tráfico. Não leem nada. São individualistas, "empreendedores" e esforçados. Seu vínculo é com a facção a que pertencem, mas, como variação, sustentam-se como motoboys de restaurantes, choferes de mototáxi, segurança dos bacanas locais e, agora, operadores de apostas online. Tudo clandestino —nunca terão carteira assinada nem pagarão impostos. Por serem tidos como atraentes, promoverão uma ou outra prostituição na comunidade, usando as meninas que os admiram.
Se você pensou no Rio, onde essas zonas de conflito estão à mostra, acertou. Se pensou em São Paulo, onde elas não estão, acertou também. Mas os parágrafos acima são do repórter americano John Lee Anderson, num número recente da revista The New Yorker, sobre o presidente argentino Javier Milei. A cidade que ele descreve é Buenos Aires.
As nossas são parecidas, mas, por causa da polícia, talvez mais excitantes. Nelas, os tiras têm uma noção particular de suspeito —é todo aquele que se move na frente deles. Com tão vasto leque de opções, aspergem gás de pimenta em passantes, agridem senhoras de idade, matam pelas costas, jogam suspeitos da ponte ou fuzilam carros na presunção de que pais de família desarmados, jovens bonitas ou bebês a bordo são criminosos.
Com uma polícia dessas para que bandidos?
Ano vira, mas o país não muda
A virada do ano mexe com todos. Creio, no entanto, que para os mais velhos não há grandes planos. Apenas a gratidão por sobreviver. Tendemos a cortar o tempo em fatias menores: as tardes de maio, manhãs de domingo, a hora do crepúsculo, algumas auroras, o momento do adeus.
Comprei um aplicativo de gravação que registra a voz, estampa o texto e ainda dá um título. Uso para mandar alguns roteiros de estudo para minha filha, que viaja muito e gosta de estar em dia com alguns temas, como a crise do Oriente Médio, presente em muitas conversas.
O título de uma gravação despretensiosa diz muito para mim: “A arte de adiar a morte, as histórias de Sherazade”. Personagem fascinante das Mil e Uma Noites, ela usava sua habilidade de contar histórias como um artifício para adiar sua execução.
Cada noite, Sherazade começava uma nova narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e personagens intrigantes que cativavam a atenção do rei. A estratégia a mantinha viva por mais um dia, mas transformava a proximidade da morte para explorar a condição humana. Contar histórias, conclui a anotação, é um ato de resistência e criatividade diante da morte certa.
Creio que Octavio Paz disse alguma coisa parecida: a poesia como triunfo sobre a morte.
Às vezes somos obrigados a contar a história real que se desdobra no cotidiano do país. Nem sempre temos estômago para vivê-la, e mesmo interpretá-la se transforma em algo indigesto.
O fim de ano foi marcado por uma crise de almanaque. Deputados querem dinheiro das emendas, mas fogem dos quesitos transparência e rastreabilidade. Isso é indispensável quando se usam recursos públicos. O Supremo tenta resistir desde o famoso orçamento secreto. E eles driblam o Supremo, às vezes com a cumplicidade do próprio governo, que não pode bater de frente com o Congresso.
O resultado dessa farsa prolongada é ver dinheiro literalmente jogado pela janela, aviões transportando fortunas em espécie, cidades onde todo mundo extrai o dente, como Pedreiras (MA): 14 dentes extraídos por habitante.
Tenho dificuldade em achar um horizonte. O recente projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto racional, como estamos longe de um nível necessário de austeridade. As cidades de Maranhão e Tocantins ligadas pela ponte que caiu gastaram R$ 36 milhões em shows, com suas emendas.
O Supremo não consegue deter a prática, porque ainda há certa indiferença social, e o Judiciário é parte do problema com seus supersalários. Uma desembargadora de Mato Grosso, que ganha R$ 130 mil mensais, deu um abono de R$ 10 mil aos funcionários do tribunal. Abono peru. O sacrifício sempre recai sobre os mais pobres. Supersalários e subsídios ficam para depois.
