quarta-feira, 1 de maio de 2019

Gente fora do mapa


Mora na filosofia

Devido ao suicídio de Getúlio Vargas no ano anterior, um presidente de enorme prestígio popular, o carnaval de 1955 era esperado com muito baixo-astral, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. O povo foi pra rua se divertir e a festa pegou fogo, com muitos sambas e marchinhas de sucesso. Foi o caso de Mora na filosofia, de autoria de Monsueto Menezes com Arnaldo Passos (parceiro de Geraldo Pereira), na voz de Marlene.

Regravado na década de 1970, no LP Transa, por Caetano Veloso, com um arranjo espetacular de Jards Macalé, é ainda hoje considerado um dos mais belos sambas da história da nossa música popular: “Eu vou lhe dar a decisão / Botei na balança/ Você não pesou/ Botei na peneira / Você não passou / Mora na filosofia / Pra que rimar/Amor e dor”. Aquele carnaval foi uma lição de que “a arte existe porque a vida não basta”, como diria mais tarde o poeta Ferreira Gullar.



Judeu de origem sefardita, o antropólogo, sociólogo e filósofo Edgar Morin, cujo verdadeiro sobrenome era Nahoum, foi um herói da Resistência francesa durante a II Guerra Mundial, o que lhe valeu as tarefas de adido ao Estado-maior do Primeiro Exército francês na Alemanha ocupada, em 1945. Sua principal obra são os seis volumes de O método, no qual questiona o fechamento ideológico e paradigmático das ciências. Diante dos problemas complexos que as sociedades contemporâneas enfrentam, dizia, em meados da década de 1970, apenas estudos de caráter interpolitransdisciplinar poderiam resultar em análises satisfatórias de tais complexidades. “Somos complexos”, dizia.

Para Morin, o conhecimento complexo não está limitado à ciência, pois há na literatura, na poesia, nas artes, um profundo conhecimento. Todas as grandes obras de arte possuem um profundo pensamento sobre a vida. Segundo o próprio Morin, devemos romper com a noção de ter as artes de um lado e o pensamento científico do outro. Certo estava Paulo Vanzolini, o dublê de cientista e sambista, autor de Ronda, o hino na noite paulista, entre outras canções antológicas: “De noite eu rondo a cidade / A lhe procurar sem encontrar / No meio de olhares espio / Em todos os bares você não está / Volto pra casa abatida / Desencantada da vida / O sonho alegria me dá / Nele você está”.

Compositor de Volta por cima e Na boca da noite, Vanzolini era zoólogo e foi um dos idealizadores da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Com seu trabalho, a USP aumentou a coleção de répteis do seu Museu de Zoologia de cerca de 1,2 mil para 230 mil exemplares. Com o geógrafo Aziz Ab’Saber e com o norte-americano Ernest Williams, desenvolveu a Teoria do Refúgio em suas expedições pela Amazônia.

A mais recente polêmica protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro é sobre o ensino de filosofia, sociologia e história nas universidades, segundo ele, um desperdício de recursos públicos, diante das deficiências do país em outras áreas, como engenharia, medicina e veterinária. Realmente, existe um sub-investimento nessas áreas, que exigem muito mais infraestrutura para a formação dos alunos. A maioria das faculdades não dispõe de recursos materiais nem humanos do nível, por exemplo, do Instituto Militar de Engenharia (IME), do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), da Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Por ironia, as ideias defendidas por Bolsonaro estão ancoradas na filosofia medieval: a escolástica. Seu expoente foi São Tomás de Aquino, cuja teologia tinha por objetivo provar a existência de Deus ou de seus atributos por modos puramente filosóficos. O “tomismo” conciliou as posições e os métodos de Aristóteles com o cristianismo, tornando-se a corrente filosófica oficial da Igreja Católica na Idade Média, com influência na ética, na teoria política e na metafísica, até o Renascimento e o Iluminismo.

Tomás de Aquino foi o grande teólogo da guerra (justa por uma boa causa, se declarada por uma autoridade legítima e com objetivo de alcançar a paz). Muito criticado por Maquiavel, o “tomismo” (aristotelismo cristão) foi uma ruptura com o pensamento de Platão, aquele filósofo da fábula do homem da caverna, que enxergava as sombras na escuridão, mas quando vê a luz fica cego e, ao voltar pra caverna, não enxerga mais. A essência da civilização é o humanismo. A ciência sem a ética, a antropologia e a sociologia é um perigo. Exemplos não faltam, como o de Josep Mengele, em Auschwitz.

