quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O julgamento

Na contramão dos axiomas do poder à brasileira, um ex-presidente emblemático da defesa dos oprimidos foi desmascarado e condenado

Nos regimes democráticos há o julgamento público, gravado, filmado e televisionado. Uma anormalidade produz uma crise; há um acusado que, tendo o direito de defesa, promove uma disputa, a qual é levada a um juiz que, num julgamento aberto e invocando a lei, fecha o processo.

O antropólogo Victor Turner estudou as crises como “dramas sociais”. Os conflitos recorrentes que investigou entre os ndembu de Zâmbia levavam à segmentação e a uma indesejável perda de continuidade coletiva. Para Turner, processos agudos de disputa interna são marcados por quatro momentos interdependentes. O primeiro seria o da crise, quando comportamentos fogem das normas; o segundo é o do distúrbio por ela causada. O terceiro aciona tentativas de reparação e compensação do malfeito. Nesta etapa, entra em cena a turma do deixa-disso com o objetivo de mitigar os pontos de vista em colisão. Numa quarta e última fase, ocorreria rearranjo, concordância ou cisão. Uma modificação das rotinas tradicionais ou o rompimento do grupo em duas comunidades. Parece familiar, não?

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Na ausência daquilo que o historiador inglês E. P. Thompson chamou de the rule of law — o domínio da lei —, são os incomodados que se mudam. Nas ditaduras, eles são presos ou eliminados, como é comum nas crises sem a mediação de um juízo público englobador. Nos conflitos tribais, investigados por Turner, a norma costumeira levava à bifurcação. Nas sociedades nacionais, a lei escrita e promulgada, aceita por todos e diretamente afastada dos conflitos, é invocada e pode até mesmo ser usada contra aqueles que detêm o poder — controle do contexto. O “domínio do fato”, como foi mencionado na condenação unânime e histórica do ex-presidente Lula — uma persona social dotada de um imenso “capital simbólico”, para que ninguém diga que eu não gosto e não leio, além de Marx, Pierre Bourdieu.
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Charge do dia 28/01/2018
O julgamento foi extraordinário. Pela primeira vez no Brasil, vimos desembargadores condenarem em segunda instância um ex-presidente da República. Assistimos a um drama que, depois de inúmeros inquéritos e vergonhosas descobertas de gorjeta, fechava a cortina reafirmando um adormecido poder da lei aplicada a um representante máximo do poder e dos seus sequazes — aqueles que puseram a política a serviço do enriquecimento particular, em vez de se servirem dela para o enriquecimento público.

Na contramão dos axiomas do poder à brasileira, um ex-presidente emblemático da defesa dos oprimidos foi desmascarado e condenado, dissolvendo as ideologias nativas do “quanto maior menos cadeia”, do “você sabe com quem está falando” e do pós-moderno populismo, no qual todos ganham, ninguém perde e nós (os donos do poder) ganhamos mais do que todos.
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Condenou-se uma figura tabu, tida como intocável. Uma pessoa tão especial e acima da lei que é capaz de suscitar a onipotente, absurda e surreal narrativa de que, sem ela, não haveria democracia no Brasil.
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Outra surpresa foi entender a língua dos desembargadores. Um deles, aliás, tendo consciência do rebuscamento do falar jurídico (construído para não ser entendido pelas pessoas comuns), tinha o cuidado de traduzi-lo para o português.

O ritual inovador reiterava muito do que tenho escrito neste espaço sobre as imposições dos papéis ou cargos públicos aos seus ocupantes. O julgamento foi histórico porque também recapitulou o papel de presidente da República nos seus privilégios e nos seus deveres e suficiências. O eleito em nome dos pobres e dos que queriam uma sociedade mais igualitária — o supremo magistrado da nação — pode alinhar-se aos ricos e com eles assaltar o país? Os papéis mais altos e nobres exigem mais lealdade dos seus atores. Quanto maior o cargo, maior a responsabilidade e punição.
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A narrativa de que o condenado foi vítima de uma conjuração corporativa — uma inquisição — é absurda, a menos que o julgamento não tivesse sido realizado publicamente, seguindo o processo do estado democrático de direito. Suas evidências não foram colhidas por órgãos secretos de segurança, como ocorre nas ditaduras — esses regimes, aliás, tão a gosto dos que recusam a realidade e confundem meios e fins.
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Mas como nada se fecha no Brasil, já se projeta uma regra fora da regra: há o condenado, mas não pode haver prisão. Confunde-se desobediência civil com a tentativa de assassinar as mediações que sublimam o confronto aberto sem aviltamento dos envolvidos. É justamente no julgamento, nesse rito final, que se faz justiça não a pessoas, partidos ou facções, mas à sociedade brasileira. Sem ele, não se abre caminho para a democracia. Sua rejeição nos leva diretamente à violência que assassina mediações.

Lula diz ter consciência do que está acontecendo no Brasil. Eu jamais tive dúvidas e sobre isso fiz uma obra demonstrando o óbvio: o nosso problema é assistir como a casa sempre vence a rua, e como relacionamentos pessoais englobam a lei.

Até, quem sabe, esse julgamento.

Ora, a lei

Um amigo meu, professor da Universidade de Miami, cientista reconhecido, foi parado pelo guarda. Excesso de velocidade.

Tentou se explicar: "Sim, estou apressado, mas o senhor compreenda, estou atrasado para uma aula na universidade..."

Nem terminou a frase.

