Os teólogos há muito o notaram: a esperança é o fruto da paciência. Deveríamos acrescentar: e da modéstia. O orgulhoso não tem tempo de esperar… Sem querer nem poder estar à espera, força os acontecimentos, como força a sua natureza; amargo, corrompido, quando esgota as suas revoltas, abdica: para ele, não há qualquer forma intermédia. É inegável que é lúcido; mas não esqueçamos que a lucidez é própria daqueles que, por incapacidade de amar, se dessolidarizam tanto dos outros como de si próprios.
Emil Ciorán
quinta-feira, 27 de junho de 2024
A tornozeleira e a vida social
Os acusados pelo 8/1, respondendo no conforto do lar aos crimes que cometeram em Brasília, não estão satisfeitos com essa condição. E com razão. A tornozeleira eletrônica que são obrigados a usar restringe sua vida social. Dependendo da hora, impede-os de prestigiar rodeios, cultos evangélicos e shows de cantores sertanejos. Além disso, ela é difícil de acomodar dentro das botas de vaqueiro. E a proibição de se comunicarem com seus aliados golpistas é mais um suplício —se não puderem conversar com outros bolsonaristas, vão conversar com quem?
Daí, para muitos, só havia uma coisa a fazer: quebrar a tornozeleira —há vídeos no YouTube e no TikTok ensinando— e fugir, de preferência para a Argentina, cujo novo presidente é um libertário. Para evitar o controle de fronteiras, acharam rotas e transportes alternativos, como caminhões por estradas vicinais, travessia de rios em barcos clandestinos e até deslocamentos a pé por centenas de quilômetros. Tudo pela liberdade.
Foi o que declarou outro dia uma foragida já a salvo em Buenos Aires: "A gente não pode ter o pensamento contrário ao do governo que está no poder. Deixei tudo para trás e fui buscar minha liberdade", disse ela. E um advogado da Associação de Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro —sim, existe, e funcionando legalmente— foi taxativo: "A liberdade é um direito assegurado em tratados internacionais e na Constituição". Significa que Drácula e Jack, o Estripador, se precisassem, viveriam aberta e livremente no Brasil.
Nos anos 1960 e 70, também não se podia pensar diferente do governo e muitos brasileiros tiveram de fugir para outros países. Não porque quisessem, mas era o único jeito de escapar da tortura nos cárceres e quartéis, às vezes só interrompida pelo "suicídio" ou por suas "fugas" e fuzilamento por "resistência à prisão".
Não tinha essa moleza de tornozeleira, não.
Daí, para muitos, só havia uma coisa a fazer: quebrar a tornozeleira —há vídeos no YouTube e no TikTok ensinando— e fugir, de preferência para a Argentina, cujo novo presidente é um libertário. Para evitar o controle de fronteiras, acharam rotas e transportes alternativos, como caminhões por estradas vicinais, travessia de rios em barcos clandestinos e até deslocamentos a pé por centenas de quilômetros. Tudo pela liberdade.
Foi o que declarou outro dia uma foragida já a salvo em Buenos Aires: "A gente não pode ter o pensamento contrário ao do governo que está no poder. Deixei tudo para trás e fui buscar minha liberdade", disse ela. E um advogado da Associação de Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro —sim, existe, e funcionando legalmente— foi taxativo: "A liberdade é um direito assegurado em tratados internacionais e na Constituição". Significa que Drácula e Jack, o Estripador, se precisassem, viveriam aberta e livremente no Brasil.
Nos anos 1960 e 70, também não se podia pensar diferente do governo e muitos brasileiros tiveram de fugir para outros países. Não porque quisessem, mas era o único jeito de escapar da tortura nos cárceres e quartéis, às vezes só interrompida pelo "suicídio" ou por suas "fugas" e fuzilamento por "resistência à prisão".
Não tinha essa moleza de tornozeleira, não.
