terça-feira, 2 de março de 2021

Cemitério nacional

Em seu célebre discurso de aceitação do Prêmio Nobel da Paz, em 1954, Albert Schweitzer achou necessário despertar o mundo das ilusões do pós-guerra. “Todos nós devemos nos dar conta de que somos culpados de desumanidade. Todos nós”, informou à nobilíssima plateia o humanista, médico e teólogo cuja reverência pela vida era absoluta. Alguém, hoje, lhe daria ouvidos ou aceitaria o convite à reflexão? Difícil. Estamos ao mesmo tempo paralisados e ocupados demais em não morrer de Covid-19. Quanto aos que ostentam como honraria seu desdém pela mortandade alheia, uma não menos célebre sacada de Voltaire cabe melhor: “Quem consegue convencê-lo a acreditar em absurdos é capaz de fazê-lo cometer atrocidades”.

A tragédia do Brasil atual extrapola até mesmo a máxima voltairiana: temos na Presidência alguém que não apenas acredita (ou finge acreditar) em absurdos, como ele próprio comete atrocidades em série. Seus áulicos contribuem ao cometer outros tantos, criam terreno fértil para a irresponsabilidade coletiva nacional, e o mundo digital explode num ódio de raiz. “Estão vacinando macaco antes de vacinar gente”, dizia a mensagem recebida pela primeira brasileira a tomar a vacina, Mônica Calazans. Entrevistada no “Globo Repórter” desta semana, a enfermeira negra contou que as mensagens de ódio foram múltiplas.

Impenetrável à razão e à civilização, essa turma acaba afetando os demais. Como resultado, estamos num país-cemitério que não dá conta de seus cidadãos ainda vivos e já enterrou mais de 252 mil contaminados pelo vírus. Talvez a causa mortis devesse ser atestada por inteiro: Covid-19 + falta de vacina + colapso do valente SUS + negacionismo oficial + roubalheira geral + inércia do Congresso + inadimplência moral +... A lista seria por demais extensa, se nominal. Na verdade, a desqualificação do general e titular da Saúde, Eduardo Pazuello, o torna quase inimputável, de tão aberrante. A seu abissal despreparo, soma-se uma deliberada intenção de desinformar e camuflar o pânico — como se fosse possível esconder 1 morto de Covid-19 por minuto, a cada dia. Incapaz de responder às perguntas mais gritantes da imprensa, Pazuello sobrevive à base de pronunciamentos e proclamações à nação, todas sem nexo.


Já o papel de Jair Bolsonaro na devastação humana atingiu um patamar sem volta. Será julgado pela História, o que não lhe importa. Ser condenado pelo Brasil pensante até o alimenta. E ser amaldiçoado por pais, filhos e netos, parentes e dependentes, amigos e colegas dos que não precisariam morrer parece lhe ser indiferente. O presidente é um humano esquisito. Parece feito de um material impermeável à dor alheia. “A verdade é que ninguém chega impunemente a presidente da República”, lascou o Stanislaw Ponte Preta em tempos mais inocentes. Bolsonaro consegue superar a verve de Sérgio Porto: além da sombria bagagem que trouxe para a Presidência, ensandeceu no poder.

Difícil explicar de outra forma sua live semanal da quinta-feira, 25. Naquele dia o Brasil ultrapassara a montanha de 250 mil mortos por Covid-19 em um ano e chegara ao patamar mais alto da contagem diária de óbitos: 1.582. Ouvir o presidente tagarelar sandices contra o uso de máscaras e o isolamento social, naquele seu tom informal salpicado de algo parecido com um ricto/riso, foi horrendo. Foi obsceno.