"Atrasado, professor? Não tem problema, vou aplicar a multa bem rapidinho", disse o policial, enquanto teclava no celular. "Pronto, pode ir, e cuidado, há outros pontos de fiscalização"

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No Rio, um dos carros utilizados pelo prefeito Crivella teve 55 multas no ano passado, das quais 38 por excesso de velocidade, 7 por passar no sinal vermelho e cinco por circular na faixa exclusiva de ônibus.

Ficou por isso mesmo. As multas foram canceladas porque, tal é a alegação, autoridades têm o direito de não respeitar as leis de trânsito. Ou, dito pelo avesso, furar sinal vermelho é legal para o prefeito. Ou ainda: o motorista de um carro oficial pode, legalmente, colocar em risco a vida de outros motoristas e pedestres.

E por que o prefeito teria esse direito? Digo o prefeito porque certamente a culpa não é do motorista. Algum superior manda: desça o pé porque Sua Excelência está atrasada. Alguém poderia dizer: o motorista pode recusar uma ordem ilegal ou cuja execução possa causar danos a terceiros. Mas não funciona assim, conforme todos sabemos.

Pode parecer um caso pequeno, mas basta dar uma olhada no noticiário para se encontrar uma sequência de histórias com o mesmo enredo: a lei não vale para autoridades nem para as elites políticas.

Por exemplo: nenhum funcionário pode ganhar mais que o juiz do Supremo Tribunal Federal. Logo, vencimentos superiores a esse teto são ilegais, certo?

Errado: assim como criaram exceções para legalizar o excesso de velocidade, o "sistema" inventou verbas indenizatórias que tornam legal o excesso de vencimentos. Caso do auxílio-moradia, pago mesmo a funcionários que têm casa própria e cujo cônjuge também recebe a mesma a vantagem.

Lula foi condenado em segunda instância,por unanimidade, e tornou-se ficha suja, inelegível, portanto. O ex-presidente luta de todas as maneiras para escapar da cadeia e ser candidato - uma prerrogativa do réu. Mas reparem os argumentos apresentados pela sua defesa e por diversos outros chefes políticos: sendo Lula um líder popular, pré-candidato e primeirão nas pesquisas, as condenações não deveriam ser aplicadas. Quer dizer, a lei não deveria ser aplicada.

Já são três casos: o prefeito pode furar sinal vermelho, o juiz pode ganhar mais que o teto, um ficha sujo condenado pode ser candidato. O prefeito é responsável pelo respeito às leis do trânsito; o juiz é responsável pela aplicação da lei em geral, inclusive da que trata de remunerações do funcionalismo; e o presidente é responsável pela ordem legal republicana.

Todos legalizando o ilegal. E desmoralizando a política.

Tem mais.

Em defesa da deputada Cristiane Brasil, governistas e aliados dizem que não há qualquer problema em ter um ministro do Trabalho envolvido com ... questões trabalhistas. Mais ou menos como se o chefe da Receita Federal estivesse enrolado com a Receita.

Há centenas de parlamentares processados por crimes comuns, muitos já réus em mais de uma ação, e que continuam legislando, não raro em causa própria. A lei pena não vale para eles.

A Caixa Econômica Federal está em óbvia situação difícil, consequência de uma combinação de má gestão e corrupção. Três vice-presidentes acabam de ser afastados e não se pode esquecer que Geddel Vieira Lima, hoje preso, foi justamente vice-presidente da Caixa.

Por isso, sem dinheiro, a Caixa está restringindo a concessão de empréstimos, inclusive para governos estaduais. Bronca geral dos parlamentares da base. Ameaçam não votar a reforma da Previdência ou qualquer outra coisa. Ocorre que se a Caixa fizer tais empréstimos aos Estados, sem aval da União, estará cometendo uma ilegalidade. E se o Ministério da Fazenda der o aval, seria outra ilegalidade.

Pois o pessoal não vê aí qualquer obstáculo. É só aprovar alguma regra legalizando essa ilegalidade, um assalto à Caixa - e assim se vai, quebrando uma estatal atrás da outra.

Gente fora do mapa

A maldição lulista

Junte as peças de um quebra-cabeça e você vai perceber que o Lula é um grande manipulador e uma companhia maldita. Quem o acompanha acaba na cadeia ou na penúria. Muitos têm os seus dias de glória, mas, com o tempo, a estrela apaga. É o caso do ex-presidente do PT, o fundamentalista Rui Falcão, hoje no ostracismo, e de Zé Dirceu, condenado a 30 anos de cadeia. Lula tem a capacidade de transformar gente em marionetes. No momento dois estão no tablado falando por ele, andando por ele e protestando por ele: Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias. Indicados a postos chaves do partido, ambos falam como bonecos de costas ocas por onde passa a mão do ventríloquo.

Quem ficou perto do Lula nos últimos vinte anos acabou na desgraça. Até empreiteiros, antes intocáveis, vivem seus dramas de condenados. Políticos que se aliaram ao Lula estão presos, outros respondem a processos na justiça. Os tesoureiros do PT mofam nos presídios, a exemplo do João Vaccari Neto, isolado em um presídio de Curitiba. Condenado a 24 anos, conta os dias que faltam no calendário da parede da cela.

Lula, como sempre, até ser condenado a doze anos, negava tudo. Nega os próprios amigos, como, aliás, nega também o sítio, o triplex, o mensalão, as propinas da Petrobrás, o dinheiro ilegal da construção do Instituto Lula e a conta corrente da Odebrecht. Nega até os filhos atolados em corrupção.

