quinta-feira, 24 de maio de 2018


Aprendendo com Brasil

Não seria possível arrolar as vezes que o Brasil foi mencionado por cronistas, missionários, viajantes, historiadores, escritores e curiosos. Quando pesquisamos os viajantes estrangeiros que falaram do Brasil, logo descobrimos como eles foram cegos ou míopes em relação a certos assuntos, ao mesmo tempo que, ironicamente, foram nítidos e certeiros relativamente a outros. Nós vemos o que os que nos visitaram não viram e eles viram o que nós não queríamos ou conseguíamos ver.

Todo antropólogo cultural sabe que ninguém enxerga tudo. Como dizia um dos expoentes da disciplina, E. E. Evans-Pritchard: “Na ciência, como na vida, só se acha o que se procura”. Foi, aliás, com essa advertência que eu abri o livro Relativizando no qual apresento uma visão embrionária da antropologia, destinada a estudantes e leigos. Pensando nessa equação entre o achar e o procurar, nesse mesmo livro eu assinalei que cada antropólogo tem inevitavelmente a tribo que merece.

A questão, porém, é quando se acha o que não se procura. Como a assombrosa prevenção contra os “índios” testemunhada por mim em 1959-60, confirmando o preconceito de não ter preconceito, denunciado por Florestan Fernandes. Uma falsa inocência tão maligna quanto o refrão “tudo foi feito dentro da lei”...

Consciente dessas descontinuidades de olhares, eu imagino o que os historiadores do futuro dirão do Brasil de hoje. Certamente, o espanto não vai estar no que foi superado, mas nos costumes que julgávamos suplantados ou extintos, mas que insistem e permanecem vivos até hoje.


Um deles é o pedir aos outros que façam alguma coisa para nós. “Será que você pegava o óculos do vovô?” é uma demanda situada entre o pedido de favor (opcional, mas sujeito ao famoso “você é imprestável”) e a ordem (que não deixa escolha) muito comum aqui em casa.

Tal transferência de serviço para um outro na forma de um favor foi notada pelos que nos visitaram no século 19. Sobretudo pelos visitantes cujo “lugar de fala” eram sistemas mais igualitários e individualistas que agora estavam enfurnados numa sociedade relacional, aristocrática de molde branco europeu, mas sustentada por uma imensa escravaria negra africana.

Vindos de sociedades inventoras de expressões como “leave me alone” (deixe-me só), “do it yourself” e do “take good care of yourself” (faça você mesmo, cuide bem de você mesmo) - os reflexivos salientando um estilo de vida individualista, eles se espantaram com um estilo de vida em que havia intermediários para falar com Deus, com o rei, com os amigos e com os criados. Foi o surpreendente Borges quem chamou minha atenção para esses - “get your self a wife” (arranje para você mesmo uma esposa), impraticáveis para quem sempre teve um escravo, um criado, ou uma boa mãe ou esposa para “tomar conta” e “cuidar” de quem foi de treinado para depender e a ter dependentes. Traço que é um dado inconsciente da própria natureza da vida social entre nós. “Se titio virar ministro, ele emprega toda a nossa família!”, eis - com as variantes de praxe - o axioma da cultura nacional.

Esse “tomar conta” é enorme: ele vai do oferecer e do prestar favor e cobre igualmente o servir o nosso prato, arrumar a nossa cama, nos dar remédio na doença e nos fazer companhia em viagens ou quando estamos solitários. Serve também para nos controlar ou “vigiar”.

Como não aprendemos a dizer não a nós mesmos, esses irmãos siameses servem de limites ou de cúmplices. O resultado é o extraordinário conjunto de crimes em quadrilha e partidários, realizados no modo relacional que hoje ameaça o funcionamento de uma democracia igualitária fundada no cidadão individual e não na companheirada partidária ou corporativa.

O fato é que, no Brasil, o isolamento é visto como um castigo. Quando alguém trai lealdades, ele é posto “no gelo” e suspenso da rede social. “Eu não falo mais com ele” revela não apenas incompatibilidades, mas desdém, desprezo e abandono - essas mortes em vida. Por outro lado, a dificuldade de separar pessoas carregadas de lealdades com outras pessoas de instituições e normas é o resultado de um sistema forjado por dependências pessoais. Nunca somos apenas um e no mundo político e religioso isso ficou bem claro para certos visitantes, sobretudo os que - como foi o caso de Thomas Ewbank - fizeram uma verdadeira etnografia do Rio de Janeiro dos 1850. Suas observações sobre as múltiplas manifestações da hierarquia e da importância das relações na vida cotidiana são numerosas e elucidativas.

Ewbank observou com método e por assunto, cobrindo um vasto campo da vida social brasileira num mesmo momento - vale notar - em que Manuel Antônio de Almeida publicava em folhetins o seu clássico Memórias de Um Sargento de Milícias. Num caso, uma ficção localizada no passado, no outro uma etnografia falando do presente. Em Almeida dramas, em Ewbank análise de uma realidade que o tempo apagou. Em Memórias, uma dupla ética; em Ewbank, a percepção aguda da hierarquia e da escravidão. Ambos mostrando como se aprende com o que chamamos Brasil.