Dias atrás o crítico de arte do “New York Times” Michael Kimmelman evocou o impacto mundial de uma célebre mostra de fotografia do pós-Segunda Guerra para falar sobre a dificuldade de retratar a atual pandemia. Ele se referia à monumental exposição “The Family of Man”, inaugurada em 1955 no Museu de Arte Moderna de Nova York. Ela foi vista por 9 milhões de pessoas e circulou pelo mundo ao longo de 7 anos. O curador da mostra — ninguém menos que Edward Steichen — selecionara 503 imagens de 68 países para retratar a universalidade da experiência humana e o papel da fotografia na documentação da nossa história.

A família humana de hoje que sobreviverá à Covid-19 ainda não tem uma imagem-ícone capaz de traduzir o medo, o vazio urbano, o horror do isolamento afetivo, a falência física, a morte por asfixia, o silêncio. Não existe o instantâneo imortal do homem em queda das Torres Gêmeas em chamas, nem a foto do menino Alan Kurdi, inerte em areia estrangeira, como símbolo do drama dos refugiados. Do nosso inimigo comum, o vírus, temos apenas uma versão estilizada em forma de bola de tênis com pregos, como já escreveu Helen Lewis na revista “The Atlantic”. As máscaras e equipamento hospitalar radical das equipes médicas já faziam parte de nosso vocabulário visual como sinônimo de higiene e segurança. Não dão conta do recado. E Lewis insiste ser obrigatório encontrarmos a linguagem certa de retratar esta pandemia, porque precisamos relembrar coletivamente o que vivemos. Aguardemos.

A galeria de cúmplices do vírus, contudo, já tem seus nomes de ponta. Disporá de um farto portfólio do presidente brasileiro espalhando a morte.

Pensamento do Dia

 


Missão de Bolsonaro é revelar que inferno existe

O Brasil sempre foi o mais antigo país do futuro do planeta. Sob Bolsonaro, isso está mudando. Antes, o Brasil era mundialmente conhecido como o país do jeito para tudo. De repente, passou a ser visto como um país que não tem jeito.

O Brasil equilibrou-se por tanto tempo na beirada do vácuo que acreditou que o abismo, a exemplo do inferno da escatologia cristã, era mais uma ficção admonitória do que a realidade de uma crise terminal. A ficção tornou-se real.

Sumiu a ideia de que o Brasil está à beira do abismo. O país experimenta a vivência do abismo. No buraco, contabiliza há 37 dias uma média de mais de mil cadáveres a cada 24 horas. Chora os mais de 250 mil mortos em um ano de pandemia.

Absorvido pela celebração ou execração do bicampeonato do Flamengo, o brasileiro demora a notar que o Brasil morre junto com as vítimas do vírus. E, suprema desgraça, o país ainda não foi para o céu.

Bolsonaro se autoimpôs a missão revolucionária de revelar ao Brasil que o inferno existe. Ele não dispõe de um plano de ação. Tem apenas um versículo do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará."



A verdade que interessa a Bolsonaro, presidente "imbrochável", é a mais profunda. Mesmo que as profundezas enlouqueçam o Brasil. Na sua busca por uma verdade sem limites, o presidente comanda o governo do não-planejamento.

Bolsonaro é a síntese do erro total. Ele faz o pior o melhor que pode. Nas últimas 48 horas, criticou o uso de máscaras e o isolamento social. Recusa-se a cometer erros novos. É como se quisesse provar que é errando que se aprende... a errar.

Contra as máscaras, Bolsonaro esgrimiu uma enquete mequetrefe como se fosse o estudo de uma universidade alemã. Contra o isolamento, disse que uma nova rodada de auxílio emergencial deveria ser bancada não pela União, mas por governadores e prefeitos malvados que pregam o lema do "fiquem em casa".

Uma morte é uma fatalidade. Meia dúzia, uma tragédia. Mais de 250 mil, para Bolsonaro, é apenas mais uma estatística. Quando havia mil mortos, Bolsonaro falou em "gripezinha". Aos 5 mil, queixou-se da "histeria".

