terça-feira, 26 de maio de 2020

Às escâncaras

O presidente Jair Bolsonaro já não faz questão de esconder que seu governo está à venda. Seu único propósito, agora e no futuro previsível, é agarrar-se à faixa presidencial, ao custo de cada uma de suas promessas de saneamento da política nacional. E que fique claro: a esta altura, não se trata mais de vender cargos em troca de votos para aprovar matérias de seu interesse. Ou seja, não é governabilidade que o presidente procura, pois esta já não existe mais, e mesmo que existisse Bolsonaro não saberia o que fazer com ela. Para Bolsonaro, trata-se, simplesmente, de ter um lote suficiente de votos para não ser cassado num processo de impeachment.


O mais recente negócio de ocasião oferecido na queima de estoque bolsonarista foi a entrega de uma diretoria do generoso Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para um apadrinhado do ex-deputado Valdemar Costa Neto, do Partido Liberal (PL). Esse senhor, com quem agora Bolsonaro mercadeja, já teve de renunciar duas vezes ao mandato de deputado. A primeira em 2005, quando se viu pilhado no escândalo do mensalão e admitiu que recebeu dinheiro do PT. Renunciou para preservar seus direitos políticos. Eleito deputado em 2006 e reeleito em 2010 – quando só obteve o mandato graças ao palhaço Tiririca, folclórico puxador de votos –, renunciou novamente em 2013, quando o Supremo Tribunal Federal decretou sua prisão no processo do mensalão. Enquadrado na Lei da Ficha Limpa, está proscrito da vida política nacional até 2029. Um currículo e tanto.

A despeito disso tudo, o sr. Costa Neto segue sendo o chefão do PL e é com ele que qualquer interessado deve se acertar se quiser o apoio dos 39 deputados da legenda. Na mesma xepa bolsonarista, o Partido Progressista (PP), do igualmente notório senador Ciro Nogueira, espera obter a chefia do FNDE, que tem orçamento de R$ 54 bilhões, maior que o de vários Ministérios. Sob a presidência do sr. Nogueira, o PP, hoje com 40 deputados, tornou-se o partido com o maior número de parlamentares envolvidos no escândalo do petrolão, mais até que o PT, tão execrado pelo presidente Bolsonaro e seus devotos.

Para entregar uma das joias da coroa do Ministério da Educação aos partidos que prometem salvá-lo do impeachment, Bolsonaro não se importou em atropelar um de seus mais fiéis sabujos, o ministro Abraham Weintraub, genuíno representante da “ala lunática” do governo e que havia manifestado ao presidente sua contrariedade. Aparentemente, Weintraub ficou só no esperneio, e agora, como todos os demais fanáticos bolsonaristas, terá de encontrar uma narrativa que explique por que o líder da “nova política” está em aberto contubérnio com o que há de pior na odiada “velha política”.

E não vai parar por aí. Carlos Marun, influente no MDB e que se notabilizou pela defesa que fez de Eduardo Cunha durante o processo que afinal cassou aquele mal-afamado deputado, foi reconduzido por Bolsonaro ao Conselho de Administração de Itaipu. E o comando do Departamento Nacional de Obras contra a Seca foi entregue por Bolsonaro a um apadrinhado do deputado Arthur Lira (PP), líder do bloco chamado de “Centrão” e conhecido também por ser réu na Lava Jato.

Todas essas negociações, em tese, darão a Bolsonaro a bagatela de 220 votos, insuficientes até para dar quórum a qualquer votação (257 deputados), que dirá para aprovar alguma reforma constitucional. Mas é o bastante para impedir que se arregimentem os 308 votos necessários para cassar o presidente.

Ao lotear seu governo, Bolsonaro espera ganhar tranquilidade política para continuar a exercer sua especialidade: criar crises e naturalizar sua truculência, desmoralizando a política e as instituições democráticas. Bolsonaro passou três décadas como deputado dando motivos mais que suficientes para sua cassação. Não só não foi cassado, como elegeu-se presidente da República. A mesma hesitação ante as agressões de Bolsonaro à democracia se verifica agora, e é nisso que o presidente parece apostar para continuar inimputável. Enquanto as lideranças políticas vacilam, o bolsonarismo vai se tornando um mal crônico, com o qual se convive por falta de alternativa.