Mortalidade infantil impõe queda de braço com ajuste fiscal de Temer

O congelamento de gastos planejado pelo Governo de Michel Temer como resposta à crise econômica poderá ter um impacto direto na mortalidade de crianças, aponta um estudo feito por analistas ligados à Fiocruz e divulgado nesta terça-feira pela revista científica norte-americana PLoS Medicine. Os pesquisadores fizeram uma simulação de quantas mortes de menores de cinco anos poderiam ser evitadas até 2030 caso os programas Bolsa Família e Estratégia de Saúde da Família tenham seus orçamentos aumentados de forma proporcional ao acréscimo no número de pobres no país. Seriam 19.732 mortes a menos até 2030 em comparação com o cenário mais provável, o de que os orçamentos aumentem apenas segundo a inflação do ano anterior, como prevê, de forma global para todas as pastas do Governo, a Emenda Constitucional 95(antiga PEC 241). A extrema pobreza no Brasil aumentou 11% entre 2016 e 2017, mas o orçamento do Bolsa Família previsto para este ano é menor do que o do ano passado.

"Quando você congela os gastos, ou seja, os ajusta de acordo com a inflação, você não consegue manter o nível de proteção social que você tinha antes”, diz Davide Rasella, do Instituto de Saúde de Coletiva da Universidade Federal da Bahia e principal autor do estudo. Segundo ele, a matemática não fecha porque há três dinâmicas sociais que não estão sendo ajustadas: primeiro, o crescimento populacional que faz com que se tenha menos dinheiro por pessoa. Depois, o envelhecimento populacional, dinâmica importante tanto para a assistência social como para a saúde. E, ainda, a inflação da tecnologia da saúde, que faz com que os custos da área aumentem a cada ano.

O estudo se apoia em duas notas técnicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgadas em 2016, logo após a aprovação da Emenda Constitucional que congela os gastos do Governo. A primeira delas afirmava que em 20 anos de aplicação da PEC a política de assistência social brasileira, que comporta o Bolsa Família, contaria com menos da metade dos recursos necessários para garantir a manutenção da cobertura nos padrões atuais. A segunda nota apontava que, até 2036, o Sistema Único Brasileiro (SUS), responsável pelo Saúde da Família, perderia cerca de 400 bilhões de reais —número similar ao achado por outro estudo, do Conselho Nacional de Saúde.

Os pesquisadores também se basearam em outra nota, do Banco Mundial, que recomendou um aumento no orçamento do Bolsa Família em 2017 para 30,41 bilhões de reais para fazer frente aos brasileiros que entraram na faixa da pobreza pela severa crise econômica. "A distribuição do orçamento adicional do Bolsa Família para as famílias recém elegíveis entre os novos pobres pode evitar que a taxa de pobreza extrema no Brasil aumente para além do nível de 2015", afirma este estudo. Em 2017, o Governo gastou 28,9 bilhões para 13,8 milhões de famílias, aponta o site Poder 360. Para 2018, o orçamento previsto para o programa é menor: 28,2 bilhões, para 13,9 milhões de beneficiários. O Governo, entretanto, anunciou um reajuste no valor repassado às famílias no último dia primeiro.


Com base nos dados apresentados nesses três estudos, os pesquisadores consideraram três cenários distintos de crise econômica e seus efeitos no aumento da pobreza entre 2015 e 2030, um período de 15 anos. No primeiro cenário, mais moderado, se considerou que a taxa de pobreza aumentaria até 2017 e depois voltaria a cair até 2030. No segundo, considerado por eles o mais provável, a pobreza deixaria de aumentar após 2019. E no terceiro, mais agudo, o aumento da pobreza só pararia após 2021. Para cada um dos três cenários se estipulou duas possibilidades: a de o orçamento do Bolsa Família e do Saúde da Família aumentarem de acordo com o crescimento da pobreza; e a de os dois programas sofrem o efeito da Emenda Constitucional, ou seja, seus orçamentos só aumentarem pelo reajuste da inflação. A partir daí, eles calcularam em quanto seria impactada a taxa de mortalidade infantil.

Em todos os três cenários de aumento da pobreza, o país mantém a queda da mortalidade infantil vivenciada nos últimos anos —entre 2000 e 2016 ela caiu 31% em números absolutos (de 56.786 para 39.305). Mas essa diminuição varia de acordo com o nível de proteção orçamentária dos dois programas. No segundo cenário de crise, considerado pelos pesquisadores como o mais provável, a manutenção da proteção social adequada traria uma quantidade de mortes infantis 8,57% menor até 2030. Em números brutos, isso representaria 19.732 mortes a menos. No cenário de crise mais branda, se evitaria até em 2030 13.954 mortes. E no de crise mais grave o congelamento de gastos deixaria de evitar 23.424 mortes. O Governo federal refuta a ideia de que o orçamento será congelado e afirma que a cobertura do Bolsa Família tem crescido e vem sendo reajustado.

Para chegar a esta conclusão, os pesquisadores utilizaram a base de cálculo do impacto dos dois programas na taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos entre 2004 e 2009, observada por eles em outro estudo, publicado em 2013 na também revista científica The Lancet. Na ocasião, eles calcularam todas as causas de mortalidade infantil entre menores de cinco anos, incluindo, por exemplo, desnutrição, diarreia e infecções respiratórias agudas, e montaram modelos matemáticos que isolaram os efeitos do Bolsa Família nestas causas. Com isso, concluíram que o programa foi responsável pela redução de 17% das mortes de crianças menores de cinco anos.