Quando perguntaram a Bolsonaro sobre os 10 mil corpos, disse "não sou coveiro". Na marca de 20 mil, perguntou: "E daí?". Aos 30 mil mortos, declarou que "todo mundo morre um dia".

No recorde de 40 mil, Bolsonaro fez um convite: "Invadam hospitais e filmem leitos vazios". Com 50 mil mortos, continuava assegurando que "a hidroxicloroquina salva". Na ultrapassagem dos 100 mil cadáveres, declarou "vamos tocar a vida".

Agora, às voltas com mais de 250 mil mortos, Bolsonaro continua soando como Bolsonaro. Depois de tantas frases perversas, de Pazuello, de conspiração antivacina... depois de tantas barbaridades, não resta ao brasileiro senão enfrentar a tragédia.

Bolsonaro não é o problema do Brasil. O país é que é o problema dele. É possível enxergar um lado positivo na crise que Bolsonaro potencializa, mesmo que seja necessário procurar um pouco. Devagarinho, o caos transforma o Brasil num lugar perfeito para a construção de algo inteiramente novo.

Geração virótica marca 'Bozo'

Há a perspectiva de que vamos sair da pandemia aguda para entrar na pandemia crônica. Ou seja, vamos ter debates sobre atualização de vacinas, fluxo de novas cepas. E haverá a preocupação do surgimento de novos vírus. E aí entra a questão do meio ambiente. Quanto mais a gente entra nos habitats naturais, onde estão os repositórios naturais destes vírus, mais a humanidade fica exposta, de modo geral, ao contato de novos vírus. As atenções, em relação ao Brasil, vão estar cada vez mais voltadas ao desmatamento na Amazônia. Não se trata apenas de uma questão climática, tem a questão pandêmica. Está cheio de repositório viral na Amazônia. O Brasil será visto não apenas como um país que não conseguiu controlar sua pandemia, atrasou na vacinação, mas como um país que está colocando o resto da Humanidade em risco, se continuar com as atuais políticas ambientais. 
Monica de Bolle,  economista especializada em imunologia genética pela Universidade de Harvard e integrante do Observatório Covid

Quem desconhece o passado é incapaz de enxergar o futuro

Que país é este onde a Independência foi proclamada por um estrangeiro e a República por um general monarquista? Onde um presidente se suicida para não ser deposto, outro renuncia na esperança de voltar nos braços do povo e não volta, e um terceiro baixa ao hospital 24 horas antes de tomar posse e morre?

Que país é este onde militares cancelam a democracia a pretexto de defendê-la, implantam uma ditadura que dura 21 anos, expulsam do Exército um capitão que planejara atentados a bomba a quartéis, e depois de marginalizá-lo por décadas o ajudam a se eleger presidente da República, a governar e a comandá-los?


Que país é este onde a maior parte do povo, ou parte expressiva dele, ameaçada de morte por um vírus há mais de ano, dá ouvidos e poderá em breve dar seus votos para reeleger um presidente que só faz mentir desde que assumiu o cargo, e que prefere sacrificar vidas a reconhecer e corrigir a tempo os erros que comete?

Que país é este onde a assaz louvada maior operação de combate à corrupção jamais vista no mundo desmorona à luz da descoberta de que seus condutores violaram princípios do Direito aprendidos nos bancos escolares e ultrapassaram limites impostos pelas leis que tinham a obrigação de respeitar com o máximo rigor?

Este país é o nosso, que se dizia antigamente o país do futuro, há séculos dividido entre os poucos ricos e os milhões de pobres, entre os brancos que ocupam os postos mais elevados na órbita dos poderes e os pretos contados que conseguem chegar lá, entre os que toleram o intolerável e os que a ele resistem a duras penas.

A decepção com Bolsonaro

O desapontamento com o governo Bolsonaro não é um fato novo. Há quem tenha se desencantado com Jair Bolsonaro em razão, por exemplo, da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça em abril de 2020. Na ocasião, o ex-juiz da Lava Jato relatou tentativas de interferência por parte do presidente na condução da Polícia Federal. O episódio levou a que muita gente revisse sua ideia sobre a suposta carta branca que Jair Bolsonaro teria dado a Sérgio Moro para o combate à corrupção.