Todos os Poderes gastam muito. Opulência e ostentação são fatores culturais de peso. Talvez por isso Lutero tenha conduzido a cisão na Igreja Católica, que tinha prédios luxuosos, sacerdotes ricos e vendia indulgências, como se o perdão tivesse um preço.
Não importa tanto a raiz cultural, isso é injusto num país com tantas necessidades. Uma coisa é narrar e contar histórias para adiar a morte, algo inerente à condição humana. Outra é narrar para descrever as injustiças cotidianas, num país ainda tão desigual. Tudo é resistência, mas às vezes a repetição cansa.
Quem sabe os eleitores não percebam esse enredo e nos libertem para contarmos apenas as histórias essenciais?
Comprei um aplicativo de gravação que registra a voz, estampa o texto e ainda dá um título. Uso para mandar alguns roteiros de estudo para minha filha, que viaja muito e gosta de estar em dia com alguns temas, como a crise do Oriente Médio, presente em muitas conversas.
O título de uma gravação despretensiosa diz muito para mim: “A arte de adiar a morte, as histórias de Sherazade”. Personagem fascinante das Mil e Uma Noites, ela usava sua habilidade de contar histórias como um artifício para adiar sua execução.
Cada noite, Sherazade começava uma nova narrativa envolvente, cheia de reviravoltas e personagens intrigantes que cativavam a atenção do rei. A estratégia a mantinha viva por mais um dia, mas transformava a proximidade da morte para explorar a condição humana. Contar histórias, conclui a anotação, é um ato de resistência e criatividade diante da morte certa.
Creio que Octavio Paz disse alguma coisa parecida: a poesia como triunfo sobre a morte.
Às vezes somos obrigados a contar a história real que se desdobra no cotidiano do país. Nem sempre temos estômago para vivê-la, e mesmo interpretá-la se transforma em algo indigesto.
O fim de ano foi marcado por uma crise de almanaque. Deputados querem dinheiro das emendas, mas fogem dos quesitos transparência e rastreabilidade. Isso é indispensável quando se usam recursos públicos. O Supremo tenta resistir desde o famoso orçamento secreto. E eles driblam o Supremo, às vezes com a cumplicidade do próprio governo, que não pode bater de frente com o Congresso.
O resultado dessa farsa prolongada é ver dinheiro literalmente jogado pela janela, aviões transportando fortunas em espécie, cidades onde todo mundo extrai o dente, como Pedreiras (MA): 14 dentes extraídos por habitante.
Tenho dificuldade em achar um horizonte. O recente projeto de reduzir custos do governo revelou como é difícil o gasto racional, como estamos longe de um nível necessário de austeridade. As cidades de Maranhão e Tocantins ligadas pela ponte que caiu gastaram R$ 36 milhões em shows, com suas emendas.
O Supremo não consegue deter a prática, porque ainda há certa indiferença social, e o Judiciário é parte do problema com seus supersalários. Uma desembargadora de Mato Grosso, que ganha R$ 130 mil mensais, deu um abono de R$ 10 mil aos funcionários do tribunal. Abono peru. O sacrifício sempre recai sobre os mais pobres. Supersalários e subsídios ficam para depois.
Todos os Poderes gastam muito. Opulência e ostentação são fatores culturais de peso. Talvez por isso Lutero tenha conduzido a cisão na Igreja Católica, que tinha prédios luxuosos, sacerdotes ricos e vendia indulgências, como se o perdão tivesse um preço.
Não importa tanto a raiz cultural, isso é injusto num país com tantas necessidades. Uma coisa é narrar e contar histórias para adiar a morte, algo inerente à condição humana. Outra é narrar para descrever as injustiças cotidianas, num país ainda tão desigual. Tudo é resistência, mas às vezes a repetição cansa.
Quem sabe os eleitores não percebam esse enredo e nos libertem para contarmos apenas as histórias essenciais?
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