Isso acontece porque o Bolsa Família, segundo os pesquisadores, melhora tanto a qualidade quanto a quantidade de comida das famílias pobres, impactando, especialmente, na diminuição de casos de diarreia e de desnutrição. O programa também aumenta as consultas pré-natal das gestantes e a cobertura vacinal das crianças, pré-requisito para o recebimento do benefício, assim como as consultas com pediatras. Já o Saúde da Família aumenta o número de visitas médicas, já que ele prevê que os profissionais de saúde visitem os domicílios pobres para atender e orientar as famílias. Tudo isso tem impacto no chamado grupo de mortes evitáveis, aquelas que poderiam ser prevenidas por ações efetivas do Governo, como vacinação, atenção adequada à gestante, ao parto e ao recém-nascido, e ações adequadas de promoção à saúde, o que inclui, por exemplo, anemias associadas à deficiências nutricionais.

"A mortalidade de menores de cinco anos tem caído ao longo do tempo. O que importa do ponto de vista de política pública é o que nós podemos fazer para acelerar esta queda. O Bolsa Família é um dos mais bem sucedidos programas de melhoria da situação nutricional das famílias no mundo. Precisa ser utilizado, sim, no controle dos efeitos da crise econômica", ressalta Romulo Paes-Sousa, da Fiocruz Minas Gerais e outro dos autores do estudo.

O sistema de estatísticas do SUS (DataSus) já demonstra que diante do cenário atual de crise a mortalidade infantil está sendo impactada, segundo dados adiantados pelo jornal Valor Econômico no último dia 14 e confirmados por um levantamento feito pelo EL PAÍS no sistema. Os dados apontam que a mortalidade entre crianças de um a quatro anos cresceu 11% no país entre 2015 e 2016, últimos dados disponíveis. Apesar disso, os dados globais de mortes evitáveis de crianças caiu 1,2% no período, impulsionado pela queda ocorrida no grupo dos recém-nascidos que continua.

Quando os dados são analisados por cor ou raça, também percebe-se que o aumento nos dados das crianças entre um e quatro anos se deu especialmente entre brancos e pretos (14%) e indígenas (17%). Apenas Mato Grosso, Santa Catarina, Distrito Federal Sergipe e Tocantins diminuíram seus índices de mortes evitáveis nesta faixa etária. Em Roraima, o aumento chegou a 43% e, se olhados os dados referentes aos indígenas, o número de mortes se elevou em 106% — há anos os indígenas da etnia yanomami, que vivem no Estado, denunciam a precária situação da saúde indígena.

A política de achaques ao cidadão

Vamos explicar o nosso ponto de vista: o Estado achaca os cidadãos por meio de impostos exorbitantes; os políticos achacam a Petrobras para manter o Estado que achaca os cidadãos; a Petrobras achaca os cidadãos por meio do preço dos combustíveis que ajuda o Estado a achacar os cidadãos; os donos das frotas dos caminhões achacam o Estado para diminuir o preço dos combustíveis, sem diminuir o preço repassado aos cidadãos lá na ponta final do consumo; ao diminuir a incidência de impostos no preço do combustível, o Estado irá achacar os cidadãos de outra forma — e tudo continuará como está. 

Com você, cidadão, sendo permanentemente achacado por todo mundo.

Brasil de hoje


No país dos falsos dilemas

A questão do foro especial é mais um dos falsos dilemas brasileiros. A discussão ingressa agora no tema “tira o foro de todo mundo ou não” e engastalha de saída na momentosa questão do “o que, tecnicamente, define uma súmula vinculante” que seria uma das maneiras de estender a derrubada do privilégio para o judiciário e demais caronas. Esperar que o judiciário extinga um privilégio dele próprio é arriscar deixar a coisa rolar por mais 100 anos nesse vai não vai. A “via rápida” seria o legislativo fazer uma lei que anule as diversas leis e quase leis que estenderam indevidamente a regalia. Como, porém, tanta gente lá tem o rabo preso nas garras do judiciário a coisa não é tão simples. E ainda que passasse só como vingança é de esperar, a julgar pela “jurisprudência” mais recente, que o judiciário desfaça o que o legislativo fizer em idas e vindas sucessivas e o país continue parado esperando até que estejamos todos mortos…

Outro ponto a considerar é o vaticínio de Gilmar Mendes de que vamos nos arrepender de termos suspenso o foro especial amplo, geral e irrestrito ao menos para políticos. Diz ele, “conhecedor da nossa justiça criminal que é”, que a impunidade vai ficar mais garantida pelo caminho certo do que estava pelo caminho errado. E o pior é que todo mundo sabe que ele tem razão.

Essa seria a “deixa” para levar a discussão para o que interessa mas o Brasil que precisa disso ficou mudo depois que as escolas de jornalismo conseguiram estabelecer como dogma que o bom jornalista só “ouve fontes” e o exercício do raciocínio próprio para desafia-las e inquiri-las, ainda que seja apenas confrontando-as com os fatos que exponham suas mentiras, seria uma violação do princípio da separação entre opinião e reportagem. O resultado é que “cobrir política” de forma “isenta” passou a significar amplificar o que dizem as fontes oficiais desde que justapondo o dito pela “situação” ao dito pela “oposição” lá do Brasil que manda, deixando o Brasil mandado absolutamente sem voz. É isso que explica porque denunciar e exigir o fim dos privilégios que “situação” e “oposição” gostosamente compartilham enquanto se alternam no poder tornou-se oficialmente “impopular” ou no mínimo “controvertido” em todos os jornais e televisões do país, apesar de estarmos falando da causa primeira e ultima da sangria desatada de todos os bolsos miseráveis da nação estrebuchante para rechear com mais largueza, haja o que houver, os da ínfima minoria não meritocrática dentro da minoria dos mais ricos.


