quarta-feira, 12 de março de 2025

Pensamento do Dia

 


Para quê?

Quando se houver conquistado tecnicamente e explorado economicamente até o último rincão do planeta; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar haja se tornado acessível com a rapidez que se deseje; quando se possa “assistir” simultaneamente a um atentado contra um rei da França e a um concerto sinfônico em Tóquio; quando o tempo já somente equivalha à velocidade, instantaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto história haja desaparecido de qualquer existência de todos os povos; quando se tenha um pugilista como o grande homem de um povo; quando se tenham por um triunfo as cifras de milhões em assembleias populares... então, todavia então, como um fantasma que se projeta mais além de todas essas quimeras, se estenderá a pergunta: para quê? até onde? e logo quê?

Martin Heiddeger

Homens-fortes

"Apesar de ouvirmos com frequência que homens-fortes são gênios da estratégia, poucos deles, ou talvez até mesmo nenhum, seguem um plano diretor. Seus verdadeiros talentos não são os do mestre de xadrez, mas os dos valentões de rua e vigaristas: rapidez para extrair o máximo das oportunidades que lhes são oferecidas, habilidade para fazer com que as pessoas se liguem a eles e acreditem em suas ficções, e a disposição para fazer qualquer coisa para obter a autoridade absoluta pela qual anseiam. A maioria deles termina com muito mais poder do que jamais imaginou".


O diagnóstico acima é da historiadora americana Ruth Ben-Ghiat (Universidade de Nova York). Ele parece nas páginas finais de "Strongmen" (homens-fortes). O livro pode ser descrito como uma tentativa de entender ditadores e líderes populistas de direita, analisando as características que os unem e, dentro delas, como diferem um do outro. Essas diferenças, é bom frisar, podem ser grandes.

Ben-Ghiat escrutina as trajetórias de Mussolini, Hitler, Franco, Gaddafi, Pinochet, Mobuto Sese Seko, Berlusconi, Erdogan, Putin e Trump. Outros líderes de mesmo jaez, como Bolsonaro, Duterte, Modi e Orbán, fazem aparições mais breves, como coadjuvantes.

A autora mostra como eles ascenderam ao poder, como se utilizaram de nacionalismo, propaganda, virilidade (incluindo catálogos de seus apetites sexuais), corrupção e violência —as ferramentas para exercê-lo— e como eventualmente caíram. Autocracias e ditaduras são sempre mais instáveis do que democracias.

O livro é de 2020. Isso significa que cheguei a ele com um quinquênio de atraso. A demora acabou criando um efeito interessante. Os traços autoritários que ela aponta em Donald Trump são ainda os do primeiro mandato e anteriores à invasão do Capitólio. Se já tínhamos motivos para nos preocupar, temos agora muito mais razões para angústia, pois o que vimos nestas primeiras semanas de segundo mandato são as piores características elevadas ao cubo.

Outra conversa sobre Trump que o X está escondendo

“O que os europeus pensam sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos?” Em sua conta no TikTok, @Nikkionherway , uma jovem blogueira de viagens americana , faz a pergunta aos usuários online deste lado do Atlântico. Em seu vídeo, Nikki explica que gostaria de saber o que um europeu pensaria se a encontrasse durante uma de suas viagens e descobrisse que ela é da terra natal de Trump. A postagem se tornou, de longe, a mais bem-sucedida de todas as que compõem seu perfil no TikTok. Já ultrapassou um milhão de visualizações e o mais significativo é que a pergunta feita por Nikki já acumulou mais de 25.000 respostas, que por sua vez foram comentadas por milhares de outros usuários. “Lamentamos que vocês tenham um presidente assim”, dizem eles da Polônia. “Você está numa grande confusão. “Sinto pena de você, mas também estou muito bravo”, diz o finlandês Minna. “Na França, sabemos diferenciar entre o povo e o governo”, diz Sebastien. Frank, um usuário dinamarquês, diz que acabou de cancelar sua viagem planejada para este ano para as “maravilhosas paisagens americanas. Desejo-lhe o melhor e nos vemos em quatro anos, se tivermos sorte!, ele diz.


