sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Brasil tá na mão


À espera que o 'novo' rebente

Você já deve ter ficado rouco de tanto ouvir: nas eleições do ano passado, a nova política derrotou a velha.

Por velha, entenda-se a política praticado pelo PT e seus aliados nos últimos 13 tristes e degradados anos de corrupção.

Por nova… Bem, o que o capitão, seus filhos e os caronas viessem mais tarde a demonstrar que se tratava de uma política novinha em folha.

A poucos dias de completar um mês do rebento, nem do alto de uma goiabeira é possível avistar sinal do que mereça ser chamado de novo.


A não ser que novo tenha sido o capitão e seu filho Eduardo embolsarem o auxílio-mudança pago a parlamentares reeleitos que já moram em Brasília.

Em um país rico, seria razoável que se pagasse a mudança para a capital de deputados e senadores eleitos. Ou a mudança de volta aos seus Estados dos que não se reelegeram.

Mas pagar R$ 33.700 para os que não precisarão se mudar? Muitos recusaram a propina. Os arautos da nova política, Bolsonaro pai e filho, não recusaram.

No caso do pai, o custo do que mais tivesse de mudar para Brasília onde mora há 28 anos correria por conta da presidência da República, como de fato correu.

Nada tem a ver com novo tempo e novas práticas a descoberta dos rolos do filho Flávio, de Queiroz e de sua família empregada durante anos a fio também no gabinete do capitão em Brasília.

Muito menos o fato de Flávio ter homenageado e condecorado tantos policiais militares expulsos da corporação, presos, fugitivos e caçados por envolvimento com o crime organizado.

Admita-se: o novo quis rebentar quando se ouviu do capitão que o filho seria punido se tivesse cometido algum desvio de conduta – bravo! Foi sufocado horas depois quando o capitão recuou.

Definitivamente, o novo não guarda parentesco com o desejo do Banco Central de pôr fim ao controle de movimentações financeiras de autoridades e de alguns dos seus familiares como manda a lei.

Nem com o decreto assinado pelo presidente em exercício, o general Hamilton Mourão, que amplia o número de funcionários autorizados a classificar como secretas determinadas informações.

O desejo do Banco Central poderá ser um duro golpe no combate à corrupção. O decreto do general agride a Lei de Acesso à Informação e por tabela limita a liberdade de imprensa.

Está indo pelo ralo a promessa do capitão de abrir as “caixas pretas” e de adotar a transparência como política de governo. Nada mais velho do que isso tudo que está aí até agora.

Marielle assombra Flávio Bolsonaro mais morta do que viva

Um jornalista italiano costumava me dizer que, às vezes, deveríamos temer mais certos mortos do que os vivos. Os mortos, de fato, não se pode voltar a matar, enquanto sua memória, sua força de denúncia, seu legado ainda continuam vivos. Nos julgam e nos perseguem.

O pesadelo que vive hoje, por exemplo, o senador eleito Flávio Bolsonaro, o filho mais velho do presidente da República, me fizeram lembrar daquele amigo distante.


O jovem Flávio é hoje objeto de investigação por suspeita de ter estado supostamente envolvido, quando era deputado estadual do Rio de Janeiro, em maracutaias de corrupção e obscuras amizades com milícias criminosas através de seu assessor e motorista oficial, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, amigo de sua família desde 1980, em cuja conta bancária foram registrados movimentos milionários muito acima de suas possibilidades financeiras.

O “escândalo Flávio”, como já é conhecido, e que é um espinho no início do Governo presidido por seu pai, se complicou significativamente ao ter aparecido em seu caminho a sombra do assassinato de Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, que comoveu o Brasil e cujos culpados ainda não foram identificados. É como se a jovem ativista feminista tivesse se levantado do túmulo para intervir no assunto.

Nas investigações levadas a cabo há quase um ano para descobrir os responsáveis pelo assassinato de Marielle apareceram os rastros de velhos amigos do senador eleito, hoje supostos responsáveis e executores do crime. Entre os apontados como possíveis suspeitos do assassinato da feminista aparece, por exemplo, o ex-capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Adriano Magalhães da Nóbrega, de 42 anos, hoje fugitivo. Sabe-se que a mãe e a mulher do temido e suposto assassino de Marielle figuravam até alguns meses atrás como assessoras do deputado Flávio, enquanto seu outro assessor e motorista, o ex-policial militar Fabrício Queiroz, é amigo de longa data de Magalhães, também chefe do temido Escritório do Crime, que reúne matadores especiais que agem a soldo e em seu nome.