O ponto que interessa ao Brasil mandado é que o foro especial não é “causa” de nada, como dizem por aí, é apenas mais um efeito, ainda que este com poder multiplicador, do defeito essencial que responde por todas as nossas desgraças, que é estar invertido o poder de mando na relação entre representantes e representados da pseudo democracia brasileira. Se tivéssemos, como tem toda democracia de verdade, o direito de demitir, por iniciativa popular e a qualquer momento, políticos e funcionários indignos (recall) e recusar leis pervertidas vindas dos legislativos (referendo), não só o foro especial jamais teria extrapolado a função de proteger a palavra e a ação de quem nós elegemos para falar e agir por nós para a qual foi criado, como também tais palavras e ações jamais se teriam desviado para a criação de uma clientela militante para servir-se do serviço público com o propósito exclusivo de reelege-los em troca do compartilhamento de privilégios indecentes. Se fizéssemos, como faz toda democracia de verdade, eleições periódicas de retenção (ou não) dos juízes encarregados de nos entregar justiça, nós jamais teríamos de temer que levar os crimes comuns dos servidores do povo para a justiça comum pudesse resultar em mais impunidade.

O problema do Brasil sempre foi e continua sendo um só, de uma obviedade mais ululante a cada dia que persiste no seu anacronismo medieval. Pois ha 1/4 de milênio, já, que vem sendo confirmado e reconfirmado pelo argumento indiscutível do resultado que colhe toda e qualquer sociedade que se põe à salvo disso, que é uma lei da natureza que sempre que se concentra o poder esta-se fornecendo um endereço ao bandido que dorme dentro de cada ser humano: “Trabalhar pra quê? Suborne aqui e tenha o seu problema resolvido”. Por isso, em todo o mundo que funciona, a ultima palavra sobre cada medida que possa vir a afetar a vida da coletividade passou a ser da própria coletividade, convertida para efeitos práticos num eleitorado com poderes absolutos mas distritalmente pulverizados, a única maneira de não fornecer endereços a bandidos nem fazer da emenda um desastre pior que o soneto deixando o país sujeito aos golpes e passa-moleques de ilegitimidade que vêm junto com outros sistemas de representação pouco transparentes.

As eleições distritais puras deixam absolutamente claro quem representa quem na relação país real x país oficial. Desconcentram radicalmente o poder e assentam o país sobre uma base ampla e sólida de legitimidade. E, ao mesmo tempo, garantem o controle fino que se requer dos representantes encarregados de operar a reforma permanente das instituições que um mundo implacavelmente dinâmico e competitivo exige, sem o corolário da imprevisibilidade da arbitrariedade do monarca da hora que impede o desenvolvimento baseado na inovação, o único possível hoje.

Não ha como extinguir efeitos sem remover suas causas. O Brasil se tem alternado em variações de fórmulas autoritárias em que “iluminados” tratam de substituir-se ao povo para decidir o que é melhor para o povo e o resultado, salvo alguns soluços de marcha adiante, é uma sucessão de desastres. Mais radicais quanto mais radical for a dose de autoritarismo mas desastres sempre. A escolha real que há é entre aderirmos, finalmente, ao sistema de governo do povo, pelo povo e para o povo, ou nos conformarmos a permanecermos para sempre no século 18 pagando as carências e as doenças do século 18 como estamos hoje.

Fernão Lara Mesquita

'Você é uma preta de alma branca'

O maior número de eleitores nas próximas eleições presidenciais no Brasil, 54%, será de negros e pardos. E são eles que sofrem todos os recordes de mortes violentas. A cada 23 minutos é assassinado um jovem negro. 71% dos assassinatos são de pessoas negras. E enquanto a taxa de homicídios de brancos diminuiu 12%, a de negros aumentou 18%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Diante dessa tragédia vivida pelos descendentes dos escravos, é urgente perguntar aos candidatos a governar o Brasil como pretendem abordar essa guerra aberta contra os negros e como farão para assegurar um futuro de igualdade de oportunidades que lhes devolva a dignidade que lhes foi roubada. Manter o país dividido entre negros e brancos é perpetuar a injustiça engendrada durante os 300 anos de escravidão. Escravidão, a brasileira, que foi uma das últimas a serem abolidas no mundo. Somente em 1888.

“Não sei se o Brasil está preparado para aceitar um presidente negro”, afirmou o juiz Joaquim Barbosa, que acabou renunciando a ser candidato às eleições presidenciais. De qualquer forma, negro ou branco, o próximo presidente não pode fechar os olhos para toda essa massa de jovens negros que morrem a cada hora vítimas da violência.

Urgem políticas sérias, concretas, realistas, capazes de encerrar para sempre esse triste capítulo da discriminação sofrida por essa maioria da sociedade, que além de ter sido condenada a não poder estudar como os brancos, o que fez que tivessem que aceitar os trabalhos mais humildes, são os mais expostos a uma morte precoce e violenta. Hoje, no Brasil, a grande maioria das domésticas, por exemplo, são negras ou pardas e cabe lembrar que o vocábulo “doméstica”deriva dos escravos que deviam ser “domesticados”, como se fazia com os animais de carga.

A sociedade brasileira ainda está impregnada de racismo aberto ou dissimulado. Isso significa rever o que os sociólogos chamam de “rejeição sutil.” É o que sofreram, por exemplo, duas meninas negras que, depois de voltar da escola, perguntavam a suas mães: “Por que as outras crianças nos acham esquisitas e não falam conosco?”

