quinta-feira, 28 de março de 2019

Quanto pior melhor para o capitão

Ao Congresso, uma vez que queira se comportar com responsabilidade, cabe pôr suas impressões digitais na reforma da Previdência e aprová-la em tempo razoável. Porque para o presidente Jair Bolsonaro, tanto faz como tanto fez.


Bolsonaro votou contra todas as propostas de reforma da Previdência nos seus sete mandatos de deputado. Para isso até alinhou-se com o PT. Terceirizou a área econômica de um eventual governo só para obter o apoio do mercado.

Uma vez que se elegeu, pouco se lhe dá se a reforma for aprovada ou não. Cumpriu o ritual de ir ao Congresso apresentá-la. Vez por outra repete que sem ela o país quebrará. Mas ao mesmo tempo a torpedeia sempre que pode.

Se ela passar, Bolsonaro dirá que se deveu ao seu empenho e ao do ministro Paulo Guedes. Do contrário, culpará o Congresso pelo que possa acontecer ao país mais tarde. Jamais confessará que aposta no pior. É nisso, de fato, no que aposta.

Os que analisam o governo Bolsonaro cedem à tentação de normalizá-lo, de o observarem como a maioria dos governos que o país já teve – particularidades à parte. Mas ele não é e não quer ser um governo como qualquer outro.

Embora tenha ficado quase 30 anos na Câmara, Bolsonaro nada aprendeu ali, nada quis aprender, e por isso jamais se destacou entre seus pares – salvo como um tosco parlamentar, estridente e monotemático, em defesa das piores causas.

Ele foi a primeira pessoa a surpreender-se com a descoberta de suas chances de se eleger presidente – a segunda foi sua mulher. Isso ocorreu depois da facada em Juiz de Fora. À falta de equipe e de um plano de voo, montou o pior governo das últimas décadas.

Sem compromisso com coisa alguma, apreciador de ralas e confusas ideias, todos os seus passos até aqui têm sido na direção do enfraquecimento da democracia. Direto ao ponto: Bolsonaro sonha com o estabelecimento de um regime autoritário sob seu comando.

Daí seu desprezo pelos partidos, seu pouco caso com a Justiça cada vez mais acossada por seus devotos nas redes sociais, e seu ódio à imprensa independente. Se não houver a ruptura institucional tão desejada por ele, seguirá em frente aos trancos e barrancos.

Se sua situação no cargo tornar-se insustentável, será capaz de jogar tudo para o alto e ir gozar a vida confortável de ex-presidente. Era seu plano original: ajudar os filhos a se reelegerem e desfrutar da companhia de dona Michele e da filha mais nova. Aí deu no que deu.

Nova política, velha palavra

O culto do novo é velho. Um grego chamado Homero —ou as gerações de poetas anônimos embutidos nesse nome— já observava na "Odisseia", muitos séculos antes de Cristo, que o número musical mais aplaudido era sempre o mais recente.

O interesse despertado pela novidade se reflete nas palavras que nomeiam o que é notícia. Hoje pouco usamos "nova" nessa acepção, mas a boa nova, a notícia auspiciosa, mantém viva uma associação presente em diversas línguas, do latim medieval "nova" ao francês "nouvelles" e ao inglês "news".


Se isso é notícia antiga, só nos últimos dois ou três séculos virou cacoete de uma época de progresso tecnológico desembestado sair colando o adesivo "novo" nas coisas do mundo.

Que a busca do novo já começava a virar neurose no século 18, comprova-o uma ponderação do filósofo Denis Diderot em 1762: "Só Deus e alguns raros gênios conseguem forjar continuamente o novo". Ou seja: calma, pessoal. Na maior parte das vezes, estaremos no lucro se aprendermos a reproduzir bem o já sabido.

"Novo" e suas traduções ("new", "nouveau", "neu" etc.) fizeram a carreira brilhante que se viu. Pelo menos na cultura ocidental, ficamos viciados na musa das vanguardas, aquela que promete simplesmente reinaugurar a história.