É como se Marielle, desde o além, tivesse começado a desfazer o novelo de uma trama cujo objetivo ainda desconhecemos e da qual o presidente Bolsonaro queria se desfazer o mais rapidamente possível para evitar turvar seu Governo. Agora, por exemplo, se lembra de que quando a ativista social foi assassinada Flávio foi o único deputado do Rio de Janeiro que se recusou a apoiar a condecoração póstuma da medalha Tiradentes a Marielle. Hoje justifica seu gesto dizendo que a então vereadora de esquerda não tinha se destacado especialmente. Caberia perguntar por que então acabaram com sua vida se era tão insignificante.

No entanto, já em 2003 e 2004, o então deputado estadual havia condecorado duas vezes Magalhães, hoje suspeito do assassinato de Marielle, por “seu brilhantismo e galhardia”, e até lhe havia concedido a máxima condecoração, a Medalha Tiradentes, que negaria à feminista depois de assassinada.

A verdade é que Marielle, no momento em que foi assassinada era uma lutadora contra a violência dos esquadrões paramilitares das milícias, que, embora nascidos para se contrapor aos traficantes que assombravam as favelas, acabaram se tornando, e continuam sendo, tanto ou mais cruéis e perigosos que os traficantes de drogas. E Marielle significava naquele momento a antítese da filosofia bolsonariana e sua visão dos diferentes. Era negra, feminista, lésbica, casada com uma mulher, defensora dos direitos humanos, da esquerda radical e ao mesmo tempo feliz e de bem com a vida e inimiga declarada das milícias.

Justamente daquelas milícias da favela do Rio das Pedras, na zona oeste do Rio, onde dominam o território. Hoje se sabe que a grande maioria dos votos dessa região serviu para eleger Flávio como senador. No ano passado ele considerou que Marielle tinha menos méritos para receber a Medalha Tiradentes dos que atribuiu anos atrás ao seu hoje provável assassino.

O filho do presidente sempre manteve uma visão romântica das milícias do Rio como defensoras dos perseguidos pelos narcotraficantes nas favelas. Seu pai, hoje presidente, quando ainda era deputado federal em Brasília, ia mais longe do que ele. Chegou a elogiar as milícias por sua missão como “grupos de extermínio” com estas palavras: “Enquanto o Estado não tiver a coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio será bem-vindo”. Foi também o único candidato à presidência que não se manifestou sobre o assassinato de Marielle.

É possível que, tendo em vista que a ativista de direitos humanos se revirou perigosamente em seu túmulo para perturbar os sonhos do pai e do filho, estes estejam arrependidos de não terem sido mais condescendentes com a jovem feminista e mais solícitos para descobrir seus assassinos. E o pior, como dizia meu colega jornalista italiano, é que já não se pode voltar a matar os mortos.

E dizem que mudou...

É preciso despetizar Carlos Bolsonaro. Em 2004, ele foi eleito vereador na chapa do PT. Quinze anos depois, ele ainda opera como seus antigos aliados 
Diogo Mainardi 

A era dos presidentes bossa-nova

O polo magnético da Terra está se deslocando de maneira estranha. Os cientistas já sabiam que ia acontecer o momento X, quando ele ultrapassaria o meridiano 180, ou antimeridiano, mas foi mais rápido do que pensavam. A coisa viajou do Canadá para a Sibéria. Dá um certo alívio saber que, desta vez, os culpados não somos nós, os humanos, diariamente acusados de derreter geleiras, exter­minar baleias, emporcalhar rios e ainda insistir em tomar caipirinha com canudo de plástico, um sacrilégio severamente castigado por garçons ecologistas. O polo magnético é regido pelo núcleo externo de ferro líquido da Terra, um infernal oceano com temperaturas de mais de 5 000 graus. Fora os sismólogos, todos nascemos, vivemos e morremos sem nos dar conta de que esse ebuliente caldo metálico está sob nossos pés, ainda que a milhares de quilômetros, emitindo a corrente elétrica responsável pelo magnetismo terrestre, essencial para a atmosfera e, portanto, para a vida.