Na semana passada, a interferência de Jair Bolsonaro na presidência da Petrobrás produziu uma nova onda de decepção. Além dos efeitos devastadores sobre a empresa, com prejuízos muito concretos para as centenas de milhares de acionistas minoritários, a ordem para mudar a chefia da empresa consolidou a percepção de que Jair Bolsonaro não tem nenhum compromisso com a agenda liberal proposta na campanha de 2018. Não há mais nem mesmo o cuidado de manter as aparências.

Sempre houve bons motivos para desconfiar da adesão de Jair Bolsonaro a uma pauta de reformas. Basta pensar, por exemplo, que, por mais de duas décadas, a atuação do ex-capitão na Câmara dos Deputados foi oposta a todo o conjunto de reformas anunciado por Paulo Guedes na campanha eleitoral do então candidato do PSL à Presidência da República.


O fato, no entanto, é que muita gente confiou em Jair Bolsonaro: em sua disposição e capacidade de promover uma profunda mudança liberal no Estado brasileiro. A ideia era a de que, sob a batuta de Paulo Guedes, haveria um choque de gestão. O déficit fiscal acabaria, muitas privatizações seriam feitas, o poder público seria mais eficiente e o ambiente de negócios sofreria uma revolução.

“Quando candidato, Bolsonaro falava em privatização, e o ministro Guedes, que é liberal, defendia a tese da redução do tamanho do Estado. Me senti motivado a deixar meus negócios para contribuir com isso”, disse o empresário Salim Mattar ao Estado. De janeiro de 2019 até agosto de 2020, Salim Mattar foi o secretário especial de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia.

Hoje, ao falar daquele sonho liberal, Salim Mattar não esconde sua decepção. “O ministro Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido. Por exemplo, há quanto tempo a história da Eletrobrás está no Congresso e não consegue autorização?” Como se sabe, a resistência à venda da Eletrobrás não vem apenas do Legislativo. Até a edição da MP 1.031/21, Jair Bolsonaro tinha colocado mais condições do que defendido sua privatização.

Ao avaliar o panorama atual do País, citando, entre outros pontos, o episódio do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e a mudança no comando da Petrobrás, Salim Mattar não é otimista. “Nós perdemos o foco como país, não vai dar certo, não tem jeito de dar certo. O País precisa de foco para aquilo que é importante para o cidadão”, disse.

Paulo Uebel também não esconde sua decepção com os rumos do governo federal. Segundo o ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, mais do que simplesmente não promover as reformas, o presidente Jair Bolsonaro segue o caminho das administrações petistas. “Isso (a interferência na política de preços da Petrobrás) é uma mudança que vai contra o que foi aprovado nas urnas e aproxima Bolsonaro de práticas que o PT fazia. E isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver”, disse Paulo Uebel ao Estado. Em sua avaliação, o resultado da interferência pode ser a “destruição de valor muito grande da empresa, como vimos durante a gestão do PT”.

O abandono de qualquer imagem de governo reformista se dá num momento em que a aprovação de Jair Bolsonaro caiu para 44%, uma queda de oito pontos em quatro meses, de acordo com a pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA. No período, também diminuiu a avaliação positiva do governo (ótimo e bom) de 41% para 33%. Por diferentes motivos – a irresponsável atuação do governo federal na pandemia é apenas um deles –, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar, ora vejam, que foram enganados.

“O povo é carvão para queimar”: o projeto genocida da “gestão” da pandemia no Brasil

“A população precisa acordar para a dimensão da nossa tragédia”, disse o neurocientista Miguel Nicolelis em entrevista publicada pelo jornal O Globo em 26 de fevereiro. Professor catedrático na Universidade de Duke, nos EUA, ele esteve até recentemente à frente do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para a Covid-19 e, como outros cientistas, vem há meses alertando para o risco de colapso no sistema de saúde do Brasil.