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Lula manipula muito bem os fanáticos da seita. Prestigia, dando-lhes cargos importantes no partido e depois exige que todos o defendam como cães raivosos. Manda que seus seguidores ataquem, provoquem e incitem a baderna para depois ele aparecer como conciliador. A velha tática funcionou até a última semana quando os desembargadores de Porto Alegre o condenaram a 12 anos em regime fechado. Ali, ele se revelou desobediente às leis do país. Mesmo assim, traçou a sua linha de ataque: Lindbergh, hidrófobo, saiu espumando em sua defesa, ameaçando reagir com violência, escorraçando a justiça e os desembargadores que atuaram na condenação do seu chefe.

Gleisi, coitada, vocifera contra todo mundo. Ameaça até matar as pessoas que são contra o seu pajé. Diz que a decisão da justiça é ilegal e que os três desembargadores combinaram a sentença. Não acredita em nada do que foi investigado, pois a cegueira do fanatismo a impede de enxergar um julgamento isento de paixão. Em comum aos dois o afago do Lula. Foi dele a ideia de transformar Gleisi em presidente do PT e Lindbergh em líder do partido no senado, pois tem certeza que pode manipular os seus dois bonecos de pano.

Esse filme do Lula é velho. A fita está arranhada. Pelas mãos dele já passaram outras marionetes que o ventríloquo manejou com habilidade. O ex-deputado André Vargas foi um deles. Chegou a vice-presidente da Câmara. Flagrado com a mão na massa, foi condenado a 14 anos de prisão. Zé Dirceu foi outro. Assumiu o governo de Lula com toda pompa. Depois de levar um chute no traseiro, vive atualmente de presídio em presídio, depois de condenado a 30 anos. E o Palocci? Palocci, médico, enganou como ministro da Fazenda. Já respondia a processos quando foi prefeito de Ribeirão Preto. Mas o Lula o vendia à elite como o mais habilidoso dos seus ministros. Na cadeia, condenado a 12 anos de prisão, tenta entregar o chefe.

E a Dilma? Bem, a “Mãe do PAC”, expulsa da presidência da república, vive por aí como uma maluca repetindo o mantra “é golpe, é golpe, é golpe”. Não sabe até hoje que foi presidente da república. E o Genuíno? O ex-presidente do PT está recolhido em casa, vive em profunda depressão, depois que foi condenado no mensalão a 6 anos de prisão por corrupção. O ex-senador Delcídio do Amaral, líder do PT, foi renegado pelos petistas tão logo caiu em desgraça. Delúbio Soares, ex-tesoureiros do partido, foi condenado a 5 anos de prisão na Lava Jato, está com tornozeleira e liberdade vigiada. Todos fazem parte do pacote da maldição lulista, que viam no chefe o curandeiro da tribo para todos os males. Imagine que até a mulher, Marisa Letícia, depois de morta, Lula a promoveu a investidora, dona do Triplex, para tentar se livrar da propriedade do imóvel.

Como se vê, a lista dos vivos encaminhados para o purgatório de Lula é extensa. Até morte houve, imagine. Os prefeitos de Santo André, Celso Daniel, e o Toninho do PT, de Campinas, foram silenciados depois que ameaçaram contar as mutretas de seus companheiros petistas nas respectivas prefeituras. Estão dormindo hoje em cova rasa. No caso de Daniel, a sua ex-mulher, Miriam Belchior, teve o silêncio comprado por cargos importantes no governo do PT.

Agora que você você sabe dessa pequena mostra dos que foram para o buraco na era lulista, pode imaginar que não existe apenas o “Pacto de sangue” feito por Lula com a Odebrecht como denunciou o Palocci. Na verdade, existe também a maldição lulista que cai impiedosamente sobre a cabeça dos seus companheiros.

Jorge Oliveira

Sangue nos olhos

A sarna revolucionária pequeno-burguesa, a que se referia o líder comunista Luís Carlos Prestes, está de volta. Após a condenação do ex-presidente Lula, o PT ensaia uma estratégia de ruptura institucional. Quer o nome do caudilho na urna eletrônica: na lei ou na marra. A opção pela via extra institucional visa ainda emparedar o Judiciário para Lula não ser preso.

O instrumento dessa ruptura seria uma frente de esquerda em torno de Lula. Para consolidá-la, uma nova versão da Carta aos Brasileiros de 2002 propugnará a quebra de contratos constitucionais – como a “regulamentação” dos meios de comunicação e referendos – e retorno às velhas concepções cepalinas do nacional-estatismo.


Lula e o PT repetem dois erros históricos da esquerda: a crença messiânica de que as massas virão em seu socorro e a superestimação de suas forças. As mobilizações do último dia 24 não autorizam leituras triunfalistas.

A esquerda sempre se deu mal quando optou pela ruptura institucional. A Aliança Nacional Libertadora se isolou quando pregou “todo poder à ANL”, uma cópia dogmática do “todo poder aos sovietes”. As massas não acompanharam Prestes na quartelada de 1935.

Em 1964 voltou a pesar a mão com “Reforma agrária na lei ou na marra”, “grupos dos onze”, emparedamento do Congresso Nacional, insubordinação no quarteis. Às vésperas do movimento militar combatia a “conciliação do governo Jango”! A “resistência popular” ao golpe foi uma quimera.

Setores da esquerda não extraíram as lições da derrota de 1964, enveredaram pela aventura armada. Foram derrotados política e militarmente. Prestes chamou esse voluntarismo de “sarna do revolucionarismo pequeno-burguês”.