Milhões de cidadãos ao redor do mundo estão falando nas redes sociais sobre o que está acontecendo nos Estados Unidos, mas mal são ouvidos. As políticas vociferantes de Trump dominam as manchetes e os espaços digitais, começando com o X de Musk, e enterram uma conversa mais humana em plena efervescência. Americanos assustados como @ashleyjames , que acumulou quase três milhões de visualizações com um vídeo chocante no qual ela retrata o retrocesso que a ascensão de Trump representa para os direitos das mulheres. “Que momento assustador para ser mulher no mundo agora! “O que está acontecendo?” Ashley lamenta no texto que acompanha sua postagem. Do assento do seu carro, @jeanpthemc usa o humor para explicar como a maioria dos americanos se sente agora: “Por favor, ajudem-nos!” “Precisamos de ajuda, Batman, Superman, Homem-Aranha, Mulher-Maravilha!” O cachorro do @artisthut1 rosna quando Trump aparece na TV. A sequência tem dois milhões de acessos e milhares de comentários, tantos quanto a reflexão de @deedaw19601 que está alarmado porque “estamos nos isolando do resto do mundo”.

Enquanto Elon Musk coloca o algoritmo X à disposição do regime para amplificar o impacto de suas decisões e reduzir as objeções daqueles que se opõem a elas, grande parte das vozes críticas ou independentes encontraram na Bluesky uma rede social alternativa com maior liberdade e melhores possibilidades de divulgação. As dez contas mais seguidas nesta rede descentralizada já conseguiram reunir comunidades com mais de um milhão de seguidores ou estão perto disso. Entre eles estão a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez , veículos de comunicação como o The New York Times , o escritor Stephen King e atores comprometidos com a luta pelos direitos civis, como Mark Hamill , o lendário Luke Skywalker, de Star Wars .

Os ataques de Trump à ciência e às universidades, aos jornalistas e à mídia, apoiados por Musk com tanto entusiasmo, conseguiram acelerar a migração para a Bluesky de todos esses setores profissionais ligados ao campo do conhecimento. Sem gritos nem manipulação algorítmica, a plataforma borboleta azul se consolida como uma opção real para obter informações ou acompanhar as iniciativas daqueles que não concordam com as políticas de Trump. Um exemplo: o protesto de cientistas americanos contra os cortes, realizado na última sexta-feira, foi acompanhado e compartilhado principalmente no Bluesky, segundo a ferramenta de análise Talkwalker, que respondeu por quase 80% das referências a #StandUpforScience, slogan do protesto nas redes sociais. A mobilização surgiu discretamente por parte da X apesar de esta ter 20 vezes mais utilizadores que a rede azul.

Há homens e homens

Há homens que lutam um dia e são bons.

Há outros que lutam um ano e são melhores.
Há os que lutam muitos anos e são muito bons.
Porém, há os que lutam toda a vida.

Esses são os imprescindíveis.

Bertolt Brecht

O mundo digital e a recessão da vida pública

Pensava-se que o mundo digital seria um catalisador da vida pública. A Internet, com todas as suas declinações, tornaria mais fácil partilhar opiniões, participar civicamente, conectarmo-nos uns aos outros. Para uma espécie que assenta na comunicação, aumentar a capacidade de comunicar iria logicamente resultar em sociedades mais fortes e vibrantes.

Hoje, temos argumentos para dizer que o efeito foi o inverso.


O mundo digital suga-nos a atenção e entrincheira-a em esferas confortáveis de opiniões consonantes. Os algoritmos servem sucessões de vídeos sobre fazer pão ou crochê, ou podcasts de esquerda ou de direita, em sintonia com as preferências de cada um. Se o leitor costuma usar o YouTube, experimente abri-lo sem ter iniciado a respectiva conta e num navegador anónimo; provavelmente ficará espantado com o tipo de vídeos que nunca viu e que o YouTube nunca lhe mostraria.