Bibliotecas secretas
Já é conhecido o poder econômico das empresas tecnológicas mastodônticas que revolucionaram o nosso tempo, as chamadas big techs. Na semana passada, tivemos mais uma prova de sua magnitude pecuniária: circulou a notícia de que a Nvidia – detentora de mais de 70% do mercado global de chips para inteligência artificial – conquistou o alto do pódio, a posição de mais valiosa do mundo, com um preço de US$ 3,33 trilhões. A Microsoft, dona do Windows, foi desbancada para o segundo lugar – vale “apenas” US$ 3,32 trilhões. Em terceiro segue a Apple, avaliada em US$ 3,21 trilhões. As três juntas somam uma cifra intergaláctica, que dá mais ou menos cinco vezes o PIB de um país do tamanho do Brasil.
É também conhecido o poder político dessas gigantes do capitalismo. Trata-se de uma força imperial que vem do alto, como a das divindades. Elon Musk, proprietário da SpaceX, da Tesla e do X (exTwitter), costuma desfilar por aí e por aqui rodeado por um séquito de tietes da extrema direita, incensado como santo profeta. Nas outras big techs, os sintomas de prepotência são iguais. Em maio do ano passado, a seção brasileira do Google
publicou em sua página inicial um link para um texto que fazia campanha contra a aprovação do Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News. Foi um choque. Muita gente, incrédula, se perguntava: como é que pode um site de buscas estrangeiro, que sempre jurou ser apartidário, respeitoso e isento, tentar encabrestar desse jeito a opinião pública de um país soberano?
Pois é, como pode? Muito simples: não pode. Ou não poderia. Tanto não poderia que, quase um ano depois, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o relatório com suas conclusões sobre o caso. Segundo o relatório, o Google incorreu em “abuso de poder econômico”. Diagnóstico preciso.
Preciso e desolador. Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima da lei – acima do alcance da lei. Quando estão na China, é verdade, posam de subservientes, mas, no resto do planeta, chutam a porta sem se incomodar com as boas maneiras. Tratam as tentativas de regulação como incômodos incidentais que vêm de baixo. Olham para a autoridade pública do mesmo modo que o playboy filhinho-de-papai olha para o guarda de trânsito que tenta multá-lo por excesso de velocidade.
E isso não é tudo. Aliás, isso não é nem o principal. A riqueza desmesurada e a estonteante máquina de propaganda não são as características centrais desses colossos da era digital. O que os coloca acima de todas as outras organizações, públicas ou privadas, é o saber técnico que acumulam a portas fechadas, entre quatro paredes de titânio. Nisso – mais do que no dinheiro sem limites e na capacidade de manipulação ideológica – reside a maior ameaça que eles representam para o mundo democrático. Esses bunkers inexpugnáveis abrigam um saber proprietário, privativo e blindado que é só deles e de mais ninguém.
O termo “saber”, aqui, não significa “sabedoria”. Não existe sapiência dentro desses bunkers, longe disso. Não existe cultura. A Meta – controladora do Facebook, do WhatsApp e do Instagram – e suas concorrentes, que lucram espalhando ignorância artificial, obscurantismo e atrações viciantes, não são templos de conhecimento ou de iluminação. São o oposto disso. O que elas concentram em seus escaninhos de silício não é a elevação do espírito, mas a técnica desumanizada, fria, num grau de matematização cibernética que mal imaginamos. Elas armazenam fórmulas e equações complexas que pavimentam a expansão da inteligência artificial, a ferramenta mais assombrosa jamais forjada pelo engenho humano e cada vez mais direcionada contra o talento humano.
As novas bibliotecas secretas, instaladas nas nervuras mais íntimas das big techs, não são mais como aquelas que atravessaram a Idade Média, hospedadas em mosteiros, conventos e abadias. O scriptorium monacal não se abria, jamais, a leitores vindos de fora da Igreja. Lá dentro, os códices e manuscritos conservavam a memória filosófica e teológica da antiguidade em sigilo absoluto. As ideias do passado repousavam em estantes labirínticas, isoladas do mundo secular e tratadas como substâncias perigosas, que não podiam entrar em contato com o presente para não perturbar o status quo.