Não é preciso ser nenhum gênio das ciências sociais para constatar que o polo político também anda mais acelerado. Movidos pelas redes que conectam o mundo neotecnológico, tão ferventes quanto ferro líquido, os novos fenômenos promovem políticos que sabem usar sistemicamente o Twitter e fazer lives, independentemente de seus defeitos ou qualidades. O precursor foi um septuagenário chamado Donald Trump, que demorou para dominar aquelas teclas pequenininhas quando ainda era empresário da construção civil e da autopromoção. A Trump com sinal invertido é a jovem deputada Alexandria Ocasio-Cortez, que fala barbaridades o tempo todo e propõe maluquices baseadas na Teoria Monetária Moderna, um tipo de responsabilidade fiscal ao contrário. O importante é que ocupa espaços e passa autenticidade. O Brasil também tem um presidente dessa nova era, uma espécie de bossa nova digital.

Os mesmos mecanismos que fazem bombar líderes políticos inviáveis até recentemente também criaram um novo tipo de clientela. Com um celular na mão, o cidadão comum que apenas recebia passivamente os velhos truques da propaganda política ganhou uma voz ativa sem precedentes. O tio do WhatsApp é hoje, com o perdão da palavra, um influencer.

A velocidade dos humores — bons ou maus — das redes sociais pegou de surpresa até um político jovem, teoricamente da nova era, como Emma­nuel Macron. Em menos de dois anos, ele passou de garoto prodígio a presidente desprestigiado, desprezado e até guilhotinado em encenações macabras dos coletes-amarelos. Tão ou mais odiados são os parlamentares de primeira viagem, franceses que se entusiasmaram com as propostas de Macron, candidataram-se e conseguiram uma excepcional maioria na Assembleia Nacional para o novo partido do presidente. De esperança de transformação viraram rapidamente alvo de ameaças de morte, estupro e outras violências. E nem pensar em argumentar que o tempo dos processos políticos tem seu ritmo, ninguém transforma um país em um ou dois anos, as reformas só começam a dar frutos depois de certo período e outros blá-blá-blás.
O povo quer mudanças a jato, para ontem, tipo polo magnético, talkey?

Pensamento do Dia


A tragédia dos Bolsonaros

Que atitude tomará Jair diante do dilema entre o dever presidencial e a obrigação parental?

Jair Bolsonaro vai atirar o filho Flávio às feras da política, como o noticiário sugere que fará? Que atitude tomará o capitão reformado diante do dilema entre o dever presidencial de comandar o Estado como um árbitro imparcial e desapaixonado e a obrigação parental de apoiar e proteger o filho?

Pode parecer uma picuinha, mas é da oposição entre imperativos morais mais enraizados, como aqueles que regem a vida familiar, e os deveres impostos pela lei positiva que brotam as grandes tragédias.


“Antígona”, de Sófocles, talvez seja a mais paradigmática delas. Ali, a heroína, filha de Édipo e Jocasta, vive seu calvário porque, contrariando proibição imposta pelo rei Creonte, deu sepultura ao cadáver de seu irmão Polinices. Ela se justifica diante de Creonte dizendo que desafiara o edito real, o “nómos” ou “lei humana”, para obedecer ao que chama de “justiça divina” (“daímônôn díkê”), uma obrigação moral de ordem superior.

Creonte, que também era tio de Antígona, não se deixa convencer e toma uma série de decisões que resultarão na morte da sobrinha e de vários outros personagens, reduzindo significativamente o tamanho da família.

O interessante na peça é que ninguém é inocente. Polinices, afinal, traíra Tebas ao aliar-se a estrangeiros para lançar um ataque contra sua própria cidade. Antígona sabia muito bem qual era a pena reservada para aqueles que desobedecessem ao edito real e mesmo assim a infringiu. O próprio Creonte incorre no delito de “hýbris” (soberba) ao colocar a lei do Estado acima da dos deuses. As contradições entre os diversos níveis de lealdade em que cada indivíduo se vê enredado constituem a matéria-prima bruta das tragédias.