O resultado disto, apesar da cacofonia das redes sociais, é uma retirada da esfera pública, até no sentido físico – o das ruas e praças que atravessamos (e que frequentamos pouco) todos os dias.

Um estudo feito por um grupo de oito acadêmicos analisou a forma como as pessoas se deslocavam em espaços públicos de três cidades dos EUA (Nova Iorque, Boston e Filadélfia). Compararam vídeos gravados entre 1979 e 1980 com imagens de 2008 a 2010. Concluíram que, embora a percentagem de transeuntes que circulam sozinhos se tenha mantido, o número de pessoas que estavam paradas ou que deambulavam naqueles espaços caiu 14%. A velocidade a que as pessoas se deslocavam aumentou 15%. Isto “sugere que estão a usar as ruas mais como passagens do que como espaços sociais.” Também caiu “drasticamente” o número de grupos de pessoas, indicando “menos interação espontânea e/ou menos uso dos espaços urbanos como pontos de encontros pré-combinados”.

O estudo é parco em especulações sobre o que motivou a mudança (“transformações no comportamento humano, no uso do solo, ou no carácter do espaço”). Em 2010 os smartphones ainda davam os primeiros passos, embora os celulares já fossem onipresentes. Não é preciso uma investigação académica para saber que quem está fisicamente sozinho em espaços públicos está normalmente imerso no seu mundo digital por via do celular, tecnologia capaz de criar redutos individuais em espaços tradicionalmente públicos, como as esplanadas, as salas de espera ou as carruagens dos comboios.

Entabular conversa com um estranho é prática em franco declínio – seja porque nos vamos intrometer no mundo em que a outra pessoa está embrenhada, seja porque temos sempre qualquer coisa para ver no próprio celular. O onipresente dispositivo acabou até com o pretexto mais fácil: “Que horas tem?”. Quando há dias uma pessoa me perguntou as horas numa avenida movimentada (um celular sem bateria?), a primeira reação foi a de arregaçar a manga e mostrar o pulso, para indicar que não tinha relógio. Foi um reflexo que terá ficado dos tempos em que a pergunta era corriqueira. Retirar apenas um dos auriculares quando chega a nossa vez na fila do supermercado também passou a ser uma pseudo-cortesia aceitável.

Mas o mundo digital vai mais além na capacidade de nos retirar do espaço público. Permite os confortos e as distrações necessários para nos encolhermos quando os acontecimentos tornam o que nos rodeia mais hostil. Por exemplo, um ambiente geopolítico caótico ou deslizantes da democracia.

Após a tomada de posse de Donald Trump, o colunista do Financial Times Janan Ganesh argumentou que se assistia “a um grande encolher de ombros dos liberais” (usando aqui liberais como se usa quando se diz “democracias liberais”, embora as iliberais não existam. Era uma passividade resignada por parte daqueles que se opõem ao trumpismo. Observava Ganesh:

“Tem acontecido em todo o mundo desde que Trump conseguiu a vitória em novembro, e é natural. Não é possível estar sempre zangado. Nas autocracias da Europa do século XX, as pessoas de consciência dissidente muitas vezes fizeram o que era conhecido como ‘migração interior’. Isto é, em vez de fugir ou lutar, retiravam-se para as suas vidas privadas à medida que à volta delas o ambiente político se tornava mais sombrio.”

É possível ver o mesmo face à progressão das direitas radicais na Europa. Não é possível estar zangado o tempo todo e muito menos é possível lutar o tempo todo. E o mundo digital oferece o casulo perfeito: as séries na Netflix, os vídeos no TikTok, os videojogos do Steam, as compras da Amazon ou da Temu. Gratificação instantânea à prova de composições parlamentares ou inclinações de chefes de Estado. Nunca foi tão agradável alienarmo-nos.

É o sonho de qualquer autocrata (ou aspirante a autocrata) ter uma grande fatia da população placidamente satisfeita. Há quase um século, Aldous Huxley imaginou uma droga para isso. O nosso admirável mundo digital foi por um caminho diferente, mas o resultado pode acabar por ser o mesmo.