A 'blitzkrieg' dos ideólogos

Os tanques da ala ideológica do governo Bolsonaro avançam em todas as áreas a uma velocidade que faria inveja às divisões panzer do general Heinz Guderian. O movimento de pinça é comandado diretamente pelo presidente ou por seus filhos interpostos. Essa ofensiva adquiriu ares de grande operação, nos últimos dias, tendo como objetivo tático o cerco e aniquilamento do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, Ministro da Secretaria de Governo, e como objetivo estratégico assegurar o caráter permanente da “revolução conservadora”, como defende o guru Olavo de Carvalho.

Vamos aos fatos.

Na Educação, o novo ministro Abraham Weintraub confirma que entrou no teatro de operações para retirar do papel a agenda ideológica, coisa que Ricardo Vélez foi incapaz de fazer. Weintraub ameaça cortar verbas de “universidade que promover balbúrdia”. Por balbúrdia entenda-se “manifestações políticas e festas inadequadas”. No primeiro momento três universidades federais (UNB, UFF e UFBA) sofreram contingenciamento de 30% em suas verbas, sem que o ministro tenha especificado o motivo. Poucas horas após a decisão, expandiu a medida para todas as universidades federais, ainda sem motivo concreto.

O filtro ideológico pôs na alça de mira os cursos de filosofia e sociologia, que receberão menos verbas. Ele nos faz lembrar de desatinos cometidos na História como os que levaram a se queimar -em praça pública- livros de filosofia, história, sociologia, literatura.

No meio ambiente, o presidente em vez de mediar conflitos entre o pessoal do agronegócio e o da sustentabilidade, tomou um lado. Mandou fazer uma limpa no Ibama e no Instituto Chico Mendes, elegendo os agentes de fiscalização como inimigos da pátria. Em uma feira do agronegócio anunciou que encaminhará um Projeto de Lei que dará direito de atirar a quem tiver sua terra invadida. É uma clara violação da Constituição, pois o excludente de ilicitude se aplica em defesa da vida. Jamais em defesa da propriedade.

O presidente vai além de respaldar seus radicais. Ele mesmo toma iniciativas na linha de aprofundar a “revolução conservadora”, como aconteceu ao censurar o conteúdo mercadológico de uma peça publicitária do Banco do Brasil, pautada na diversidade.

Quando não é ele, são seus filhos. A bola da vez é o general Santos Cruz, que enfrenta uma guerra promovida por Carlos Bolsonaro. Até os peixes do Lago Paranoá sabem que Carlos diz nas redes sociais aquilo que o pai não pode dizer publicamente. O general Santos Cruz é um moderado. Por isso mesmo tem sido um obstáculo para que a ala talibã do bolsonarismo tenha em mãos a estratégica Secretaria de Comunicação.

A blitzkrieg do conservadorismo se explica pela mudança de atitude de Jair Bolsonaro, na arbitragem do conflito entre os pragmáticos e ideológicos. Em um primeiro momento, ele ouvia muito a voz moderada dos militares do seu governo, como aconteceu em relação à Venezuela e à transferência da embaixada para Jerusalém.

Nos últimos tempos o presidente deixou de ser um mediador do conflito das duas alas de seu governo para tomar partido em favor dos ideológicos. Até porque ele é um deles. E pode estar fazendo uma leitura torta de sua eleição, acreditando que ela se deu em decorrência da agenda ultra-direitista.
Priorizar essa agenda é um equívoco que pode lhe custar caro. A boa estratégia militar recomenda não se abrir várias frentes. Em vez de concentrar forças para ganhar a batalha da Previdência, o presidente desguarnece seus flancos ao dispersar suas forças e gastar energia em uma pauta identitária que não é a do país.

Ademais, como a história já demonstrou, toda blitzkrieg tem sempre a sua Stalingrado.

Saudades das cavernas

O tempo é dos reacionários. Falo daquelas "mentes naufragadas", de que falava Mark Lilla no seu livro, e para as quais o presente em que vivemos é tão precário, tão imundo, tão cruel que o melhor é retornar ao passado.

Antigamente, dizem eles, tudo era mais simples, mais ordenado, mais perfeito. Como os revolucionários que tanto abominam, os reacionários são iguais a eles e podem estar à esquerda e à direita, entre ateus ou fervorosos crentes.

Podem ser ambientalistas radicais (não confundir com cientistas) que, seguindo uma criança sueca aparentemente perturbada (Greta Thunberg), defendem um retorno às cavernas para salvar o planeta.

Podem ser nacionalistas extremistas que desprezam a democracia pluralista e sonham com formas autoritárias de política.

Sem esquecer o pessoal das arábias, que procura recriar, pela força das bombas e das decapitações, um novo Califado.