A linguagem cotidiana muitas vezes nos trai. As expressões coloquiais ainda estão impregnadas de discriminação contra os negros. Basta recordar algumas delas, como passar um “dia negro”, ter um “lado negro”, ser a “ovelha negra” da família ou praticar “magia negra”. Diz-se que o preto é a cor do pecado. Usamos o verbo “denegrir” que significa “manchar uma reputação que era limpa” . O preto suja.

A linguagem nunca é inocente e, às vezes, as palavras carregam uma forte carga de dor e agressão. Uma jovem negra africana ouviu uma senhora dizer como um elogio: “Bem, filha, eu não te vejo tão negra como dizem.” Uma empregada negra teve que suportar o seguinte elogio da família para quem trabalhava: “Você é uma preta de alma branca.” Tão sutil é a associação do preto com o inferior que até no jogo de xadrez as primeiras peças que se movem são as brancas. O branco é que dá sorte, não o preto.

Como enviado especial a uma viagem do papa a Uganda, fiquei surpreso ao ver, nas igrejas da África negra, anjos brancos como a neve. Contaram-nos que os missionários europeus diziam àqueles africanos que, se se comportassem bem e se tornassem cristãos, “ressuscitariam brancos no céu”.

Sempre acreditei que a poesia é um dos instrumentos que pode nos libertar das sombras de racismo incrustadas em nosso inconsciente. No livro Poemas para Metrônomo e Vento, de Roseana Murray, que acaba de ser publicado pela Penalux, há um poema intrigante intitulado A Pele Negra. O poema trata, com rara delicadeza, precisamente dessa dor que pulsa sob a pele dos negros. Quis reproduzi-lo para os meus leitores amantes da poesia como um exemplo de linguagem empática com essa ferida ainda aberta na nossa sociedade.

A pele negra

A harpa
que ondula
debaixo
da pele negra,
debaixo,
dos antigos
açoites,
e antes,
debaixo da noite,
suas tochas
e panteras,
essa harpa
nunca se cala,
seus acordes
profundos,
oceânicos
atravessam
séculos de memória
e dor,
não dormem.


Só mantendo desperta essa “harpa que não se cala” sob uma pele que conserva as cicatrizes dos antigos açoites contra os escravos, só estando atentos para não silenciar séculos de memória e dor, seremos capazes de nos livrarmos do peso do nosso racismo aberto ou sutil. Já que, como diz o poema, essa harpa não só não se cala, mas “seus acordes (...) não dormem”. Permanecem despertos para nos lembrar que não é a cor da pele que nos distingue e separa, mas a capacidade de aceitar que somos filhos do mesmo barro.

Piorou

Não deu nos jornais, mas aparece nas conversas triviais. A gente aqui em São Paulo está com a impressão que o trânsito tem melhorado nas últimas semanas. Não é boa notícia. Se as pessoas estão circulando menos, para o serviço, compras e diversão, é sinal que a economia anda mais devagar que os carros. Não tem nada a ver com a crise dos combustíveis dos últimos dias. Isso vai piorar o sentimento, mas a coisa vem de antes.

Estava cogitando dessa hipótese, quando saiu ontem o Índice de Confiança do Consumidor, da FGV, mostrando que os brasileiros estão de fato mais desconfiados com o que vem pela frente. O índice, feito à base de entrevistas pessoais, pede que o consumidor avalie sua situação atual e as perspectivas para os próximos meses. O dado de maio – apurado antes do movimento dos caminhoneiros – foi curioso. As pessoas acharam que as coisas até melhoraram um pouco nos últimos dois meses, mas se mostraram bem menos animadas em relação ao futuro.

Em números: o Índice de Situação Atual, subiu para 77,2 pontos; o de Expectativas caiu forte, para 94,2, o menor desde setembro de 2017. Foi o segundo mês seguido de queda nesse indicador, depois de uma sequência positiva.


Repararam que a avaliação do presente é pior que a expectativa. Isso é normal. Parece que o brasileiro é sempre otimista, ou seja, acha que futuro será melhor que o presente. Continua assim, mas dois meses atrás havia mais confiança para a frente.

Como explicar? Talvez a inflação muito baixa permita um conforto no presente. Por outro lado, embora o IPCA amplo mostre que a inflação, na média, aumenta menos de 3% ao ano, o fato é que alguns preços muito sensíveis estão em alta forte. No IPCA-15 (inflação dos 30 dias encerrados em 15 de maio), a conta de luz, os remédios e a gasolina pesaram nos orçamentos.

Preços de alimentos continuam em queda – e isso tem efeito positivo poderoso. Já o dólar…

Tudo considerado, pode-se dizer o seguinte: a economia virou o ano ganhando fôlego. Nada espetacular, mas depois de uma forte recessão, um crescimento moderado – com a geração de 1,5 milhão de empregos em um ano – permitia algum alívio e, especialmente, a esperança de que o país estava mesmo saindo do buraco.

Foi essa expectativa que esmoreceu nos últimos dois meses. Os indicadores econômicos continuaram oscilando muito, mas indicando uma tendência mais moderada. Todo mundo reduziu suas previsões de crescimento para este ano, de 3% para 2,5%.

Convenhamos, não é uma grande diferença. Continua um PIB em expansão com inflação média no chão. Mas, se permitem, o jeitão da coisa ficou um pouco mais feio. A percepção de que a recuperação para valer, com recuperação de empregos, depende de muitos fatores ainda em suspenso, como, claro, quem será o próximo presidente.