Há, contudo, uma diferença importante entre a situação dos personagens de Sófocles e a do clã Bolsonaro. Como no mundo real não existem deuses, a lei humana é a única norma pela qual agentes públicos podem se pautar.

Blindagem com prazo de validade

Convém duvidar da durabilidade da blindagem. E é ingênuo supor que o esgoto sem fundo em que a vida pública brasileira se meteu possa ser saneado por Bolsonaro, sendo ele produto e aproveitador maior das circunstâncias que jogaram a política na lama e submeteram o país que produz à pregação sindicalista de janots e dallagnols.
Pressa, prudência e — acrescentaria — fé. Oremos. Carlos Andreazza

Sermão de Santo Antônio

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.

Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare persequimini me, et carnibus meis saturamini? (Job, 19): “Porque me perseguis tão desumanamente, vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?” Quereis ver um Job destes? Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
(...)
Padre António Vieira

Imagem do Dia

                   Cavalos mortos no leito do rio seco por sede e fome em Alice Springs (Austrália)

Estreia e reprises

A ida de Bolsonaro a Davos é parte da aposta maior de seu governo: reformas e retomada da economia. A reforma da Previdência, por exemplo, não será tão consensual como Paulo Guedes afirmou. No entanto, tem chance de ser realizada.

Concordo com a tese geral de que um passo correto na economia fortalecerá seu governo. Discordo, entretanto, de quem acha que a economia neutraliza todos os outros problemas.

Não tem sido assim. No passado discutia com simpatizantes do PT o mesmo tema. Argumentavam que o importante era crescimento e renda e a corrupção seria apenas uma nota de pé de página na História do período. Teoricamente, acho que as dimensões econômica e política se interpenetram e, em certos momentos, uma delas pode ser a determinante.


O período de democratização revelou para mim que existe uma grande demanda de valores na vida pública. Na primeira eleição direta, Collor era o caçador de marajás; Lula, o que traria a ética para a política. Na verdade, era uma demanda já na eleição do período anterior, em que Jânio venceu esgrimindo uma vassoura.

O governo Bolsonaro surge com uma demanda maior, potencializada pelas redes sociais e diante de um País bastante severo e conhecedor das táticas evasivas dos políticos. Por isso vejo com a apreensão o episódio envolvendo o senador Flávio Bolsonaro. Os elementos que existem ainda não nos permitem concluir sobre o conteúdo. Mas é possível ter uma opinião sobre como as pessoas reagem quando estão sob suspeita – o comportamento acaba revelando mais do que a própria denúncia.

Quando Flávio Bolsonaro pediu ao Supremo que suspendesse as investigações, usando o foro privilegiado, alguns analistas concluíram que tinha tomado um elevador para o inferno. No primeiro andar já encontrou uma fogueira. Durante a campanha, Jair Bolsonaro, ao lado de Flávio, condenou o foro privilegiado.

Novas revelações – é sempre assim – surgiram e as explicações foram ficando mais difíceis e complicadas.

Surge um novo elemento com a prisão do Escritório do Crime, uma organização criminosa. Nova fogueira pelo caminho. Um dos milicianos teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete de Flávio, então deputado estadual. Flávio disse que a responsabilidade da contratação era de Fabrício Queiroz, o motorista que já o enredara nas transações bancárias, levantadas pelo Coaf. Acontece que é muito difícil um deputado não conhecer perfeitamente seus assessores.

Além do mais, Flávio tem uma visão de que as milícias são um mal menor, porque expulsam os traficantes. E achava razoável que fossem financiadas pela comunidade.

São posições muito delicadas porque se aproximam da apologia do crime, na medida em que ignoram que as milícias vendem gás, controlam parte do mercado imobiliário, do transporte alternativo e em certos lugares elas próprias até assumem o tráfico de drogas.

Bolsonaro elegeu-se repetindo a frase “conhecereis a verdade e ela vos libertará”. Ele se vê agora diante do desafio de João: divulgar a verdade e esperar que ela o liberte.

É apenas uma suposição que o caso de Flávio não atinja o governo. Qualquer observador pode constatar nas redes sociais o desgaste entre os próprios apoiadores do governo. Foi uma campanha feita com explicações diretas pela rede. Os seguidores estão perplexos, pois as explicações agora são em entrevistas escolhidas.