A esquerda só se deu bem quando se integrou a movimentos amplos da sociedade, em marcos da legalidade, como na campanha do Petróleo é Nosso, Reformas de Base, Diretas Já, Tancredo Neves. O próprio PT só chegou ao poder quando abandonou o radicalismo.

Hoje é impossível enfrentar os problemas nacionais por meio de uma “frente de esquerda” e de um programa rupturista. O discurso do sangue nos olhos afugentará o eleitorado refratário ao radicalismo, que é a maioria. A chamada “rebelião cidadã” cairá no vazio.

Os partidos de esquerda não estão dispostos a avalizar a aventura do “Lula até o fim”. Com razão, desconfiam que o caudilho quer brincar de Tiradentes com o pescoço alheio. Vão cuidar da eleição dos seus.

Lula e seu partido podem estar blefando. Mais cedo do que pensam terão de retificar a estratégia, operação sempre delicada quando efetivada em meio da batalha. Haverá sempre petistas a dizer “recuar, jamais!”

Mas a alternativa ao recuo é o gueto.

Hubert Alquéres

Os dobermann

Comportam-se como coquetéis-molotoff ambulantes. Semeiam tempestades para colher catástrofes. Estimulam saques e invasões de propriedade. Pregam desobediência civil. Constroem frases que instigam ao ódio e à agressividade e consideram isso adequado às ações revolucionárias que gostariam de ver em curso. No geral, não acreditam em Deus nem no paraíso, mas creem no inferno e no demônio a quem recomendam seus adversários.

No exterior, falam mal do Brasil, espalham intrigas e boatos entre companheiros que os multiplicam por lá e, depois, repercutem essas informações aqui como se fossem produto de analistas internacionais. Revolucionários de esquerda, não têm pátria. Sua pátria é qualquer lugar onde possam viver sem trabalhar, sustentados por alguma instituição interessada em lero-lero e rastilhos de pólvora. Diante de toda a adrenalina lançada sobre o ambiente político nacional, não vivêssemos num curto-circuito conceitual de democracia com tolerância irrestrita, seriam condecorados com cintilantes pares de algemas por incitação à violência.

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Diferentemente do que muitos creem, tal comportamento não corresponde a um modo peculiar de fazer política; essa linha de atuação se afasta radicalmente da política porque é revolucionária. Não há nela qualquer vestígio de boa intenção, pois tudo o que faz fica sob controle do fígado. É coisa hepática e biliar. Nada constrói; só destrói. Ninguém pode acusar quem adota tais posturas de um único gesto de benevolência. O objetivo de suas ações não é resolver a miséria; a miséria é objeto de discurso e meio para chegar aos objetivos. Seu distributivismo, seu igualitarismo e sua “justiça social” prescindem de seus próprios bens. Exigem apenas os haveres alheios.

Não é de qualquer pessoa determinada que me ocupo aqui, mas de um perfil e de um tipo de conduta que vem contaminando indivíduos e grupos sociais. O momento político, num ano eleitoral, cobra discernimento. E o cidadão zeloso deve estar atento para aquilo que os candidatos expressam. Com a mesma prudência com que você se afasta de um Dobermann (cão feroz com pouco freio), acautele-se contra quem apenas expressa ira e malquerença. Eles latem e mordem. Note bem: todos os holocaustos e crimes contra a humanidade foram conduzidos por personagens com o perfil que descrevi.

A justiça não é um subproduto do ódio, a paz não é um subproduto da violência e a democracia não é uma casa de tolerância.

Percival Puggina

Paisagem brasileira

Georgina de Albuquerque, Paisagem, oscartao colado em madeira
Paisagem, Georgina de Albuquerque (1885 – 1962)

Em plena Era da Corrupção, STF ameaça libertar os ladrões do dinheiro do povo

Se o Supremo Tribunal Federal mudar a jurisprudência atual da prisão após a condenação em 2ª Instância, e tudo indica que os ministros farão esse retrocesso, o país poderá entrar em convulsão social. Não se pode conceber, na atual conjuntura, que os corruptos, os ladrões do dinheiro público, na ordem dos bilhões, sejam libertados e fiquem livres para roubar ainda mais. Apesar de Fernando Henrique Cardoso achar que a corrupção não é responsável pelo atraso do país, ouso discordar do sociólogo presidente, que ainda não adquiriu o dom da verdade absoluta, que alguns pensam que têm.

A corrupção é, assim, a saúva que drena os recursos para o desenvolvimento da nação. O dinheiro roubado e enviado para a Suíça, deixa de irrigar a educação e a saúde do povo, não circula no país, fica sem gerar empregos nem distribuir renda.
Estamos vivendo uma era de corrupção total em todos os níveis da vida pública e da privada, pois não haveria corrupção no Executivo, se os próceres da iniciativa privada não corrompessem os fracos de caráter, para obterem benesses como perdão de multas, absolvições no CARF da Receita Federal, assim como também para conseguir empréstimos generosos com juros abaixo do mercado, no BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

Aliás, por falar em mercado, essa palavra mágica, que usam para substituir o execrado lucro, a Lava Jato não pode sofrer esse baque, que estão montando desde que um senador do PMDB disse que tinha que parar a sangria.

Contamos com a presidente do STF, ministra Carmem Lúcia, que precisa convencer seus pares sobre a inoportunidade de colocar em votação a prisão somente após o trânsito em julgado em última instância recursal.