Mais que desejável, o novo passou a ser nossa única saída, o que vai nos libertar do passado com seus protocolos que caducam cada vez mais depressa —a princípio a cada 50 anos, depois a cada 20, dez, um...

O envelhecimento nos morde os calcanhares. A obsolescência ridiculamente rápida de nossos telefones não deixa ninguém esquecer: o novo é um valor em si, mas envelhece correndo.

O jeito é fugir para a frente. Para a frente fugimos até nos momentos —felizmente raros— em que a realidade dá um cavalo de pau, o cenário gira 180 graus à nossa volta e acontece de, fugindo para a frente, irmos cada vez mais para trás.

O Brasil, estrela grandalhona do Novo Mundo, é só mais um fiel seguidor desse culto. No entanto, é provável que o peso do novo seja ainda maior em nossa cultura, que preza menos que outras a tradição.

Além de relativamente curta e escassa de heroísmo, nossa história de ex-colônia escravocrata portuguesa habita um cercadinho escolar sobre o qual a sociedade guarda um silêncio entre constrangido e abestalhado.

Das glórias que temos, raras e por isso mais valiosas, fazemos pouco. "A cada 15 anos, o povo brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos", disse o genial Ivan Lessa, também ele em processo de esquecimento.

Nossa relação apaixonada com a palavra "novo(a)" pode ser demonstrada assim: daria para contar uma versão bem razoável da história do Brasil, dos anos 1950 para cá, só com coisas que a trazem no nome.

Bossa nova. Novacap. Cinema Novo. Neoconcretismo. Novos Baianos. Cruzeiro novo, cruzado novo. Nova República. Nova matriz econômica. As novinhas. O Novo. E, por fim, estrela de um ano tumultuoso, a nova política do governo Bolsonaro.

Está claro que essa "nova política", que se oporia à "velha" de um Congresso fisiológico, é uma mistificação: conjunto vazio, trata-se da simples negação da negociação política. Subscrevo os argumentos de Carlos Melo, do Insper, em artigo publicado terça-feira (26) nesta "Folha".

Só faltou dizer que, como palavra-fetiche, "novo(a)" é das mais fortes que há. Embalando —e engambelando— a humanidade há séculos, não dá pinta de envelhecer tão cedo.

Pensamento do Dia


Administração de Jair Bolsonaro sofre um apagão

Ninguém disse ainda, talvez por pena, mas o governo de Jair Bolsonaro sofre um apagão político-gerencial. A nova administração vive uma pane antes de completar três meses de existência. De acordo com uma lei não escrita da política, esse seria um período em que o presidente teria direito a uma tolerância, para se estabelecer no poder e deflagrar os seus planos. Mas Bolsonaro conseguiu transformar lua-de-mel em pesadelo. Fez isso sem a ajuda da oposição.


O governo dividiu-se em quatro grupos: a ala dos superpoderosos, o bloco circense, o núcleo militar e o puxadinho dos filhos. Na ala dos superpoderosos, a reforma previdenciária de Paulo Guedes subiu no telhado. E o pacote anticrime e anticorrupção de Sergio Moro passa por um processo de lipoaspiração num grupo de trabalho da Câmara.

No bloco circense, Vélez Rodrigues leva o MEC à corda bamba e a "estilista" Damares Alves diverte a plateia ensinando que meninas vestem rosa e meninos vestem azul. O núcleo militar cumpre a ordem de organizar a estapafúrdia comemoração do aniversário de 55 anos do golpe de 64, enquanto estuda uma maneira de tutelar o presidente. E o puxadinho dos filhos dedica-se a ajudar o pai-presidente a tocar fogo no circo.

Após sofrer uma derrota vexatória na Câmara, com a aprovação de emenda que engessa mais um orçamento que a pasta da Economia queria liberar, Bolsonaro diz que vai dialogar com presidentes e líderes de partidos. Para fazer isso, talvez tenha de ficar fora de si, pois não está habituado a sentar-se à mesa. Acostumou-se a virar a mesa. Para Bolsonaro, o bom diálogo é quando ele consegue obrigar o interlocutor a calar a boca. Ou o capitão revoluciona sua personalidade ou o apagão do governo desligará o Brasil da tomada.