Diferentemente do que ocorreu no início da pandemia – e não saem da memória as imagens das valas abertas às pressas em Manaus, em maio do ano passado –, a situação é mais grave agora, porque o colapso pode ser simultâneo, como na metáfora do jogo de dominó em que uma peça vai sucessivamente derrubando as demais. Nicolelis aponta uma sequência de eventos – as eleições municipais em novembro de 2020, as festas de fim de ano, o carnaval, ainda que sem os tradicionais desfiles e bailes oficiais – como “efeitos sincronizadores” que provocaram o caos atual, diante da falta de coordenação para conter a pandemia. “Agora”, diz ele, “tudo está explodindo ao mesmo tempo”. Os hospitais em várias capitais já ultrapassaram o limite de atendimento, há filas de espera para uma vaga nas UTI (Unidades de Tratamento Intensivo).

Como foi possível chegar a esse ponto?

Foi porque, parafraseando o que dizia o antropólogo Darcy Ribeiro a respeito da crise da educação no Brasil, a atual tragédia sanitária não é uma crise, é um projeto. Uma reportagem do El País Brasil em 21 de janeiro mostrou exatamente isso, a partir de um estudo do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Conectas Direitos Humanos, que pode ser consultado aqui.

O estudo apresenta, em ordem cronológica, a série de normas federais relativas à pandemia, as ações de obstrução às iniciativas dos governos estaduais e municipais e o que classifica como “propaganda contra a saúde pública”, que inclui o discurso negacionista e debochado do Presidente da República, a insistência na defesa de medicação preventiva comprovadamente ineficaz e a disseminação de informações falsas a respeito da doença. É um levantamento que expõe “o embate entre a estratégia de propagação do vírus conduzida de forma sistemática pelo governo federal e as tentativas de resistência dos demais poderes, dos entes federativos, de instituições independentes e da sociedade”.

Exemplo disso foi o veto presidencial, no início de julho do ano passado, a dispositivos da lei que determina medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia, entre os quais “o acesso com urgência a seis serviços gratuitos e periódicos (água potável, materiais de higiene e limpeza, leitos hospitalares e de UTIs, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, materiais informativos sobre a covid-19, e internet nas aldeias); a obrigação da União de distribuir alimentos durante a pandemia, na forma de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas; a extensão a quilombolas, pescadores artesanais e demais povos tradicionais das medidas previstas no plano emergencial”. O veto acabou derrubado pelo Congresso Nacional um mês e meio depois.

Foi também o Congresso que se empenhou em aprovar o auxílio emergencial de R$ 600 – correspondente a pouco mais da metade do salário mínimo e equivalente, ao câmbio atual, a cerca de 90 euros –, que Bolsonaro rejeitava mas acabou capitalizando, o que lhe permitiu manter a popularidade apesar do progressivo aumento do número de mortes. Atualmente, o governo está condicionando a renovação desse auxílio, agora reduzido a menos da metade do valor, à aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional que, se não for alterada, degradará ainda mais a saúde e a educação públicas, pois elimina a obrigação ao investimento mínimo estabelecido pela Constituição para esses dois setores. A tragédia sanitária é, assim, usada para aprofundar o programa de destruição de direitos iniciado já no governo Temer, que assumiu em seguida à derrubada de Dilma Rousseff, em 2016.

Ao mesmo tempo em que minimizava a gravidade da pandemia – “gripezinha”, no dizer do presidente –, o governo tentava ocultar os números de doentes e mortos por covid-19, retardando a divulgação dos dados para evitar que fossem noticiados no principal telejornal do país, e passava a anunciar o número de “recuperados”, para investir numa agenda positiva. A imprensa denunciou a manobra e seis dos principais jornais e sites de jornalismo formaram um consórcio para buscar os números da pandemia junto aos governos estaduais.