É contra essa moda que se insurge o filósofo francês Michel Serres em ensaio recente. Serres, do alto dos seus quase 90 anos, publicou "Antes é que Era Bom!" (edição portuguesa pela Guerra & Paz), ensaio de uma ironia fina, no qual a autobiografia se mistura com a filosofia. Antes é que era bom?

Sem dúvida, escreve Serres. Para ficarmos apenas no século 20, esse tempo arcádico para onde os reacionários querem voltar, havia grandes estadistas, como Hitler ou Stálin, Mao ou Pol Pot.

E havia também paz, muita paz, ao contrário das barbáries de hoje. Como não recordar, com um sorriso nostálgico, os anos de 1914 ou 1939? Como esquecer os piqueniques em Hiroshima ou Nagasaki? Como não sonhar com os tempos felizes no Gulag ou em Auschwitz?

Mas Michel Serres não se fica pela grande história. A pequena também tem espaço nas suas meditações rezingas. Vejamos.

Antigamente, quando tudo era bom, vivia-se longamente até aos 35 ou 40 anos —e uma família tinha que ter cinco filhos, às vezes mais, na esperança de conservar dois.

Não havia problemas na previdência social porque, em rigor, não havia previdência social. Nem previdência social, nem água encanada, nem sistema de descarga, nem antibióticos, nem anestesia. Uma ida ao dentista era uma experiência deliciosa.

E se o leitor, indignado, acusa Michel Serres de não ser sensível às tribulações do presente —o ambiente, a condição da mulher, a alimentação artificial, as redes sociais—, o pobre filósofo não tem defesa possível para cada um desses males.

A revolução industrial ou o regime de semiescravidão em que viviam as mulheres não têm paralelo com a trágica situação atual.

Redes sociais? O mundo era sem dúvida melhor quando as comunicações duravam semanas (e não segundos) —e as viagens duravam meses (e não horas).

E sobre os produtos naturais que era possível consumir diretamente da origem, sem controle sanitário de qualquer espécie, Michel Serres, filho de agricultores, suspira: era diarreia em família seis vezes por ano! Que interessava a febre aftosa quando era possível beber leite acabado de mungir de uma vaca bucólica e enferma?

Eu sei, eu sei: nunca devemos confundir progresso material com progresso moral. Se, como dizem os hipocondríacos, a saúde é uma fase transitória que não augura nada de bom, o momento que vivemos no Ocidente, de relativo conforto e acalmia, um dia será recordado como um "intermezzo" na história da humanidade. E essa história, como alguém dizia, sempre foi a história dos crimes contra a humanidade.

Mas, por outro lado, como negar que esse "intermezzo" existe? E que, material e até moralmente, nunca estivemos tão bem --na longevidade, na alimentação, no trabalho, no lazer? E até na política, sim, sobretudo quando nos comparamos com os desgraçados fantasmas que cresceram e morreram às ordens de Lênin, Franco ou Ceausescu?

Os reacionários que enchem a boca com a história desconhecem-na grosseiramente. E eu, depois de ler Michel Serres, imagino como seria terapêutico construir uma Disneyland só para eles —um resort gigantesco onde, voluntariamente, os reacionários poderiam experimentar os prazeres do passado com que tanto sonham.

Viveriam 24 horas sob vigilância policial. Trabalhariam a terra com as mãos, ou com instrumentos tão rudimentares como as mãos, e não com as frescuras da tecnologia. Os cuidados de saúde estariam a cargo de um barbeiro —ou, então, de um médico especializado em sangrias ou lobotomias.

E as mulheres reacionárias, especialmente elas, viveriam submetidas aos caprichos dos pais, dos maridos, dos irmãos, sem direitos cívicos de qualquer espécie. Se estivessem em plena menopausa, era hospício para elas.

Ah, já me esquecia: a alimentação seria "autêntica". Como negar aos nostálgicos os prazeres de uma boa diarreia?
João Pereira Coutinho

Pensamento do Dia


Sem luz no fim do túnel

Os militares empregados no governo já concluíram que o presidente Jair Bolsonaro não dará conta do recado. Ele foi um sindicalista durante seus sete mandatos como deputado federal. Jamais passou disso. E na Câmara nada aprendeu.

Eles o apoiaram porque era o único candidato com chances reais de impedir a volta do PT ao poder. Continuarão a apoiar mais preocupados em evitar o desmanche do governo do que esperançosos de que no final acabará dando certo.

A desesperança da farda contamina políticos de todos os partidos, até do PSL de Bolsonaro, e os donos do dinheiro no país. Esses estão cada vez mais aflitos com a possibilidade de que o Congresso aprove uma reforma da Previdência raquítica.

Por sua vez, deputados e senadores não querem dar a Bolsonaro uma reforma robusta. Não confiam nele. Não o veem disposto a compartilhar o poder. Temem ser ainda mais marginalizados caso aprovem a reforma do jeito que ela lhes foi proposta.

Tudo que vai mal sempre pode piorar. E se Carlos Bolsonaro continuar como dono da voz e da senha do pai nas redes sociais? E se ele não parar de fazer campanha para derrubar o vice-presidente Mourão Filho?

E se chegar a um ponto, como já admitiu o próprio Mourão, de ele renunciar o cargo como reação às hostilidades do filho mimado pelo pai? E se o Ministério Público Federal do Rio puser em risco o mandato do senador Flávio Bolsonaro?<

E se o próprio Bolsonaro, o pai, que já disse não ter nascido para ser presidente, que se revela às vezes entediado ou irritado com sua rotina, se ele, um dia, resolver largar tudo pelo meio e renunciar ao cargo? Dizem que os filhos não deixarão.

O ministro Paulo Guedes, da Economia, é o fiador deste governo junto ao mercado. Mas é também um temperamental, talvez menos do que Bolsonaro. Se o Congresso não lhe der o que quer e do tamanho que quer poderá ir embora.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, não irá embora mesmo que seja contrariado. Despiu a toga acreditando que irá retomá-la em breve e numa posição superior a que tinha. Só está à espera da ocasião.

Procura-se quem acredite que este governo, do jeito que vai, será bem-sucedido.

Há cego para qualquer lado

Alguns bolsonaristas são tão cegos quanto todos os petistas, né? Não conseguem entender que você pode fazer uma ponderação sem querer destruir. Essa necessidade de defender todas as posições, de sempre ver o seu líder com razão…. isso é um comportamento muito petista. É muito ruim. 
Janaina Paschoal (PSL-SP))

Por um choque de conexão!

O Brasil Oficial precisa um “choque de conexão”. Tem de ser radicalmente plugado ao Brasil Real. Hoje este só existe em véspera de eleição. Está excluído de tudo para além do momento em que deposita o voto na urna. “As reformas” são uma novela sem fim cujos capítulos, sempre “decisivos”, o país assiste à distância ha gerações. “Desta vez vai”! Mas o roteiro é exclusivo do grupo da privilegiatura momentaneamente investido do Poder Executivo, vivendo o papel para ele inédito de pagador e não apenas de gerador de contas, mais os seus interlocutores únicos: o resto da privilegiatura. Pelo País Real, feito touro de arena, entra no picadeiro sozinho, para ser desmontado, o ministro da Economia da vez. No final, todos “cedem”, docemente constrangidos, aos seus próprios interesses porque a condição de “governo” é temporária, os empregos e as aposentadorias públicas é que são para sempre.

Não é que esteja faltando convencer alguém. Não há mais o que discutir. Não há mais o que argumentar. Todo mundo está convencido não só da iniquidade criminosa da situação como, a esta altura, da iminência do desastre, mas Miami e Lisboa são logo alí.


Falta entrar nesse debate quem tem tido o sangue chupado. Quem vai ter de continuar aqui. O Brasil sonha esquerda x direita mas acorda nobreza x plebeu. “Velha política” é a de político sem patrão, intocável. “Nova política” só quando todo mundo souber quem pôs cada um deles onde está e eles passarem a ter medo que os seus eleitores os tirem de lá todo santo dia; só quando formos nós a dar a ultima palavra sobre as leis que aceitamos acatar. Esperar que uma nova política nasça de mais regulamentos baixados pela velha é ilusão de noiva.

Estão aí as Forças Armadas para não nos deixar mentir. O orçamento delas já era uma miniatura do orçamento do Brasil. ¾ do dinheiro vai pra salário. R$ 81,1 bi de 107,7 bi. O gasto com reservistas é maior que com militares da ativa porque lá, como no resto do serviço público, os aposentados, sempre precoces, são remunerados pelo provento máximo. Nas FAs eles custam, por enquanto, R$ 46,2 bi por ano contra contribuições previdenciárias de R$ 2,4 bi. O resto paga o favelão nacional que não se aposenta nunca. O que sobra para investimento em equipamentos de defesa, que é a parte que nos cabe nesse latifúndio, é o mesmo que sobra para investimento em infraestrutura, educação, saude e segurança públicas na União, nos estados e nos municípios. Estão orçados para este ano R$ 9,8 bi, 16% menos que em 2018, número que irá de menos em menos até o amargo fim empurrado pelas fórmulas de “reajustes” automáticos que a privilegiatura ativa ou aposentada se atribui como “direito adquirido”, se nada mudar muito nesse meio tempo.

E já sabemos que vai mudar, só que para pior. Como toda a discussão se dá exclusivamente entre eles e com base exclusivamente nos parâmetros deles, não será corrigida a pornográfica defasagem para cima do salário inicial de R$ 18 mil do ascensorista do Congresso em relação à realidade do favelão nacional. Será, sim, corrigida a defasagem para baixo do salário do general em relação ao dos ascensoristas do Congresso.

A “alternativa militar” na sua vez no poder após 34 anos de ostracismo resolveu o seu, portanto. Tomou distância do Brasil plebeu e está agora pau-a-pau com a privilegiatura.

E o desemprego? A economia paralisada? A guerra civil que mais mata no mundo?

Quem?! Como?! Aonde?!

A gente do poder tem mais o que fazer. Mas se valer olhar pelo buraco da fechadura do banheiro, é bom lembrar, nem o papa resiste. Carlos Bolsonaro solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente da republica escancarado. Anda sempre à beira de um ataque de nervos. O dedo puxa o gatilho antes da participação do cérebro. Com ele tudo logo vira um enredo “família Bórgia”. Na equipe, no palácio, no Brasil, no mundo, tudo é uma só e mesma conspiração. Com o filósofo esotérico esbravejando por cima essa “nóia” toda ganha um endosso “teórico”. E então, dia sim dia não, o ratinho que sai de um buraquinho vira um ratazão, vira um tigre-leão.

Nos albores da internet ganhou enorme notoriedade o “email-bomba”. O cara chegava em casa vindo do boteco e começava a “desabafar por escrito” no computador. Vomitava tudo de mais azedo que tinha atravessado na garganta desde priscas eras, como fazia antes de si para si. Só que no final, “uósh”, lá ia o bomba para o computador de alguém onde ficava gravado para todo o sempre para ser lido, relido e cem vezes amargado. E de lá vinha outro do mesmo calibre, vazado naqueles termos que nos sobem à veneta na hora da raiva mas que se repetidos em voz alta não passariam na polícia do bom senso.

As regras de convivência, a ceriônia e o mínimo de polidez exigidos no trato social até pelos indivíduos mais toscos, foram moídas pela internet onde o “convívio” se dá entre solidões. Você, o semi-analfabeto, o “noiado”, todo mundo conversa na rede sozinho no seu canto, trancado no banheiro, sem ouvir o que ele próprio está dizendo, sem ver a reação das pessoas na hora, sem o concurso do tom de voz, da expressão do rosto, do gestual, enfim, que dá a cor e o peso ao que é dito e ouvido, sem esclarecer os mal entendidos. O que passa de um computador para outro nessas discussões é o texto sem contexto nem revisão. Despido. Árido. De pedra.

O resultado é a guerra. Mundial e de todos contra todos, cada vez mais. Babel. Coisa de Exu.

Isso arrebentou tantas amizades, tantas empresas e tantas famílias que um dos primeiros aplicativos que fez sucesso na lojinha da Apple foi um que procurava sinais de excesso de substâncias intoxicantes no texto dos emails digitados após o anoitecer (erros de grafia, palavrões e etc.) e aplicava um bom questionário ao seu autor buscando aferir o grau de consciência critica que lhe restava antes de libera-lo para envio.

Sumiu. E pelo que está pintando, vai levar 5 gerações para o 03 entender a importância fundamental dos ritos do poder. O diabo é que o Brasil não tem nem mais 5 minutos pra perder.

Imagem do Dia


Astrólogos, bruxos e cartomantes

Nascido no século passado e sendo inevitavelmente marcado por essa época, padres, cartomantes, videntes, fantasmas e conspirações fazem parte da minha vida.

Tinham-se empregadas (conhecidas apenas pelo primeiro nome e, em geral, por um apelido de duas sílabas), faziam-se compras em armazéns e quitandas nas quais a “dona da casa” era “freguesa”; e rezava-se numa Igreja cujo padre era em geral coadjuvado por um mago, um médium, uma cartomante ou um astrólogo.


Os ritos de passagem oficiais e indispensáveis (batismo, primeira comunhão, casamento, ritos funerários) eram realizados dentro do catolicismo, mas o outro mundo era compartilhado e dividido. Noto que o protestantismo era, ao contrário de hoje em dia, ausente. O sagrado dominante era católico romano, mas os paradoxos, os acidentes da vida — essa esfera que de modo muito claro inflige um limite ao lado rotineiro — eram complementados por cartomantes, astrólogos e médiuns e outros especialistas em “ciências ocultas e letras apagadas”. As confusões do presente e um futuro duvidoso pertenciam aos astrólogos, bruxos e cartomantes.

Minha mãe dizia que era católica, mas acreditava no espiritismo. Penso que não é um exagero afirmar que essa duplicidade de códigos destinados ao entendimento do futuro e do sofrimento é parte das origens e da formação do Brasil.

Nascemos de uma colônia semiabandonada, mas, num século 19 revolucionário e napoleônico, passamos de periferia a centro do Reino de Portugal e Algarves. A vinda da família real e da Corte para o Rio de Janeiro teve profundas consequências socioculturais. Houve uma inversão geopolítica singular em paralelo a uma visão íntima e realista da realeza e da aristocracia. Esse “futuro” imprevisível para historiadores e jornalistas, era — porém — previsível para bruxos e astrólogos.

O oficial e o rotineiro sempre estiveram em combate complementar entre nós — e cada qual tinha os seus teólogos e sacerdotes. No livro testemunho de Manuel Antônio de Almeida, “Memórias de um Sargento de Milícias” (de 1855) —, a trama é movida pelo padre da Sé, por um feiticeiro do Mangue, pelo Leonardo Pataca, um meirinho, por fidalgos, por uma viúva rica e por uma cigana. O Major Vidigal faz — como ensina Antônio Candido num ensaio clássico — um contraponto — uma espécie de polícia e juiz daquele sistema.

Na nossa casa — formada por uma família de três gerações com seus criados — o menino testemunhou encontros com espíritos por meio de um copo imantado que recebia suas mensagens. As almas do outro mundo que assombravam pedindo rezas, uma tia solteirona. Já as entidades acessadas por meio do copo eram todas favoráveis aos projetos da mãe. Ao lado disso, oratório da casa pululava de santos protetores tal como nos “lares” dos antigos romanos.

A polarização entre nobres e comuns (teoricamente brancos ou mestiços) e ex-escravos negros — até hoje vigente, mas ameaçada por desarmonias políticas, dificultava um sistema submetido a uma modernização capitalista personalizada e aparelhada e conduzia sempre a desfechos imprevisíveis. Nele, o fake, o fuxico, as anedotas, as intrigas enfeixadas por múltiplas teorias conspiratórias, revelam uma sociedade na qual o código pessoal do saber com quem se fala (que vive com privilégio e o aristocrático) tem como alternativa um sistema impessoal ainda visto como uma ameaça desumanizadora justo quando as reformas cidadãs tornam-se inexoráveis.

As desavenças entre matrizes largamente inconscientes sempre foram explicadas por magos, astrólogos, cartomantes e bruxos, hoje relativamente substituídos por “especialistas”, cronistas e comentadores — esses mediadores entre os fatos e o seu significado. A grande questão sempre foi a de saber se o mundo tem finalidade ou se o acaso é o grande senhor, cabendo a nós o dever da construção e da compreensão. Ou se o Brasil presta ou está condenado a uma autoproclamada ruína.

PS: Declaro o meu repúdio à ideia de suprimir sociologia, antropologia e outras disciplinas dos saberes humanos das salas de aula. Sem elas, corremos o risco de criar um mundo no qual uma fulgurante irracionalidade (que já envolve o governo Bolsonaro) vai se acasalar a uma profunda ignorância de nós mesmos. O resultado é a burrice — essa matéria-prima das censuras.

Consolo presidencial

Se fala em 12 milhões de desempregados. Sim, eu acho que é muito mais do que isso. Desculpa IBGE, mas é muito mais do que isso
Jair Bolsonaro, presidente

Ministro diz que trocará universidade por creche

A troca de um 'olavete' (Ricardo Vélez) por outro 'olavete' (Abraham Weintraub) demonstrou que nada de mal aconteceu no Ministério da Educação que não seja esplêndido diante do que ainda está por ocorrer. O novo ministro inaugurou uma cruzada contra as universidades. Começou cortando verbas. Terminou avisando que trocará cadeiras no ensino superior por vagas nas creches.

Primeiro, Weintraub mandou passar na lâmica 30% das verbas de três instituições: Universidade de Brasília, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal Fluminense. Por quê? Não gostou de manifestações supostamente realizadas nas escolas.

O ministro declarou ao Estadão: "Universidades que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia terão verbas reduzidas."Hã?!? "A universidade deve estar com sobra de dinheiro para fazer bagunça e evento ridículo". Que bagunça? "Sem-terra dentro do campus, gente pelada dentro do campus". Hummmm.



Ouviram-se muitos protestos. Em reação, Weintraub mandou estender o corte de 30% a todas as universidades. Encarregado de explicar o esquartejamento orçamentário, o secretário de Educação do MEC trocou o critério da "bagunça" ideológica pela alegação de penúria fiscal: "São 30% de forma isonômica para todas as universidades no segundo semestre, que pode ser reavaliado dado um cenário econômico positivo que a gente está esperando."

Na noite de terça-feira, Weintraub deu demonstrações de que tomou gosto pela polêmica. Levou ao ar nas redes sociais um vídeo no qual anuncia a intenção de retirar verbas do ensino superior para aplicar no ensino fundamental. Sem explicar de onde tirou as cifras, disse que o custo de um aluno de graduação (R$ 30 mil por ano) é muito superior ao de uma vaga numa creche (R$ 3 mil anuais).

Além de não especificar a origem dos números que manuseou. Weintraub não se deu conta de que comparou abacaxi com abóbora. O custo do universitário inclui coisas que um aluno de creche dispensa —de hospitais universitários a laboratórios e professores no topo da carreira.

Triunfante, Weintraub jactou-se de sua futura realização: "Para cada aluno de graduação que eu coloco na faculdade, eu poderia trazer dez crianças para uma creche. Crianças que geralmente são mais humildes, mais pobres, mais carentes, e que, hoje, não têm creches para elas. O que você faria no meu lugar?".

Quando um sujeito se considera um gênio, há três possibilidades: trata-se de um ignorante, de uma enganação ou de um gênio mesmo. Bolsonaro parece convencido de que acomodou um gênio na pasta da Educação, pois reproduziu o vídeo do ministro nas suas próprias redes sociais. Mas a pergunta de Weintraub continua no ar: "O que você faria no meu lugar?" A imaginação é o limite.

Você também, Portugal?

Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa deram pedras para serem jogadas em estudantes brasileiros, desdenhosamente chamados de “zucas”. O fato ocorreu há alguns dias e o mais grave é que, em vez de ser visto como um ato de racismo e xenofobia em um momento em que cresce na Europa a cizânia de novos nazismos e a intolerâncias contra os diferentes, foi considerado pelas autoridades da universidade como pouco menos que uma brincadeira. E tudo se limitou a uma “investigação disciplinar” contra os “engraçadinhos”.

Uma das alunas brasileiras que se consideraram ofendidas, Maria Eduardo Calado, de 24 anos, disse ao jornal O Globo: “Estamos vivendo muito ódio e as pessoas acham que isso é normal”. E a juíza brasileira Daniele Hampe, que faz graduação na mencionada universidade, disse que não se tratou de uma brincadeira, mas de “uma incitação à violência, como todos puderam ver”.

A notícia da ideia de distribuir pedras colocadas em um cesto na entrada da universidade para lançá-las contra os colegas brasileiros ainda teve o sarcasmo de anunciar que “as pedras eram grátis”. E a Faculdade de Direito não condenou explicitamente esse gesto de desprezo pelos estudantes brasileiros.

Pessoalmente, a notícia me chocou duplamente, porque considero que neste momento Portugal, com o seu Governo progressista e social, é uma ilha na Europa, em que cresce a extrema direita que quer voltar aos tempos das guerras entre irmãos e cerceia os direitos humanos e as liberdades conquistadas com tanto sacrifício e tanto sangue.

No Brasil, hoje, Portugal é visto como uma meca em que milhões de jovens colocam os olhos. Brasileiros. Encontrei muitos deles que me disseram com olhos de alegria, que seu “sonho é poder ir trabalhar em Portugal”. Eles veem essa meca — ao lado do Brasil de hoje, atingido pela falta de oportunidades e pela caça às bruxas da intolerância — como uma ilha de paz.

Que esses jovens que conseguem ir estudar em universidades da importância da Faculdade de Direito de Lisboa, ao chegarem ali encontrem na porta da universidade uma caixa cheia de pedras, que os alunos portugueses oferecem “grátis” para serem jogadas contra eles, o mínimo que podem sentir é a profunda frustração de terem sido enganados. Essas pedras, mesmo sem usá-las, já haviam feito sangrar seus sonhos.

Não, não era e nem poderia ser uma brincadeira e esses estudantes mereciam no mínimo a expulsão da faculdade. O silêncio cúmplice das autoridades acadêmicas, ao que parece por motivos políticos de eleições dentro da universidade, é tão ou mais grave do que o silêncio dos alunos xenófobos.

A universidade, já em sua etimologia que evoca o “universal”, sempre foi o lugar onde todas as liberdades são semeadas e cultivadas, onde todos os estudantes do mundo têm acolhida, onde todo conhecimento humano pode ser cultivado em liberdade. Quando, por outro lado, se torna um antro de ideologias e discriminações, acaba profanando sua própria essência e razão de ser.