Ora, essa profusão de recursos foi erguida justamente para beneficiar as elites, os políticos, os empresários e os servidores públicos de alta patente dos três Poderes. Pois o povo pobre só tem direito mesmo, na prática, à primeira instância, e os réus vão logo sendo mandados para as cadeias fétidas e imundas, humilhados e sentenciados à morte pelas péssimas condições dos presídios.

Por favor, senhores juízes, não brinquem com o inconsciente coletivo, o povo não aguenta mais tanta podridão vinda de seus representantes e dos que são pagos pelos sacrifício da população pagadora dos impostos que são sonegados pelos ricos. Especialmente agora, quando se vislumbra um fio de esperança, com as condenações já decididas.

Assim, perceber que vão dar um golpe para acabar com a Lava Jato, creio que a desilusão e a desesperança tomarão conta da população, dando a impressão nefasta de que o país não tem jeito mesmo e assim é que deve ser para sempre. Esse será o pior resultado que advirá de uma mudança nas regras da prisão após a confirmação da sentença na segunda instância.
Nas democracia, todos são iguais perante a Lei, quando perdemos esse status, ninguém é de ninguém e nada mais é respeitado. Qualquer cidadão, seja da Classe A ou da Classe D, passando pela média, deveria cumprir nos mesmos presídios que hoje abrigam criminosos da camadas menos favorecidas. São prisões fétidas, os presos são como porcos chafurdados na lama.

Não adianta, depois do leite derramado, os ministros do STF afirmarem perante a história que cumpriram seu dever, pois será tarde demais para consertar o erro. Desculpem a tristeza e a contundência do relato.

Lula reage mal à condenação e se aproxima da derrocada final

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No dia 26 deste mês, à “Folha de S.Paulo”, o bispo Angélico Sândalo Bernardino, pertencente à Diocese de Blumenau, disse o seguinte sobre a condenação de Lula (calma, leitor, não é só ele que diz isto, juristas e intelectuais de renome dizem o mesmo): “Para muitos, o golpe ficará pela metade se não houver o banimento político de Lula. Isso é um desserviço à democracia. Ao que tudo indica, as provas não foram apresentadas”. Dom Angélico ainda perguntou: “Aceleraram (a ação judicial) por quê? Quais são os interesses que estão por trás? Que existem interesses econômicos internacionais por trás é evidente”.

Em 1989, o então deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva, que afirmara que, no Congresso Nacional, havia 300 picaretas, embora os tenha tratado, em seus dois governos, a pão de ló, ganhou de Brizola o apelido de “Sapo Barbudo”. Na primeira eleição direta para a Presidência da República, também em 1989, referindo-se à corrupção, Lula disse: “A corrupção e a existência de concorrências ilícitas não são novidade. Novidade acontecerá no dia em que alguém for para a cadeia”.

Eis, então, que aconteceu exatamente o que Lula afirmou. Não só depois do mensalão, mas desde o início da operação Lava Jato, “a corrupção e a existência de concorrências ilícitas”, como ele explicitou, levaram muitos políticos à prisão. Valeu o velho jargão: “Todos são iguais perante a lei”. Como disse o juiz Sergio Moro, “não importa o quão alto você esteja. A lei estará acima de você”. Um princípio, diga-se de passagem, que só recentemente começou a vigorar.

O ex-presidente jamais imaginou que seria, um dia, condenado, em primeira instância, pelo crime de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, a nove anos e seis meses; e, agora, em segunda instância, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, pelos mesmos crimes, com uma diferença – a pena saltou para 12 anos e um mês de prisão. Na véspera desse julgamento, que é o primeiro e talvez o mais brando de vários outros, o ex-presidente disse o seguinte: “Duvido que neste país tenha um magistrado mais honesto do que eu”. Condenado pelo Tribunal, embora rendido, desabafou: “A decisão eu até respeito. O que não aceito é a mentira pela qual eles tomaram essa decisão”.

A questão que me persegue há anos, leitor, é esta: Lula seria o maior (ou o único) responsável pelo desastre que as administrações petistas fizeram ao país? Seria ele o único responsável pela derrocada do PT e, principalmente, por sua própria derrocada final? Os organizadores do PT, em 1980, entre os quais se destacam inúmeros intelectuais (e juristas), não têm responsabilidade? O ex-torneiro tinha condições de assumir a incumbência que lhe jogaram sobre os ombros?

Não estou sugerindo, leitor, que Lula seja absolvido. Na realidade, ele quis ou se deixou corromper. Mas ele não teve, em sua trajetória, um só amigo para lhe dizer verdades, que hoje batem na cara de todos nós. Teve companheiros – alguns, além de políticos, mais sabidos do que companheiros. Não me regozijo do seu fim. Digo que o PT e Lula enterraram uma enorme oportunidade – a de fazer o país feliz.

Lula se tornou “príncipe” e se perpetuou no poder. Ele não está sozinho quando distribui por aí ofensas e agressões contra pessoas e instituições. Está acompanhado de intelectuais (e juristas) de renome. Que essa gente (respeitável) opte já pela humildade e pelo silêncio!

E deixem, finalmente, que o Brasil caminhe!

'Ninguém aprendeu nada com o desastre de Mariana'

O agricultor José Matozinhos dos Santos, 66 anos, pertence à terceira geração da família a nascer em Água Quente, uma comunidade espalhada nos morros da zona rural de Conceição do Mato Dentro, no centro de Minas Gerais. Sua mãe, Rosa Jesus, nascida e criada naquelas terras, completou 106 anos em 2017 vivendo no mesmo lugar. Matozinhos conta que seu bisavô foi o primeiro descendente a se assentar em Água Quente, há quase dois séculos – o município, um dos tantos criados no ciclo do ouro mineiro, tem 315 anos.

