O agricultor José Matozinhos dos Santos, 66 anos, pertence à terceira geração da família a nascer em Água Quente, uma comunidade espalhada nos morros da zona rural de Conceição do Mato Dentro, no centro de Minas Gerais. Sua mãe, Rosa Jesus, nascida e criada naquelas terras, completou 106 anos em 2017 vivendo no mesmo lugar. Matozinhos conta que seu bisavô foi o primeiro descendente a se assentar em Água Quente, há quase dois séculos – o município, um dos tantos criados no ciclo do ouro mineiro, tem 315 anos.
A vida de Matozinhos, de sua mãe e das dezenas de famílias da comunidade – assim como a de centenas de moradores de outros distritos da região – foi profundamente alterada desde o início de um dos mais emblemáticos e polêmicos projetos de mineração no país, o Minas-Rio, há dez anos.
Idealizado pelo empresário Eike Batista, que não demorou a passá-lo para a frente, o empreendimento tornou-se um dos principais na carta mundial da Anglo American, mineradora de origem sul-africana que, sediada em Londres, é responsável por toda a operação – as minas em Conceição do Mato Dentro, o mineroduto de mais de 500 quilômetros que transporta o minério de ferro até o porto de Açu, no Rio de Janeiro, e o terminal de onde ele é exportado.
Três anos depois de começar a extração, e ainda sem dar o retorno esperado, será aprovado provavelmente ainda neste mês o licenciamento que permitirá ampliar a produção das minas em uns 60% – um salto para estimáveis 26,5 milhões de toneladas de minério por ano, ante uma capacidade máxima que hoje varia entre 16 e 18 milhões de toneladas. Para isso, estão previstos o alargamento das cavas de exploração e o alteamento da barragem de rejeitos, que ganhará 20 metros para cima – terá capacidade para armazenar quatro barragens de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, protagonista do maior acidente ambiental do Brasil. Como o minério de ferro de Conceição do Mato Dentro não é dos mais puros, ele é submetido a um processamento, o que demanda mais água e, consequentemente, gera mais rejeitos.
Batizado de step 3 e envolto em polêmicas desde a sua apresentação em 2015, o que inclui denúncias que vão de crimes ambientais a ameaças de morte contra parte da comunidade atingida, o projeto tem o apoio do governo mineiro, que o classificou com o selo de “empreendimento prioritário”, mesma classificação dada à volta das atividades da Samarco, suspensas desde a tragédia de novembro de 2015.
Um dos principais nós em Conceição do Mato Dentro é o que fazer com famílias como a de José Matozinhos, que vivem logo abaixo da barragem de rejeitos. Além de Água Quente, ainda estão nessa rota Passa Sete (nome do córrego homônimo onde a barragem foi erguida) e o também bicentenário distrito de São José do Jassém. No total, são cerca de 400 moradores, quase todos negros e dependentes da vida da roça, que nos últimos três anos viram desaparecer a água antes limpa e abundante.
A barragem foi erguida sobre o córrego Passa Sete, que corta e abastecia as três comunidades. Hoje a água é turva, fedida e escassa, sem os peixes de outrora – a mortandade foi detectada em estudos de biólogos, mas o governo mineiro os considera inconclusivos. Uma pequena cachoeira em Água Quente desapareceu. A população vizinha ao córrego relata que sempre há alguma substância “estranha” descendo da barragem. (As águas do Passa Sete estão indiretamente ligadas ao rio Doce: o córrego desagua no rio Santo Antônio, que por sua vez é um dos afluentes do Doce, ainda contaminado em toda a sua extensão pela lama da Samarco.)
“Já disse para a empresa que é impossível comunidades como Passa Sete e Água Quente ficarem onde estão. Isto é real: os caras tinham um rio e hoje não têm mais”, afirma o prefeito de Conceição do Mato Dentro, José Fernando Aparecido de Oliveira (PMDB).
“Antes fazíamos tudo com a água daqui, tratávamos os animais, lavávamos roupa, pescávamos. Mas acabou”, lamenta-se Matozinhos. Da chácara onde ele vive com a mãe centenária se veem algumas das caixas-d’água instaladas no alto de um morro.
O medo, contudo, aflige as três comunidades: elas estão na chamada zona de autossalvamento da barragem, como era o caso do distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (que ficava a 5 km de Fundão, enquanto Passa Sete, a mais próxima, está a 1,5 km da barragem da Anglo American). A maioria dos moradores, atemorizados, quer ir embora. Caso haja um rompimento, eles terão poucos minutos para se salvarem, por sua conta e risco, sendo alertados somente por uma sirene – já instalada pela empresa.
Desde que começou a ser implementado numa das regiões mais preservadas de Minas Gerais, o projeto de mineração é marcado por polêmicas e denúncias de violações aos direitos humanos – quatro pessoas que têm propriedades em disputa com a empresa estão atualmente num programa de proteção do governo estadual por ameaças de morte.
O projeto detonou um conflito na região de Conceição do Mato Dentro (município com 18 mil moradores, a 160 km de Belo Horizonte) que parece longe do fim. A mineradora e outras três empresas terceirizadas já foram autuadas até por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Passada a primeira fase de reassentamentos, quando 52 famílias foram obrigadas a sair da área onde hoje se desenvolve a mineração, restaram centenas de pessoas que estão ao redor do empreendimento. Como esses “vizinhos” estão fora da área de operação, a lei desobriga a mineradora de realocá-los. Nessa situação, além das comunidades localizadas abaixo da barragem, estão várias outras, de nomes como Gondó, Sapo e Cabeceira do Turco (na zona rural de Conceição), que passaram a conviver com os barulhos das máquinas e explosões, pó, poeira e mau cheiro.
O assunto vem sendo discutido pelo Ministério Público Estadual, que tenta um acordo entre a empresa e o governo mineiro para evitar a judicialização do caso, o que provavelmente arrastaria as remoções na Justiça por anos.
A Anglo American não se manifestou. A mineradora disse ter aberto conversas individuais com os moradores, disponibilizando-se às remoções opcionais. O governo de Fernando Pimentel (PT) corrobora a decisão: as realocações devem ser opcionais. Até porque a obrigatoriedade criaria um precedente perigoso num estado que tem a mineração como razão de ser: não são poucas as cidades cujas barragens (e até mesmo minas) estão dentro das áreas urbanas.
“Ninguém aprendeu nada com o maior desastre ambiental do país. O estado comete os mesmos erros vistos em Mariana”, afirma Marcelo Mata Machado, promotor da comarca de Conceição do Mato Dentro.
A tragédia da Samarco não alterou a velha simbiose entre mineradoras e o poder público. Além da fragmentação das licenças ambientais, aspecto criticado pelo Ministério Público Federal, a postura da Anglo American – acusada de manter a truculência dos anos iniciais da MMX de Eike Batista e até de sonegar informações públicas sobre o empreendimento – continua a ser questionada pelos moradores e instituições que atuam no município.
A mineradora, passados mais de dez anos, ainda não teve o lucro esperado – ao contrário, os gastos para a implementação são considerados elevadíssimos, US$ 8,4 bilhões, segundo informou a Anglo American em nota. A aposta da empresa – e, por tabela, do endividado governo mineiro – é que a ampliação do complexo ajude a melhorar as cifras em breve. Para isso, a mineradora promete novos investimentos da ordem de R$ 1 bilhão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário