sábado, 24 de outubro de 2020

Tempos bárbaros

O que é o bolsonarismo, senão vingança do macho, o retorno do macho grosseiro rudimentar? Bolsonaro promete restaurar as âncoras, em um apelo dirigido pelo que há de neurótico e defensivo em cada um e cada uma, porque muitas mulheres absorvem essa cultura machista também
Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública e autor dos livros que deram origem aos filmes Tropa de elite e de "Dentro da noite feroz – O fascismo no Brasil"

General Pazuello, pede pra sair

Como acreditar no que o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disser ou fizer doravante? Se tivesse o mínimo de preocupação com a sua e a imagem dos colegas de caserna, pediria demissão depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro no caso da compra da vacina chinesa contra a Covid-19.

Mas, não. Infectado pelo vírus, recolhido ao hotel do Exército em Brasília, onde mora, Pazuello foi acordado, quinta-feira à tarde, para receber a visita de Bolsonaro. E foi constrangido a gravar uma parte de sua conversa com ele onde afirmou: “É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho”.

Vexame, vexame, vexame! Onde já se viu um general render-se a um capitão? Ou melhor: a um ex-capitão? Tudo bem, o ex-capitão é hoje o presidente da República, e o general ainda na ativa, seu vassalo. De toda forma, pegou muito mal para ele entre seus colegas de farda. Primeiro foi desautorizado. Depois, humilhou-se.



No último fim de semana, Pazuello havia combinado com Bolsonaro no Palácio da Alvorada o que diria quando se reunisse com os governadores para discutir a compra de vacinas. E cumpriu o combinado ao anunciar:

“A vacina do Butantan será a vacina brasileira. Já fizemos carta em resposta ao ofício do Butantan, e essa carta é o compromisso da aquisição das vacinas que serão fabricadas até o início de janeiro, em torno de 46 milhões de doses, e essas vacinas servirão para nós iniciarmos a vacinação ainda em janeiro. Essa é a nossa grande novidade e isso reequilibra o processo”.

Aí, o governador João Doria (PSDB), de São Paulo, o padrinho da vacina chinesa no Brasil, celebrou o anúncio nas redes sociais e por toda parte. Aí, no dia seguinte, os bolsonaristas de raiz foram para cima de Bolsonaro nas redes. Aí, furioso e a conselho dos três filhos zeros, Bolsonaro deixou Pazuello pendurado na brocha.

Militares próximos ao presidente, e militares da reserva ficaram indignados com o episódio. Inicialmente, com o que Bolsonaro fez. Ontem, com o que fez também Pazuello. Até porque a vacina chinesa, ainda em fase de teste como as demais, se aprovada acabará sendo comprada. Doria continua rindo à toa.

Essa parada foi ganha por ele, que mais e mais se oferece como o candidato capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Cerca de 70% dos brasileiros se dizem dispostos a se vacinar, segundo pesquisa Datafolha. E parte deles começa a ver Bolsonaro como inimigo de tudo o que possa salvar vidas.

Em tempo: Pazuello revelou que está sendo tratado com cloroquina. Bolsonaro ficou muito satisfeito com o que ouviu.

Rejeição à vacina mostra que a xenofobia contra a China chegou para ficar

A oposição de Jair Bolsonaro à aquisição da vacina desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, questionando a credibilidade do imunizante “pela sua origem”, simboliza a transformação irreversível da relação bilateral entre o Brasil e o gigante asiático. Até recentemente, a China ―o maior parceiro comercial do Brasil há mais de uma década ― vinha conseguindo evitar a politização de sua crescente presença no país. Apostando em um perfil discreto, os diplomatas chineses ficavam longe dos assuntos internos e eram hábeis em se manter fora do radar do debate público brasileiro ― uma estratégia facilitada pela constante superexposição dos Estados Unidos na discussão local.

A situação mudou em 2018, quando um político brasileiro com projeção nacional farejou a oportunidade de pintar a ascensão chinesa como uma ameaça a fim de mobilizar seus seguidores. Em março daquele ano, o então presidenciável Jair Bolsonaro visitou Taiwan e tuitou que suas recentes viagens internacionais deixaram “cada vez mais claro o norte que queremos para o nosso Brasil, algo bem diferente do que foram os governos anteriores, simpáticos a regimes comunistas (...)”.

Acusou a China de querer “comprar o Brasil” e escolheu Ernesto Araújo como chanceler, que alertou para os perigos da “China maoísta” e de seus planos de dominação mundial.

A ideia de atiçar o sentimento antichinês está longe de ser inovadora: é um velho truque, usado antes mesmo do país se tornar comunista. Em 1882, por exemplo, o China Exclusion Act proibiu a imigração de cidadãos chineses para os Estados Unidos em meio a uma onda de sinofobia na Califórnia, que envolveu frequentes ataques contra os recém-chegados. Apesar de surtir pouco efeito, a medida foi popular entre americanos que temiam a concorrência de imigrantes chineses.

Mais de cem anos depois, a sinofobia foi central para a vitória de Donald Trump em 2016. Na África, populistas em busca de um bicho-papão usam esse mesmo roteiro há anos. Em 2006, o candidato populista à presidência da Zâmbia, Michael Sata, atacou a China de maneira tão feroz que o então embaixador chinês ameaçou cortar laços diplomáticos caso ele vencesse. Em seus discursos, Sata prometia se aproximar de Taiwan e chamava os investidores chineses de “infestadores”. Ele foi derrotado em 2006, mas acabou chegando ao poder em 2011.



Nos primeiros meses do governo Bolsonaro, Hamilton Mourão e Tereza Cristina conseguiram a duras penas remendar o estrago do presidente. Juntos, o vice-presidente e a ministra da Agricultura se tornaram a Guarda Pretoriana da relação bilateral. Mas a diplomacia chinesa nunca se iludiu com a eficácia desses panos quentes. Mesmo no auge dessa aparente harmonia, quando o presidente Xi Jinping veio a Brasília para a décima-primeira cúpula dos Brics, era evidente que o bolsonarismo continuava fomentando um discurso anti-China entre seus seguidores e trabalhando para enraizar a sinofobia na política nacional.

Após as tentativas de Eduardo Bolsonaro e do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, de culparem a China pela pandemia, em abril deste ano, Pequim deixou as sutilezas diplomáticas para trás e partiu para o contra-ataque. Os comentários daquelas duas figuras centrais do governo foram o primeiro passo da estratégia para eximir Bolsonaro das responsabilidades pela crise econômica que já chegou e ainda deve se aprofundar.

Em artigo para o jornal O Globo, endereçado ao filho do presidente, o cônsul-geral chinês perguntou se o deputado tinha recebido “uma lavagem cerebral dos Estados Unidos”, chamou-o de “ignorante” e ameaçou: “Se algum país insistir em ser inimigo da China, nós seremos o seu inimigo mais qualificado!”. Mais tarde, o ministro-conselheiro Qu Yuhui acusou Bolsonaro e Weintraub de terem feito “declarações irresponsáveis” relacionando seu país ao novo coronavírus e de terem jogado “gasolina na fogueira da xenofobia”.

Se os laços econômicos e políticos com os Estados Unidos já têm um longo histórico de politização, a relação com a China estava à salvo dessa interferência até pouco tempo.

Enquanto acordos com Washington sempre renderam a pecha de entreguismo por parte de alguns opositores, negociar com a China costumavam representar um risco menor. O bolsonarismo encerrou essa fase. Basta lembrar do modo como Olavo de Carvalho atacou uma comitiva de parlamentares do PSL por ter visitado a sede da empresa chinesa Huawei, em janeiro de 2019. Do mesmo modo, Hamilton Mourão é rotineiramente chamado de “comunista” por bolsonaristas radicais desde que tentou salvar as relações com Pequim.

Como ocorre há muitos anos com o antiamericanismo, a sinofobia será uma ferramenta de mobilização atraente demais para que populistas a deixem de lado. Essa projeção de ameaças reais ou imaginárias complicará as decisões estratégicas que os governos brasileiros terão de tomar no futuro próximo, afetando questões práticas como a construção da rede de telecomunicação 5G.

Neste novo cenário, sempre haverá um risco político em qualquer articulação com a potência asiática. A decisão inesperada de Bolsonaro em relação à vacina é um exemplo brutal de um fenômeno que ainda deve se repetir muitas vezes. Políticos e empresários brasileiros e chineses terão de levar essa nova realidade em consideração. A tendência trará complicações adicionais a casos como o da Embraer, por exemplo, que busca um parceiro alternativo na China após o fracasso da fusão com a Boeing.

O aumento da influência econômica chinesa na América Latina e as tensões cada vez mais agudas entre Washington e Pequim devem agravar esse quadro nos próximos anos.

Em abril, Pequim aprendeu que respostas duras aos ataques do governo brasileiro dificilmente resolverão o problema. Pelo contrário: para ministros do governo brasileiro, falar mal da China tornou-se uma espécie de prova de lealdade ao bolsonarismo radical, e procurar briga com o país pode até ajudar ministros em apuros a manterem seus cargos.

Assim como atacar os Estados Unidos já foi a melhor forma de galgar posições no governo chavista da Venezuela, provocar a China tem sido a primeira tentativa de figuras como Weintraub quando estão prestes a perder apoio. Muito mais do que uma aberração, a recente politização das relações com a China é o novo normal.

Esta semana, o monstro despertado por Bolsonaro pressionou o presidente pelo cancelamento da vacina. A franja lunática que compõe parte importante de sua base gostou da moda sinofóbica e já não se deixa controlar nem pelo presidente, nem pela pandemia. Mesmo se Bolsonaro optasse por parar de demonizar o país asiático, já não haveria volta.