A vida de Matozinhos, de sua mãe e das dezenas de famílias da comunidade – assim como a de centenas de moradores de outros distritos da região – foi profundamente alterada desde o início de um dos mais emblemáticos e polêmicos projetos de mineração no país, o Minas-Rio, há dez anos.

Idealizado pelo empresário Eike Batista, que não demorou a passá-lo para a frente, o empreendimento tornou-se um dos principais na carta mundial da Anglo American, mineradora de origem sul-africana que, sediada em Londres, é responsável por toda a operação – as minas em Conceição do Mato Dentro, o mineroduto de mais de 500 quilômetros que transporta o minério de ferro até o porto de Açu, no Rio de Janeiro, e o terminal de onde ele é exportado.

 Três anos depois de começar a extração, e ainda sem dar o retorno esperado, será aprovado provavelmente ainda neste mês o licenciamento que permitirá ampliar a produção das minas em uns 60% – um salto para estimáveis 26,5 milhões de toneladas de minério por ano, ante uma capacidade máxima que hoje varia entre 16 e 18 milhões de toneladas. Para isso, estão previstos o alargamento das cavas de exploração e o alteamento da barragem de rejeitos, que ganhará 20 metros para cima – terá capacidade para armazenar quatro barragens de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, protagonista do maior acidente ambiental do Brasil. Como o minério de ferro de Conceição do Mato Dentro não é dos mais puros, ele é submetido a um processamento, o que demanda mais água e, consequentemente, gera mais rejeitos.

Batizado de step 3 e envolto em polêmicas desde a sua apresentação em 2015, o que inclui denúncias que vão de crimes ambientais a ameaças de morte contra parte da comunidade atingida, o projeto tem o apoio do governo mineiro, que o classificou com o selo de “empreendimento prioritário”, mesma classificação dada à volta das atividades da Samarco, suspensas desde a tragédia de novembro de 2015.




Um dos principais nós em Conceição do Mato Dentro é o que fazer com famílias como a de José Matozinhos, que vivem logo abaixo da barragem de rejeitos. Além de Água Quente, ainda estão nessa rota Passa Sete (nome do córrego homônimo onde a barragem foi erguida) e o também bicentenário distrito de São José do Jassém. No total, são cerca de 400 moradores, quase todos negros e dependentes da vida da roça, que nos últimos três anos viram desaparecer a água antes limpa e abundante.

A barragem foi erguida sobre o córrego Passa Sete, que corta e abastecia as três comunidades. Hoje a água é turva, fedida e escassa, sem os peixes de outrora – a mortandade foi detectada em estudos de biólogos, mas o governo mineiro os considera inconclusivos. Uma pequena cachoeira em Água Quente desapareceu. A população vizinha ao córrego relata que sempre há alguma substância “estranha” descendo da barragem. (As águas do Passa Sete estão indiretamente ligadas ao rio Doce: o córrego desagua no rio Santo Antônio, que por sua vez é um dos afluentes do Doce, ainda contaminado em toda a sua extensão pela lama da Samarco.)

“Já disse para a empresa que é impossível comunidades como Passa Sete e Água Quente ficarem onde estão. Isto é real: os caras tinham um rio e hoje não têm mais”, afirma o prefeito de Conceição do Mato Dentro, José Fernando Aparecido de Oliveira (PMDB).

“Antes fazíamos tudo com a água daqui, tratávamos os animais, lavávamos roupa, pescávamos. Mas acabou”, lamenta-se Matozinhos. Da chácara onde ele vive com a mãe centenária se veem algumas das caixas-d’água instaladas no alto de um morro.

O medo, contudo, aflige as três comunidades: elas estão na chamada zona de autossalvamento da barragem, como era o caso do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (que ficava a 5 km de Fundão, enquanto Passa Sete, a mais próxima, está a 1,5 km da barragem da Anglo American). A maioria dos moradores, atemorizados, quer ir embora. Caso haja um rompimento, eles terão poucos minutos para se salvarem, por sua conta e risco, sendo alertados somente por uma sirene – já instalada pela empresa.

Desde que começou a ser implementado numa das regiões mais preservadas de Minas Gerais, o projeto de mineração é marcado por polêmicas e denúncias de violações aos direitos humanos – quatro pessoas que têm propriedades em disputa com a empresa estão atualmente num programa de proteção do governo estadual por ameaças de morte.

O projeto detonou um conflito na região de Conceição do Mato Dentro (município com 18 mil moradores, a 160 km de Belo Horizonte) que parece longe do fim. A mineradora e outras três empresas terceirizadas já foram autuadas até por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão.

Passada a primeira fase de reassentamentos, quando 52 famílias foram obrigadas a sair da área onde hoje se desenvolve a mineração, restaram centenas de pessoas que estão ao redor do empreendimento. Como esses “vizinhos” estão fora da área de operação, a lei desobriga a mineradora de realocá-los. Nessa situação, além das comunidades localizadas abaixo da barragem, estão várias outras, de nomes como Gondó, Sapo e Cabeceira do Turco (na zona rural de Conceição), que passaram a conviver com os barulhos das máquinas e explosões, pó, poeira e mau cheiro.

O assunto vem sendo discutido pelo Ministério Público Estadual, que tenta um acordo entre a empresa e o governo mineiro para evitar a judicialização do caso, o que provavelmente arrastaria as remoções na Justiça por anos.