A “brincadeira” sangrenta dos estudantes de Direito portugueses contra seus irmãos brasileiros é ainda mais grave por causa do simbolismo que a envolve. Qualquer universitário deve saber que uma caixa de pedras, preparadas para serem lançadas em alguém, não pode deixar de evocar uma das formas de castigo mais brutais e sangrentas desde os tempos mais antigos, como a morte por lapidação da qual só restam vestígios em alguns países da África, da Ásia e do Oriente Médio. Foi considerada uma das expressões mais bárbaras que a humanidade foi capaz de conceber para tirar a vida. Vi a foto da caixa com as pedras dadas para serem atiradas contra os estudantes brasileiros e me deram um calafrio. Tinham a medida exata que ainda hoje se exige para esse espetáculo macabro, para acertar as vítimas, geralmente mulheres. Não devem ser grandes demais, para que o condenado não morra demasiado rápido, nem tão pequenas que não bastem para arrancar-lhe a vida. Devem ser de tamanho médio, para que a vítima possa suportar o sofrimento pelo maior tempo possível.

Não digo que os alunos xenófobos portugueses chegaram a pensar no rito infame da lapidação, mas curiosamente aquelas pedras eram da mesma medida das que ainda se usam, levadas em sacos ou caminhões onde, especialmente em países islâmicos, continuam sendo usadas.

Mais do que a abertura fria e burocrática de um processo “disciplinar”, as autoridades da Universidade de Lisboa já deveriam ter pedido desculpas às vítimas e ao Brasil, um país que sempre acolheu, não apenas com respeito, mas com carinho, os seus alunos e pesquisadores.

Vivemos tempos em que até uma brincadeira pode se tornar uma bomba atômica. A vigilância na defesa das liberdades e contra toda discriminação deve ser redobrada. O ódio é um veneno que é inoculado em silêncio. Como acaba de afirmar em uma entrevista a este jornal o psiquiatra espanhol Luis Rojas: “Pedir perdão” e ter a coragem de dizer “te amo” é fundamental “porque sem ele não há futuro na vida”. Do ódio à explosão de uma guerra há apenas um suspiro. O perdão apaga até os incêndios mais devastadores. E hoje esses incêndios começam a nos cercar de maneira ameaçadora também no Brasil, esse grande país, que já deu exemplo para o mundo de acolhimento de diferentes, com vocação de paz.

Do tempo

Faz alguns anos, tive, num sonho, um vislumbre de uma escultura interminável de corpos humanos entrelaçados emergindo muito abaixo de mim e perdendo-se no infinito acima de minha cabeça. Talvez seja um dos significados da existência nossa: encadeamento e continuação. Como um novelo desenrolando-se incessantemente, todos nascendo uns dos outros, uns por cima dos outros, cada um estendendo as mãos para o alto um milímetro mais e mais e mais: somos novelo e fio ao mesmo tempo.

Meu gesto repete o de uma de minhas antepassadas; meu riso será o de algum descendente meu, que jamais conhecerei, o fio primeiro de minhas ideias nasce de outro pensamento milênios atrás, e continuará se desenrolando depois que eu tiver deixado de existir há séculos, num tempo que não flui como o imaginamos, esse tempo medido e calculado. Ele é pulsação, surpresa.


Às vezes, suspiramos pelo conforto que, vista de longe, parecia ser a vida quando tudo era mais limitado e certo: menos opções, menos possibilidade de erro. Temos de aprender a conviver com essas novas engrenagens de tanta surpresa e perplexidade, mas tanta maravilha. Temos de estar mais alertas do que décadas atrás, quando a vida era - ou hoje nos parece - tão mais simples: precisamos estar mais preparados, para que ela não nos dilacere. Temos de ser múltiplos, e incansáveis.

Que cansaço.

Pois a vida não anda para trás: o preço da liberdade são as escolhas com seu cortejo de esperança, entusiasmo, hesitação e angústia - para que se criem novos contextos e se realizem novas adaptações, que podem não ser estáveis. Pois as inovações, a corrida do tempo e as possibilidades aparentemente infinitas já nos puxam pela manga e nos convidam para outra ciranda de mil receitas: vamos ser inventivos, vamos ser produtivos e competentes, felizes a qualquer preço na companhia de todos os deuses e demônios nessa sarabanda. Fora dela, nos dizem, restam o tédio, a paralisia e a morte.

Será mesmo assim? Ou ainda existem, e podemos descobrir, lugares ou momentos de tranquilidade onde se realiza a verdadeira criatividade, onde podemos expandir a alma, onde podemos amar as pessoas, onde podemos contemplar a natureza, a arte, e os rostos amados, e construir alguma paz interior? Creio que sim.

Para que as emoções e inquietações positivas não entrem em coma antes que termine de definhar o corpo.