O que as bibliotecas secretas de hoje têm em comum com suas precursoras medievais é apenas o regime de segredo. No mais, são diferentes. O que elas ocultam não é o pensamento dos antigos, mas os softwares e algoritmos que programam o que virá – à revelia da sociedade. Nenhuma autoridade pública tem meios de examinar seus arquivos. As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las. As bibliotecas secretas da Idade Média nos sonegavam o passado. As do século 21 nos sequestraram o futuro.
É também conhecido o poder político dessas gigantes do capitalismo. Trata-se de uma força imperial que vem do alto, como a das divindades. Elon Musk, proprietário da SpaceX, da Tesla e do X (exTwitter), costuma desfilar por aí e por aqui rodeado por um séquito de tietes da extrema direita, incensado como santo profeta. Nas outras big techs, os sintomas de prepotência são iguais. Em maio do ano passado, a seção brasileira do Google
publicou em sua página inicial um link para um texto que fazia campanha contra a aprovação do Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News. Foi um choque. Muita gente, incrédula, se perguntava: como é que pode um site de buscas estrangeiro, que sempre jurou ser apartidário, respeitoso e isento, tentar encabrestar desse jeito a opinião pública de um país soberano?
Pois é, como pode? Muito simples: não pode. Ou não poderia. Tanto não poderia que, quase um ano depois, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o relatório com suas conclusões sobre o caso. Segundo o relatório, o Google incorreu em “abuso de poder econômico”. Diagnóstico preciso.
Preciso e desolador. Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima da lei – acima do alcance da lei. Quando estão na China, é verdade, posam de subservientes, mas, no resto do planeta, chutam a porta sem se incomodar com as boas maneiras. Tratam as tentativas de regulação como incômodos incidentais que vêm de baixo. Olham para a autoridade pública do mesmo modo que o playboy filhinho-de-papai olha para o guarda de trânsito que tenta multá-lo por excesso de velocidade.
E isso não é tudo. Aliás, isso não é nem o principal. A riqueza desmesurada e a estonteante máquina de propaganda não são as características centrais desses colossos da era digital. O que os coloca acima de todas as outras organizações, públicas ou privadas, é o saber técnico que acumulam a portas fechadas, entre quatro paredes de titânio. Nisso – mais do que no dinheiro sem limites e na capacidade de manipulação ideológica – reside a maior ameaça que eles representam para o mundo democrático. Esses bunkers inexpugnáveis abrigam um saber proprietário, privativo e blindado que é só deles e de mais ninguém.
O termo “saber”, aqui, não significa “sabedoria”. Não existe sapiência dentro desses bunkers, longe disso. Não existe cultura. A Meta – controladora do Facebook, do WhatsApp e do Instagram – e suas concorrentes, que lucram espalhando ignorância artificial, obscurantismo e atrações viciantes, não são templos de conhecimento ou de iluminação. São o oposto disso. O que elas concentram em seus escaninhos de silício não é a elevação do espírito, mas a técnica desumanizada, fria, num grau de matematização cibernética que mal imaginamos. Elas armazenam fórmulas e equações complexas que pavimentam a expansão da inteligência artificial, a ferramenta mais assombrosa jamais forjada pelo engenho humano e cada vez mais direcionada contra o talento humano.
As novas bibliotecas secretas, instaladas nas nervuras mais íntimas das big techs, não são mais como aquelas que atravessaram a Idade Média, hospedadas em mosteiros, conventos e abadias. O scriptorium monacal não se abria, jamais, a leitores vindos de fora da Igreja. Lá dentro, os códices e manuscritos conservavam a memória filosófica e teológica da antiguidade em sigilo absoluto. As ideias do passado repousavam em estantes labirínticas, isoladas do mundo secular e tratadas como substâncias perigosas, que não podiam entrar em contato com o presente para não perturbar o status quo.
O que as bibliotecas secretas de hoje têm em comum com suas precursoras medievais é apenas o regime de segredo. No mais, são diferentes. O que elas ocultam não é o pensamento dos antigos, mas os softwares e algoritmos que programam o que virá – à revelia da sociedade. Nenhuma autoridade pública tem meios de examinar seus arquivos. As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las. As bibliotecas secretas da Idade Média nos sonegavam o passado. As do século 21 nos sequestraram o futuro.
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