A Anglo American não se manifestou. A mineradora disse ter aberto conversas individuais com os moradores, disponibilizando-se às remoções opcionais. O governo de Fernando Pimentel (PT) corrobora a decisão: as realocações devem ser opcionais. Até porque a obrigatoriedade criaria um precedente perigoso num estado que tem a mineração como razão de ser: não são poucas as cidades cujas barragens (e até mesmo minas) estão dentro das áreas urbanas.

“Ninguém aprendeu nada com o maior desastre ambiental do país. O estado comete os mesmos erros vistos em Mariana”, afirma Marcelo Mata Machado, promotor da comarca de Conceição do Mato Dentro.

A tragédia da Samarco não alterou a velha simbiose entre mineradoras e o poder público. Além da fragmentação das licenças ambientais, aspecto criticado pelo Ministério Público Federal, a postura da Anglo American – acusada de manter a truculência dos anos iniciais da MMX de Eike Batista e até de sonegar informações públicas sobre o empreendimento – continua a ser questionada pelos moradores e instituições que atuam no município.

A mineradora, passados mais de dez anos, ainda não teve o lucro esperado – ao contrário, os gastos para a implementação são considerados elevadíssimos, US$ 8,4 bilhões, segundo informou a Anglo American em nota. A aposta da empresa – e, por tabela, do endividado governo mineiro – é que a ampliação do complexo ajude a melhorar as cifras em breve. Para isso, a mineradora promete novos investimentos da ordem de R$ 1 bilhão.

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Chebika Oasis, Tunisia. I want to see something like this one day
Osásis Chebika (Tunísia)

O futuro depende de redes globais de cidades

Em meio ao fluxo incessante de notícias sombrias sobre mudança climática, há um vislumbre de esperança. Enquanto alguns países recuam de seus compromissos recentes com a redução da emissão de gases de efeito estufa, pequenas, médias e grandes cidades se habilitam a assumir essa tarefa. Em todo o mundo, prefeitos esclarecidos agem para reduzir suas emissões de carbono. Nesse processo, surge uma nova política de cidades empoderadas. Mas a questão é se as cidades vão colaborar ou competir com os Estados-nação.

A simples escala da diplomacia do clima empreendida pelas cidades é empolgante. No último ano quase 7.500 cidades, representando mais de 681 milhões de pessoas, se comprometeram com um pacto global pelo clima e energia. O objetivo declarado dessas cidades é acelerar ações que possam cumprir e, em última instância, exceder as metas do Acordo do Clima de Paris. E elas estão bem adiantadas: pelo menos 8 mil cidades já adotaram a energia solar e 300 são completamente autônomas em termos de energia. Os chamados “prefeitos pelo clima” demonstram uma capacidade de liderança que falta a seus correspondentes nos governos nacionais.

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Quer os Estados-nação gostem ou não, as cidades abrem caminho para conquistar um lugar à mesa das decisões sobre políticas públicas globais. Isso é mais radical do que parece. Elas têm sido há muito tempo relegadas por organismos interestatais como a ONU e o Banco Mundial. Quando participavam da agenda global, seu envolvimento costumava ser passivo e canalizado via governos nacionais. Mas a maré está mudando. Líderes de cidades exigem que sua voz seja ouvida em algumas das questões mais complexas do momento, de mudança climática e desigualdade a segurança e migração.

As cidades também provam ser um antídoto imprevisto contra o nacionalismo reacionário. Quando, recentemente, o governo Trump assinou um decreto executivo que reduzia os recursos financeiros destinados a “cidades-santuário” que protegiam imigrantes sem documentação, mais de 380 Estados, condados e municípios americanos se recusaram a aplicar essa legislação. Depois que, neste mês, a Casa Branca decidiu boicotar as negociações sobre acordos globais para administrar a migração, as maiores cidades dos EUA, a despeito disso, declararam estar determinadas a levar adiante essas conversações.

Algumas cidades também tomam a medida inédita de recorrer diretamente a organizações internacionais para moldar processos multilaterais. Em novembro, a Organização Internacional para as Migrações reconheceu o papel central das cidades no provimento de moradia, atenção à saúde, educação e serviços sociais a pessoas deslocadas. Em dezembro, prefeitos solicitaram que o Alto Comissariado da ONU para Refugiados requeira a participação deles no estabelecimento da agenda de alto nível, acelere o compartilhamento de lições entre cidades e consulte regularmente municipalidades sobre questões relacionadas a refugiados.

Trabalhando por meio da ONU, as cidades estão ganhando legitimidade internacional. Por exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, uma agenda de 15 anos para erradicar a pobreza mundial, advoga explicitamente cidades inclusivas, seguras, sustentáveis e resilientes. Essa é a primeira vez que um acordo de desenvolvimento internacional as inclui explicitamente. Em 2016, a Conferência Hábitat III, a maior reunião de especialistas em cidades em 20 anos, também elaborou uma “nova” agenda urbana, reforçando o papel central das cidades para alcançar objetivos de desenvolvimento fundamentais.