Não foi só aqui. Ainda ontem saíram indicadores mostrando que a economia da União Europeia desacelerou, assim como a japonesa. Entre os ricos, os Estados Unidos continuam em marcha forte, mas com um viés negativo. Eis a sequencia: mais crescimento, mais estímulo, mais inflação, sobem os juros, valoriza-se o dólar, desvalorizam-se as demais moedas, especialmente dos países emergentes, incluindo a gente. Ou seja, dólar mais caro atrapalha muita gente.

Acrescentem aí a ameaça ainda presente de uma guerra comercial entre Estados Unidos e o resto do mundo, os riscos geopolíticos (Irã, Rússia) e a alta dos preços do petróleo – e temos fatores suficientes para gerar desconfiança. E situações concretas difíceis.

A crise dos caminhoneiros vem lá de fora: combustíveis e dólar mais caro.


A economia mundial continua em expansão, pelo terceiro ano seguido. A China garante seus 6,5% de crescimento, o que é bom para seus fornecedores, Brasil muito incluído. Mas algo apareceu no ar, uma sensação de que não é bem assim.

Fazer o quê?

Temos bastante serviço por aqui. O governo e o Congresso têm muitas matérias importantes para aprovar, a começar por alcançar algum alívio para os caminhoneiros. Estes podem até estar exagerando – e estão – mas um aumento de 50% no diesel, em menos de um ano, é difícil de suportar.

A Petrobras também estava fazendo o que tem de fazer. Compra mais caro, vende mais caro. E os governos não têm dinheiro para reduzir impostos.

Apenas um exemplo das enrascadas em que nos metemos. E que exigem dos governantes e legisladores mais do que briguinhas para saber quem pode mais. E, dos políticos, mais do que salvar o deles.

Imagem do Dia

Toledo (Espanha)

É hora de rediscutir privilégio da prisão especial

Sergio Moro trancou Lula numa “sala reservada” da Polícia Federal. Atribuiu o privilégio à “dignidade do cargo” que o preso ocupou. O juiz Luiz Carlos Rezende e Santo também enviou o tucano Eduardo Azeredo para uma “sala de Estado Maior”. Por quê? As penitenciárias mineiras ''passam por problemas de toda sorte”, escreveu o juiz. E Azeredo, figura de “inegável status”, “ex-governador”, merece “segurança individualizada”, justificou o magistrado. Decisões desse tipo ajudam o brasileiro a enxergar mais uma velha anomalia nacional: a cana dos poderosos.

No Brasil, os criminosos são tratados conforme o status social e a graduação profissional. Um político poderoso ou qualquer cidadão com canudo universitário —médico, advogado, jornalista…— mata uma pessoa e vai para uma prisão especial. Um jovem da periferia é flagrado com uma pequena quantidade de maconha e é enfiado numa cela superlotada, virando mão-de-obra para as facções criminosas.

Um ex-presidente e um ex-governador se beneficiam de dinheiro roubado do povo e vão para acomodações com banheiro privativo, TV individual, roupa de cama limpa, café da manhã, almoço, jantar e ceia. A suavidade do castigo é regulada pela origem do preso, não pela gravidade do crime. É aviltante, mas tem amparo legal. Ou igualam-se os presos ou elimina-se o privilégio. Extinguindo-se a cana especial, petistas e tucanos organizarão passeatas contra o abandono e a superlotação das prisões. Do contrário, logo, logo haverá filas de sem-teto exigindo hospedarias especiais como as de Lula e Azeredo.

Vida adjetivada


Como é fácil a vida quando ela é fácil, e como é difícil quando ela é difícil
Philip Roth (1933-2018)

O TCU pode abrir a caixa da OAB

A notícia é boa, resta saber se vai adiante. A repórter Daniela Lima revelou que o Tribunal de Contas da União pretende abrir a caixa-preta do cofre da Ordem dos Advogados do Brasil. Estima-se que ele movimente a cada ano R$ 1,3 bilhão anuais. Cada advogado é obrigado a pagar cerca de R$ 1 mil em São Paulo e no Rio, e a administração do ervanário é mantida a sete chaves. Se isso fosse pouco, o presidente do Conselho da Ordem é eleito indiretamente. Em 2014, seu titular, o doutor Marcos Vinicius Coêlho, prometeu realizar um plebiscito entre os advogados para saber se eles preferiam uma escolha por voto direto. Disse também que colocaria as contas da OAB na internet. Prometeu, mas não fez.

A Ordem foi uma sacrossanta instituição, presidida no século passado por Raymundo Faoro. De lá para cá, tornou-se um cartório de franquias. Em 2015, na qualidade de presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, o deputado Wadih Damus (PT-RJ) condenou o instituto legal da colaboração dos réus da Lava-Jato: “Delação premiada não é pau de arara, mas é tortura.” Ele tem todo o direito de dizer isso como cidadão, mas uma ordem de advogados não tem nada a ver com isso. A OAB defendeu o financiamento público das campanhas eleitorais e meteu-se na discussão dos limites de velocidade no trânsito de São Paulo. Esses assuntos não são da sua esfera, como não o são do sindicato dos médicos, e disso resulta apenas uma barafunda. Cada advogado pode ter as ideias que quiser, mas nem a Ordem, nem suas seções estaduais, devem se meter em temas tão genéricos e controversos. Coroando as interferências divisivas da Ordem, ela defendeu a deposição de Dilma Rousseff.