Bancando presidente

Abalados estão os brasileiros que estão esperando desde primeiro de janeiro que o governo comece a funcionar.

São 12 milhões de desempregados, 15 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha de pobreza, capacidade de investimento do Estado brasileiro diminuindo, 60 mil homicídios… E o presidente brincando de presidir o Brasil
Rodrigo Maia, presidente da Câmara

Quanto custa o mito

Bolsonaro não dá sinal de se importar com crise; mercado se irrita com Guedes
A pororoca no mercado financeiro parece feia, mas as baixas por ora são apenas espuma. A reincidência do governo em erros, despropósitos e arruaças é lama.

Menos de 24 horas depois de ficar explícito que não dispõe de coalizão partidária para sobreviver no Congresso, Jair Bolsonaro voltou a provocar parlamentares e discórdia. Em entrevista na TV, fez comentários de escarninho colegial sobre o presidente da Câmara. Em resposta, Rodrigo Maia (DEM-RJ) disse que Bolsonaro está "brincando de presidir o Brasil". Nas redes insociáveis, voltou a incitar rixas ideológicas sinistras (1964).

No Congresso, não houve tentativa organizada de criar uma mesa de conversa para valer entre governo e parlamentares. No DEM, há gente empenhada em levar Bolsonaro para a luz mínima da política, como Ronaldo Caiado, governador de Goiás. Será um esforço em vão caso Bolsonaro não crie uma equipe, no governo e no Congresso, experiente e com poderes de organizar uma coalizão, o que significa ceder à "velha política".


Como se não bastasse, causou má impressão a audiência do ministro Paulo Guedes (Economia) na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado.

Para os senadores, mesmo os simpáticos a reformas, Guedes se comportou de modo "arrogante", "agressivo", "ignorante dos modos da política" e "desavisado" por levantar a hipótese de que pode deixar o governo caso as reformas sejam bloqueadas. Trata-se de possibilidade óbvia, mas isso não se antecipa em público.

No mais, gente da praça do mercado se irrita loucamente com Guedes porque o ministro "não controla" Bolsonaro. "O mito saiu caro", diz um financista.

A maioria dos preços desabou no mercado financeiro, em parte por reação estereotipada, em parte porque o clima na finança mundial não está bom, faz semanas.

Os maus humores podem se dissipar em dias, sem deixar efeito na economia real, mera espuma. Mas a persistência de condições financeiras degradadas por uns dois meses deve multiplicar vetores de estagnação.

Por exemplo, a confiança de empresários e consumidores está em queda, provavelmente devido à frustração das promessas de recuperação econômica. O tumulto político pode engrenar um círculo vicioso.

É difícil entender ou encontrar alguém que explique os objetivos de Bolsonaro.

Um general conselheiro acredita que o presidente espera com otimismo exagerado ver o Congresso "se dobrar às necessidades do país", mas que vai se tornar mais maleável aos poucos.

Visto de fora, Bolsonaro e seu núcleo puro, filhos e assessores, não parecem diferentes da campanha: vieram para "quebrar o sistema". Trata-se de uma crença rude, entre fantástica e autoritária, de que governará "fora do mecanismo", apoiado por pressão popular permanente.

A paranoia parece, no entanto, agravada, em particular pela opinião pública de elite cada vez mais favorável ao vice-presidente, Hamilton Mourão.

Por ora, não parece haver força que demova Bolsonaro. No Congresso, não há ordem, recursos ou impulsos para tirar a política do impasse, o que em tese não é difícil.

Não há racha essencial na elite econômica, que quase toda colaborou com a vitória de Bolsonaro, na crença de que o capitão seria "business as usual", com um tempero amargo de ferocidade inócuo em termos materiais, "reformas" etc.

Assim, um mero acordo de divisão de poder do governo com alguns partidos resolveria a parada. Mas Bolsonaro acha que é uma revolução.

O golpe

Partidos e grupos comunistas, mais seus associados, discutiam qual a maneira de derrubar o capitalismo burguês e implantar a ditadura do proletariado: pela luta armada ou pelo caminho reformista? Isso era em 1964, e a ampla maioria da esquerda era reformista – pelas chamadas reformas de base, processo que começava com a agrária e incluía um amplo cardápio de estatizações.