Deve-se esperar um verdadeiro surto de diplomacia das cidades. Afinal, na metade do século 21 mais de dois terços da população mundial será urbana. As cidades já são responsáveis por 80% do PIB mundial. No entanto, embora elas estejam tendo um desempenho excepcional em termos econômicos, ainda exercem influência pouco expressiva em termos políticos. Reforçando suas credenciais políticas, elas estão indo além das parcerias em pares para construir alianças genuinamente globais. Há atualmente mais de 200 coalizões entre cidades no mundo, um número de redes maior do que as existentes entre Estados-nação. As cidades agrupam recursos para tratar praticamente de tudo, da gestão da migração ao contraterrorismo, reconhecendo instintivamente sua interdependência. Nesse processo, exercem a soberania urbana quando os Estados nacionais negligenciam sua soberania nacional.

Este quadro não é novo. Entre os séculos 13 e 17, centenas de cidades europeias desenvolveram uma federação não muito rígida para promover o comércio. A Hansa, ou Liga Hanseática, chegou a contar com mais de cem cidades, que desenvolveram seus próprios sistemas legais, códigos tributários e forças armadas. Era, em essência, uma união protodemocrática, com compromissos implementados com base no consenso voluntário. A ausência de uma burocracia elaborada foi uma das chaves para seu sucesso inicial.

Parcerias dessa natureza oferecem questionamentos pungentes para as redes de cidades de hoje – são um lembrete de que as cidades sempre competem e colaboram umas com as outras, independentemente de sua filiação nacional. Também destacam como as cidades exercem mais poder do que até elas próprias reconhecem e que a cooperação é essencial para assegurar que sua voz seja ouvida.

Finalmente, elas demonstram como, a despeito do grande poder de influência do nacionalismo, os cidadãos ainda têm um forte sentimento de pertencer às cidades. Esse sentimento de cidadania se baseia em princípios compartilhados de abertura, diversidade e inclusão.

É só construindo fortes redes de cidades que seus moradores conseguirão traduzir seus valores cívicos numa plataforma para a ação global.

Nem a rosa, nem o cravo....

As frases perdem seu sentido, as palavras perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda destroem os campos e as cidades?

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Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas sobre todos esses quadros boiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres. Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u’a nuvem inesperada num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas frases, elas me soam como uma traição neste momento.

Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros verdes.

Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim, têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só o ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só o ódio ao fascismo, mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver qualquer espetáculo – desde o crepúsculo aos olhos da amada – sem que junto a ele vejamos o perigo que os cerca.

Jamais as tardes seriam doces e jamais as madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam esmagar a poesia, o amor e a liberdade!

Jorge Amado

Brasil vive grave crise democrática, diz ONG alemã

Um novo índice divulgado nesta quarta-feira colocou o Brasil entre os países onde a atuação da sociedade civil e o exercício das liberdades individuais – como os direitos de se manifestar ou de expressar sua opinião – é apenas "limitado". A escala tem cinco níveis e vai de "livre" a "fechado".

Elaborado pela ONG Brot für die Welt, ligada à Igreja Evangélica da Alemanha (EKD), o Atlas das Sociedades Civis destaca que, "desde o controverso processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em agosto de 2016, esse país do G20, a nona maior economia do mundo, vive uma grave crise democrática".

Segundo o relatório, "a participação ativa na política, por meio de movimentos sociais, dá cada vez mais lugar à criminalização de ativistas. O clima político é cada vez mais determinado por um conservadorismo religioso" que desrespeita os direitos de mulheres e homossexuais, "elevando as tensões e as diferenças sociais".

Em protestos contra o governo, a violência aumenta cada vez mais, afirma o relatório. "Unidades especiais agem com gás lacrimogêneo, granadas de luz e som, balas de borracha e, em parte, munição letal contra os manifestantes", o que, segundo o relatório, frequentemente resulta em pessoas feridas e até mesmo mortes.

O Brasil aparece no índice ao lado de outros 52 países onde a livre expressão das liberdades individuais é "limitada pelos governantes por meio de uma combinação de limitações legais e práticas". Outros países da lista são Índia, Indonésia, Moçambique, Haiti e Israel.



O Atlas das Sociedades Civis apresenta uma situação sombria para a atuação da sociedade civil e o exercício das liberdades individuais em todo o mundo e destaca que apenas 2% da população mundial vive em sociedades onde é possível se expressar e atuar politicamente de forma completamente livre.

Essa população soma 148 milhões de pessoas e vive em 22 países, a maioria europeus. Entre eles estão a Alemanha, as nações escandinavas, a Suíça e Portugal. Neles, os cidadãos podem, "sem barreiras legais ou práticas, criar associações, fazer demonstrações em praça pública e obter e difundir informações".

Os autores destacam que há uma relação direta entre liberdades civis e o desenvolvimento de uma sociedade. "Quando se exerce pressão sobre a população surgem conflitos, e isso impede o desenvolvimento", afirmou a diretora de Direitos Humanos da Brot für die Welt, Julia Duchrow, durante a apresentação do estudo, em Berlim. Segundo ela, melhores condições de vida dependem, portanto, do livre exercício das liberdades civis.

Seis países foram analisados em detalhes: além do Brasil, são eles Quênia, Chade, Honduras, Filipinas e Azerbaijão. "Todos têm em comum que as sociedades civis são cada vez mais reprimidas", afirmou Duchrow. Ela citou como exemplos o uso desproporcional de violência policial contra manifestantes e a promulgação de leis que restringem a influência da sociedade civil.

Em todo o mundo, a tendência aponta para os regimes autoritários, e, em muitos países, déspotas têm até mesmo o apoio de parte da população, diz o relatório. Um exemplo são as Filipinas, onde o presidente Rodrigo Duterte conta com a simpatia de muitos cidadãos. "Infelizmente, tendências nacionalistas estão em alta neste momento", diz Duchrow.