Uma Ordem de advogados pode tomar posição em questões gerais, como a OAB de Faoro desmontando o Ato Institucional nº 5. Mesmo nesse caso, não custa lembrar que o texto do instrumento ditatorial foi redigido pelo ministro da Justiça Luís Antônio da Gama e Silva, ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, sucedido no cargo por Alfredo Buzaid, outro diretor das Arcadas. Ao contrário do que ocorre com os médicos, comprometidos com a saúde dos pacientes, o compromisso dos advogados com o Direito é politicamente volúvel. A Constituição da ditadura do Estado Novo foi redigida por Francisco Campos, um dos maiores juristas do seu tempo. Felizmente, naquele Brasil havia também um advogado como Sobral Pinto, defendendo Luís Carlos Prestes com a lei de proteção aos animais.

Quando os juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos chegam ao aeroporto de Washington, tomam táxis. Quando os conselheiros da OAB chegam a Brasília, têm à espera Corollas pretos com motorista. Esse mimo é extensivo à diretoria da instituição. (O juiz Antonin Scalia dirigia sua BMW. Seu colega Harry Blackmun andava de Fusca e nele viajaram suas cinzas para o cemitério.) Num outro conforto, se a OAB recebe um convite para participar de um evento na Bulgária, seu representante viaja com a fatura coberta pelos advogados brasileiros.

Não se pode pedir que a sigla da OAB deixe de ser usada como mosca de padaria, mas será entristecedor vê-la defendendo o sigilo de suas contas.

O mundo precisa de adultos responsáveis, não de otimismo infantilizado

São Paulo, a maior cidade do Brasil, pode enfrentar mais uma vez uma crise da água em ano eleitoral. E não em qualquer eleição, mas nesta que se anuncia como uma das mais duras e truculentas da história recente, agravada ainda pelas “fake news”. Na primeira crise da água, em 2014, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) reelegeu-se no primeiro turno afirmando que estava “tudo sob controle”. Apesar das evidências cotidianas de que algo muito grave estava acontecendo, a maioria da população de São Paulo preferiu acreditar que tudo ia ficar bem e a vida poderia ser retomada sem maiores alterações. A descoberta mais importante revelada pela crise foi o nível de desconexão com a realidade a que as pessoas podem chegar para não serem obrigadas a enfrentar as dificuldades, fazer mudanças permanentes na vida e pressionar os governantes e legisladores por políticas públicas. E como estão dispostas a acreditar em qualquer um que pronuncie a expressão “sob controle”. O problema é que qualquer pessoa que diga, em tempos de mudança climática, que algo está “sob controle” ou é mentiroso ou é maluco. Mas de novo estamos voltando a esse tipo de irresponsabilidade alimentada pela incapacidade de se responsabilizar de adultos infantilizados que preferem acreditar em qualquer estupidez a ter que enfrentar o mal-estar que sentem nos ossos.

No evento que marcou os 15 anos do Fórum Pacto Global, da Rede Brasil das Nações Unidas, em 16 de maio, Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), fez uma intervenção contundente no palco do auditório do Museu de Arte de São Paulo (MASP): “Não é justo vir a um evento desses e não falar o que (a pessoa) realmente sente. A água no Brasil é uma agenda política rebaixada. O tema da água só aparece na eleição como tragédia e denúncia, sem propostas”, afirmou.


As séries históricas, algo tão mencionado na crise de 2014, já não fazem sentido num planeta alterado pela mudança climática. “As nossas séries históricas, aquele mecanismo que a gente sempre utilizou, de olhar pra trás para projetar o futuro, acabou. Não tem mais condições de se fazer absolutamente nada com as séries brasileiras. Eu sou estatístico de formação... Quem tentar fazer alguma correlação com as séries históricas nos últimos dez anos no Brasil aqui no Cantareira (principal sistema de abastecimento de água de São Paulo) matematicamente faz, mas pra que serve?”, questionou Andreu, um dos principais articuladores do Fórum Mundial da Água, que se realizou pela primeira vez no Brasil em março. “A variabilidade do período do ciclo hidrológico em função das mudanças climáticas está completamente alterada no Brasil e no mundo. E ainda se tenta explicar o amanhã por uma média.... Fica mais ou menos assim: não tá na média nunca. Aí, no ano que dá na média, alguém corre lá e diz: ‘Ó, voltou ao normal, voltou pra média’. Mas a normalidade agora é a exceção.”

Segundo Vicente Andreu, existe a possibilidade de uma crise da água em São Paulo ainda pior do que a de 2014. Ele afirma também que, apesar de o Cantareira ter deixado de abastecer 1,6 milhão de pessoas, o consumo seria hoje de 300 litros por habitante ao dia, o mesmo que antes da crise. “O gráfico de abril no Cantareira bateu em 2014. Se não chover em maio vai ser pior do que 2014. Então não dá mais pra tentar vender para as pessoas uma segurança que não tem. Nós temos que afirmar, sem vergonha: ‘Não sei, não sabemos’”, diz. “Temos que trabalhar com o princípio da precaução. E o princípio da precaução é, por natureza, pessimista. Essas coisas precisam ser tratadas de maneira verdadeira, com a complexidade, com as incertezas que as coisas têm, para que as pessoas acreditem. Se elas não acreditarem, não adianta nada.”