Desde o início, para evitar tomar medidas que prejudicassem a economia, Bolsonaro investiu firmemente na defesa da cloroquina, tornando-se ele próprio o principal garoto-propaganda do medicamento, que continua a defender, apesar de todos os estudos sérios demonstrarem não só sua ineficácia como o risco de efeitos colaterais graves.

O presidente demitiu sucessivamente dois ministros da Saúde, por contestarem essa orientação, e convocou o general Eduardo Pazuello – mais um entre os vários militares em postos-chave no governo – para assumir a pasta. Foi sob seu comando que, em janeiro deste ano, durante a tragédia de Manaus – onde uma variante do vírus provocou o recrudescimento do índice de infecções e a falta de oxigênio nos hospitais levou a inúmeras mortes por asfixia –, o ministério lançou o aplicativo TrateCOV, que permitiria acelerar o diagnóstico e indicar o tal “tratamento precoce”, e que invariavelmente receitava o “kit Covid” – uma combinação de remédios que incluía a cloroquina – mesmo para quem relatasse uma simples diarreia ou perda de apetite.

O aplicativo não durou nem uma semana e teve de ser retirado do ar, mas o “kit Covid” continua a ser adotado, tanto por médicos quanto por pessoas influenciadas por essa propaganda, convencidas de que estão se protegendo e de que, na dúvida, é melhor fazer alguma coisa do que nada. No dia 23 de fevereiro, oito dos principais jornais do país publicaram um informe publicitário de meia página de um grupo chamado “Médicos pela Vida”, que insistem no tal “tratamento precoce”, usando informações falsas para defender sua tese. É de se indagar por que esses jornais aceitaram abrir espaço para uma publicidade enganosa, se já publicaram tantas notícias em contrário.

Mas a estratégia da aposta no “tratamento precoce” é clara: se para a doença há remédio, se esse remédio pode inclusive prevenir a doença, não há motivo para não se levar uma vida normal. O próprio presidente, ao promover e participar de aglomerações, frequentemente sem máscara, estimula esse comportamento. É preciso “enfrentar o vírus de peito aberto”, “feito homem, pô!”, o Brasil não pode ser “um país de maricas”: o tom é sempre o de um discurso afirmativo, que transmite autoconfiança, baseado na virilidade do macho que não teme o perigo. E depois, como a maioria dos mais jovens não manifesta sintomas, é fácil convencê-los de que não há risco.

Bolsonaro martelou a ideia de que “você não vai desenvolver a doença, então não tem problema”, e esse elogio do individualismo, essa ausência absoluta de preocupação com o outro – porque obviamente uma pessoa assintomática pode transmitir o vírus a quem não terá a mesma resistência – se traduz até hoje em praias, bares e hospitais lotados. Entre os mais pobres, que já vivem aglomerados em moradias exíguas e precárias e se expõem diariamente ao risco de contágio viajando enlatados nos transportes públicos, muitos, sobretudo os mais jovens, não veem motivos para abrir mão de se divertir, nos bailes e festas que costumavam frequentar antes da pandemia.

Então, no mundo todo, começa a surgir a famosa luz no fim do túnel, com a produção de vacinas eficazes em tempo recorde. Mesmo Trump, que no começo também desdenhava da gravidade da situação, sugeria tratamentos esdrúxulos e levantava suspeitas sobre o “vírus chinês”, mudou de atitude diante do desenvolvimento dos imunizantes. Bolsonaro, não. Rejeitou sistematicamente todas as possibilidades de acordo com laboratórios farmacêuticos e levantou suspeitas sobre os terríveis efeitos colaterais que as vacinas poderiam provocar: sabe lá o que estão enfiando aí no seu corpo? Já pensou se você vira jacaré? Nada como mexer com os medos arcaicos do povo ignorante. “Vacina, aqui, não!”, repetiam as pessoas, batendo no braço e olhando fixamente para a câmera, no vídeo que as redes bolsonaristas divulgaram, junto com outro que rejeitava o uso da máscara “em nome da liberdade”.