Como o governo Bolsonaro tem bastante popularidade, as perdas talvez sejam subestimadas. Mas em política sabemos que não é bom sangrar.

Na verdade, quem acompanha os debates na direita observa que já existem conflitos abertos, alguns preocupantes. A viagem de um grupo de parlamentares do PSL à China produziu um grande debate interno. Isso tudo se passa na internet, mas a sensação é de que foi uma viagem sem briefing do Itamaraty, sem visão dos limites.

Segundo Olavo de Carvalho, os deputados foram conhecer um sistema de monitoramento facial da Huawei, empresa chinesa acusada de espionagem e que é um dos temas da guerra comercial EUA x China. De modo geral, somos muito sensíveis a sistemas de monitoramentos. Lembro-me do Sivam, fizemos muito barulho em torno dos equipamentos que iriam monitorar a Amazônia. Talvez o barulho tenha sido excessivo, o problema maior é usar todo o potencial do sistema. Isso apenas para dizer que não é uma tarefa de deputados recém-eleitos discutir essa questão na China. Envolve outras dimensões de governo.

O mais desolador é o nível do debate entre eles na redes sociais. Revela, para mim, uma das grandes distorções do presidencialismo no Brasil. Um presidente popular arrasta consigo dezenas de parlamentares. Na verdade, muitos deles são bombas de efeito retardado.

É possível que com eles, ou apesar deles, as primeiras batalhas da economia sejam vencidas. Mas de novo coloco a questão política e cultural: a direita tem consistência para dirigir um país tão diverso?

Outra dimensão preocupante é a questão ambiental. É uma ilusão ver isso com lentes ideológicas. Não é possível que considerem o tema uma trama marxista. O próprio organizador do Fórum de Davos, Klaus Schwab, questionou Bolsonaro sobre isso. Não parecia um marxista.

Antes de partir para Davos, o governo designou para o Serviço Florestal um deputado que é autor de uma lei autorizando a caça de animais silvestres. Pode argumentar que ela existe nos EUA. Eles têm um sistema de controle maior e, além do mais, por que se inspirar nos EUA nesse caso? Não há espaço para essa lei no Brasil. Nem para os setores que querem avançar sobre a floresta para criar gado, liberando carbono e toda a flatulência.

Economia à parte, os passos do governo nas dimensões político-culturais me deixam em dúvida se estou vendo estreia ou versão de um antigo filme.

Decreto de Bolsonaro é atentado à transparência

O decreto presidencial que ampliou o número de servidores com poderes para classificar documentos como ultrassecretos e secretos, com proteção de até 25 anos, renováveis por igual período, é um atentado do governo de Jair Bolsonaro contra a Lei de Acesso à Informação. Essa não é uma lei qualquer. Estamos falando da lei que regula a liberação de documentos e dados produzidos ou obtidos pelo Estado brasileiro.

A lei privilegia a transparência. Em princípio, o cidadão tem o direito de conhecer tudo. A restrição de acesso é excepcional. Por isso mesmo, apenas um seletíssimo grupo de autoridades —presidente, ministros e comandantes militares, por exemplo— podiam definir, com muito assessoramento técnico e grande responsabilidade política, os dados que seriam mantidos longe da curiosidade do público por mais tempo.



O novo decreto incluiu algo como 1.200 ocupantes de cargos de confiança na lista de servidores autorizados a grudar na papelada o selo de ultrassecreto ou secreto. Alega-se que o objetivo é desburocratizar. Lorota. O general Hamilton Mourão, que assinou o decreto como presidente interino da República, minimizou a novidade. Declarou que são pouquíssimas as informações ultrassigilosas. Isso não faz nexo.

Ora, se são poucos os dados sujeitos ao sigilo, por que ampliar o número de canetas com a prerrogativa de impor o breu à sociedade? Além de ofender a inteligência alheia, o decreto da sombra contraria a alma da lei. Flerta com a inconstitucionalidade. É uma dessas peças que merecem um bom questionamento no Supremo Tribunal Federal.

As lições da Estônia, que revolucionou escola pública e lidera ranking europeu de Educação