O presidente João Goulart, do PTB getulista, no cargo desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, estava claramente no campo da esquerda. Havia comunistas no seu governo ou no seu entorno, mas Jango estava longe de ser ele mesmo comunista. O mesmo se poderia dizer de ilustres membros de seus gabinetes, durante o curto período parlamentarista, como os primeiros-ministros Tancredo Neves e Santiago Dantas.

No máximo, seriam socialdemocratas ou trabalhistas ou socialistas no sentido que a palavra tem hoje nos Estados Unidos – um pessoal preocupado com distribuição de renda e proteção social. Nacionalistas, também.

Como o grupo comunista era claramente minoritário nessa aliança, o sucesso de Jango levaria o Brasil a uma economia mais estatizada, com o aumento de gastos públicos em todos os setores, dos sociais à infraestrutura. Mais ou menos como aconteceu no governo ditatorial do general Ernesto Geisel, um nacionalista e estatizante da primeira linha. E como aconteceu com o governo Lula.

Para o leitor verificar como isso de ideologia e política econômica estava bem confuso.

Acontece que em 1964, o mundo estava em plena guerra-fria, dividido entre os Estados Unidos e a União Soviética (vejam, por favor, a coluna da semana passada, aqui mesmo.

As plataformas reformistas – aqui, no Chile, na Argentina, em toda parte – procuravam se aproximar não propriamente da URSS, mas de um bloco que se declarava independente, o do Terceiro Mundo, que, entretanto, pendia para a esquerda. Ou seja, adversário dos EUA.

Nessa disputa, os EUA patrocinavam ditaduras direitistas para, com o se dizia, evitar a ditadura comunista.


Pela minha história pessoal (17 anos em 1964) e pelo que estudei, não havia a menor possibilidade de uma vitória comunista, nem pela via reformista, nem pela luta armada. Qual a chance de uma guerrilha no Araguaia ou no Vale do Ribeira? Ser massacrada, como aconteceu.

Mas foi nesse quadro que parte da elite brasileira, representada por partidos e associações civis, bateu às portas dos quartéis. Os militares atenderam rapidamente, pois a doutrina que aprendiam era simplesmente Ocidente versus o Pacto de Varsóvia (a frente militar da URSS).

Sim, o Congresso brasileiro chancelou a derrubada de Jango em abril de 1964 e depois elegeu presidente o então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, marechal Castelo Branco. Só que o Congresso estava diante da alternativa: ou isso ou o fechamento.

Muitos democratas e liberais apoiaram o golpe. Achavam que seria um interregno necessário para garantir as eleições presidenciais de 1965, nas quais haveria o embate entre Juscelino Kubitschek (pelo lado reformista democrático) e Carlos Lacerda (conservador, liberal, democrata).

Todos esses democratas se decepcionaram e foram abandonando o governo militar na medida em que este radicalizava e se transformava em verdadeira ditadura. Carlos Lacerda, apoiador do golpe, terminou cassado e se unindo a JK, também cassado, numa frente pela democracia.

Sim, o Congresso funcionou o tempo todo, mas foi fechado nos breves momentos em que ousou discordar do regime. O Congresso elegeu os presidentes, mas depois que os nomes eram selecionados entre os generais de quatro estrelas. Partidos políticos foram proibidos, a imprensa foi censurada, opositores – fossem democratas ou comunistas – foram presos, torturados, mortos.

A ditadura caiu em 1985, quando se formava uma onda mundial pró-democracia, apoiada até pelos EUA. O presidente Jimmy Carter e sua mulher Rosalyn pisaram nos calos da ditadura brasileira. Rosalyn chegou a se reunir com padres que haviam sido torturados.

E quando a política econômica finalmente fracassou, com recessão, dívida externa explosiva e inflação, a ditadura caiu. Os militares se retiraram, liderados por colegas de bom senso, num processo conduzido por políticos habilidosos.

Não há nada para comemorar em 31 de março.