Ser responsável hoje é afirmar que a situação NÃO está sob controle. Por irresponsabilidade geral, a crise de 2014 não provocou mudanças significativas e permanentes nos padrões de consumo. Há muito o que fazer na indústria e na agricultura, que têm muito mais impacto, assim como nas casas das pessoas. Nem foram feitos os investimentos necessários em reflorestamento e recuperação da vegetação do entorno do Cantareira, uma medida mais do que urgente. A Mata Atlântica é uma floresta arrasada. É preciso recuperá-la. Quem se agarra a séries históricas está, de fato, se agarrando a seus empregos num planeta que já mudou.

Pode chover mais ou menos neste ano. A crise da água pode ser maior ou menor. O que é preciso compreender é que não é uma crise e outra crise lá não sei quando, mas uma catástrofe em curso, uma realidade deste momento histórico com a qual temos que lidar, na qual haverá um número maior e mais frequente de eventos extremos. Não é opcional. A mudança climática está aí. E não vai embora porque enfiamos a cabeça dentro de um frasco de Rivotril.

Há várias barreiras travando o enfrentamento desse momento de urgência. A primeira delas é que os adultos dessa época carregam uma mentalidade de século 20 e estão criando filhos com uma mentalidade de século 20. Ainda com a convicção de que bastam obras e tecnologia que tudo se resolverá, na crença absoluta da potência humana. Seguidamente sem perceber que esse “pode tudo” causou uma mudança na Terra. Tanto que cientistas respeitados defendem a alteração do nome desse intervalo de tempo geológico do planeta, que passaria a se chamar de Antropoceno – ou o período em que a espécie humana se tornou uma força capaz de deformar a paisagem global.

Outra barreira é o momento geopolítico, com um pesadelo como Donald Trump liderando a maior potência mundial e as democracias em crise existencial profunda. No Brasil, que abriga a maior porção da maior floresta tropical do mundo e deveria estar dando exemplo, mas não está, perdeu-se a chance de fazer uma grande mudança de paradigma quando São Paulo viveu a crise da água. Os interesses eleitoreiros se impuseram, e a população, já esgotada por tantas dificuldades econômicas e decepções políticas, se deixou alienar mais uma vez.

O debate sério sobre a água e a mudança climática só entrará na pauta das eleições deste ano se houver muita pressão dos eleitores. Sem políticas públicas para enfrentar os desafios do aquecimento global e outras alterações provocadas pelos humanos, o que inclui desde zerar o desmatamento na Amazônia até ampliar o saneamento básico para toda a população, não há enfrentamento de fato. Mas o contexto é de rebaixamento da política, de um modo geral, e de baixa credibilidade dos políticos tradicionais. Para agravar, Jair Bolsonaro, que já se revelou incansável no ato de proclamar sua ignorância sobre todos os temas, lidera as intenções de voto em cenários sem Lula.

Quem trabalha com as questões da mudança climática tem se feito uma pergunta recorrente: como fazer com que as pessoas compreendam o que acontece hoje no planeta e passem a agir, o que significa tanto pressionar o poder público para tomar as medidas necessárias quanto mudar padrões arraigados e se adaptar a uma vida que será diferente? Havia a expectativa de que São Paulo, pelo tamanho e importância que tem no cenário brasileiro, pudesse ser um laboratório de conscientização e propostas criativas durante a crise da água que começou em 2014. Mas a oportunidade foi perdida. E a crise da água logo foi esquecida pelos que ainda têm o privilégio de poder esquecê-la, como se tivesse sido apenas um soluço.

Com os índices do Cantareira se revelando mais uma vez perigosos, as falsificações e mascaramentos já começaram. Nesta segunda-feira, 21 de maio, o Cantareira estava com 47,8% da capacidade. Em 2012 e 2013, anos que antecederam à crise, o Cantareira operava com 73,5% e 61,5%, segundo reportagem do UOL. Mas a Sabesp (empresa de saneamento do estado de São Paulo) já afirmou que “não há motivo para preocupação”. A irresponsabilidade do “sob controle” já começa a ecoar. Afinal, Geraldo Alckmin deixou o cargo de governador de São Paulo para disputar a presidência da República pelo PSDB.

Há ainda uma outra barreira impedindo que as pessoas despertem. E esta pode ser a mais difícil de transpor. Esse momento da história, no qual a mudança climática se torna o maior desafio, encontra um tipo de humano que foi moldado pela indústria do entretenimento. Homens e mulheres se tornaram adultos infantilizados esperando que lhes digam o que está acontecendo, o que pensar e como reagir, e o que têm de consumir a cada vez, de produtos materiais a conceitos. É nessa chave que entra a atual neurose do “otimismo”, que faz com que os “pessimistas” se tornem uma espécie de traidores que não querem que o mundo melhore.

Já escrevi neste espaço e não me canso de repetir: acusar o mal-estar dessa época é um sinal de saúde mental. Agir como carneiros saltitantes de desenho animado enquanto a Amazônia é destruída, a falta de água ameaça São Paulo, o Ártico degela aceleradamente, os eventos climáticos extremos se sucedem e as populações mais frágeis começam a se deslocar pode demonstrar dificuldade para se conectar com a realidade. Com essa negação é preciso se preocupar.

Mas é para esse tipo de comportamento que a indústria de entretenimento preparou a geração de consumidores de emoções que aí está. E está preparando a nova que vai assumir um mundo em dificuldade extrema. As carinhas sorridentes, a raivinha e os coraçõezinhos das redes sociais são um estágio a mais na infantilização da humanidade. Somos adultos botando desenhos fofos em posts o dia inteiro.