O Brasil conta com um sistema de saúde pública universal que, apesar de precarizado, é o que tem garantido o atendimento da população durante a pandemia, e tem tradição de vacinação em massa, com dois centros de excelência na produção de imunizantes, a Fiocruz (um órgão federal) e o Instituto Butantan (do estado de São Paulo).

De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o país tem 162,8 milhões de habitantes com mais de 18 anos. A capacidade de vacinação do sistema, segundo o sanitarista Gonçalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é de 60 milhões de pessoas por mês.

Não fosse a atuação deletéria do governo federal, o Brasil poderia ter assegurado antecipadamente um estoque de vacinas que permitisse iniciar a imunização da população já em fins do ano passado, e a compra de insumos possibilitaria ampliar rapidamente a produção local, hoje ainda restrita ao esforço do Instituto Butantan, que garantiu 10 dos 12 milhões de doses disponíveis até o momento. No período de um mês – desde o dia 17 de janeiro, quando começou a vacinação no país –, apenas 6,5 milhões de pessoas receberam a primeira dose. Em várias cidades, como o Rio de Janeiro, o calendário divulgado no fim do mês passado teve de ser interrompido, por falta de vacinas.

No início da pandemia – que sempre minimizou como “uma pequena crise”, “uma fantasia” que não era “tudo isso que a grande mídia propala pelo mundo todo” –, Bolsonaro gravou um vídeo em que comparava a situação da covid-19 com a da gripe H1N1. Dizia que menos de 800 pessoas morreram por aquela doença no país no ano anterior e que “a previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos no tocante ao coronavírus”.

Agora já são mais de 250 mil mortos. A média diária tem oscilado entre os mil e 1.300 e, a 25 de fevereiro, chegou ao recorde de 1.582.

O que fez Bolsonaro nesse dia? Em sua habitual “live” das quintas-feiras, citou “uma universidade alemã” – naturalmente, não disse qual – que teria produzido um estudo sobre os “efeitos colaterais” do uso de máscaras.

A população vai acordar para a dimensão da tragédia? A população está ligada nos paredões do Big Brother, está nas ruas comemorando mais um campeonato do Flamengo. Com um governo que jamais promoveu uma campanha nacional de esclarecimento e, pelo contrário, sempre apostou na desinformação e no caos, é possível pensar que a população acorde? A pilha de cadáveres vai crescendo mas o Brasil é grande demais, são 212 milhões de habitantes, o que significam 250 mil mortos diante disso? As pessoas morrem porque foi a vontade de Deus, porque já iam morrer mesmo, porque todo mundo vai morrer um dia.

Como afirmou Nicolelis em sua entrevista, “o Brasil é o maior laboratório a céu aberto para ver o que acontece com o vírus correndo solto”. Necessitaria decretar uma quarentena nacional urgentemente, por pelo menos três semanas, para tentar conter o caos. Governadores e prefeitos começaram a investir nessa medida, mas Bolsonaro os confrontou com a ameaça de que, nesse caso, eles teriam de se responsabilizar pelo pagamento do futuro auxílio emergencial. Continua a promover aglomerações e a jogar o povo contra a adoção do confinamento, em nome do direito de trabalhar.

Darcy Ribeiro dizia que a elite brasileira, descendente do senhor de engenho que enxergava o escravo como “carvão que se queima para a produção”, se comportava de acordo com essa herança. Via o povo como “carvão para queimar”.

Foi esta elite que apoiou para a presidência do país um deputado que exaltou um torturador ao votar pelo impeachment de Dilma e não se cansa de repetir que seu ofício é matar.

Não admira que, nesta pandemia, o carvão não pare de queimar.