Bolsonaro é o responsável por Trump isolar o Brasil

Jair Bolsonaro, desde o início de seu mandato, fez o possível para se aproximar de Donald Trump. Até conseguiu alguns encontros. Afinal, o presidente dos EUA simpatizou com aquele fã da América Latina. O atual ocupante da Casa Branca percebeu que poderia extrair vantagens do presidente do Brasil, uma gigantesca economia, tamanho o esforço do líder brasileiro para se enturmar. Além disso, poderia ajudar a reduzir sua imagem de preconceituoso com latino-americanos.

Neste domingo, todo o empenho de Bolsonaro de tornar o Brasil mais próximo dos EUA, ou mais especificamente de Trump, naufragou. Não adiantou nem copiar o ídolo americano ao celebrar a cloroquina. Desde os tempos anteriores à aviação, quando a viagem era de navio, os brasileiros demorarão tanto para chegar a Miami ou Nova York, a não ser que possuam residência permanente ou dupla cidadania, além de algumas raras exceções. 


Serão necessários 14 dias de quarentena fora do território brasileiro para ingressar no território americano. Sabe-se lá quantas escalas serão necessárias, incluindo alguma que permita ao viajante vindo do Brasil passar duas semanas. Creio que a Islândia possa ser uma alternativa. 

Não estou de gozação. Argentinos, paraguaios, uruguaios, chilenos e bolivianos poderão vir aos EUA normalmente. Suas nações não estão incluídas na lista de proibição. O Brasil está porque, assim como alguns países europeus, se tornou um epicentro da pandemia. Talvez até sirva de consolo estar no patamar das nações da Europa Ocidental. Mas, convenhamos, não é por um motivo positivo. Simplesmente, o governo brasileiro se tornou um pária pandêmico, como escrevi aqui outro dia. E já era pária ambiental. Claro, poderão argumentar que os EUA são o maior epicentro. E são. 

Chega a ser irônico ver Trump tão preocupado com alguns poucos brasileiros que ainda viajam para cá, sendo na maior partes das vezes por questões profissionais ou pessoais. Mas Trump sempre colocou a “América em primeiro lugar”. América, claro, como Estados Unidos da América. Bolsonaro deveria saber que isso não inclui o Brasil. Por mais que o presidente brasileiro se esforce para adular o dos EUA, sempre será visto como mais um líder da América Latina por Trump. 

Pior, um líder de uma nação latino-americana que, na visão de Trump, pode agravar a epidemia de Covid19 no país. Diferente do México. Apesar de Trump querer construir um muro separando os dois países, mexicanos com vistos podem embarcar em um avião e viajar algumas horas até os EUA sem problemas. Brasileiros, não. Tudo porque Bolsonaro foi o mais incompetente líder latino-americano no combate o Covid19. Seu negacionismo anticiência fez com que os brasileiros ficassem isolados. 

Guga Chacra

Como surge um genocida


Muitas vezes, e em alta escala, o diabo faz política e dizima povos inteiros
Hermann Hesse

O celular do capitão

Do que tem medo Jair Messias? Diz ele que só entregaria seu celular à justiça se fosse um rato. Alega segurança nacional. Bolsonaro é estúpido, mas não é totalmente burro. No velho ou "novissimo" celular, mora o diabo.

Desenfreado no linguajar, o Capitão desconfia da sombra. Imaginemos quantas ameaças nada veladas faz por mensagens. Gustavo Bebbiano foi seu braço direito na campanha. Demitido do governo e ameaçado pelos filhos do presidente, enviou seu celular para os Estados Unidos. Por precaução.

O celular de Sergio Moro também carece de perícia. O ex-juiz tem o dever moral "e de função" de exibir todas as mensagens que recebeu do ex-chefe. Não apenas as selecionadas por ele.

Desprezíveis na forma de agir, falar, intimidar, Bolsonaro e Moro jamais mostrarão a verdade. A reunião do dia 22 é prova cabal de como age esse tipo de gente. Enquanto Bolsonaro humilhava seu ministério, e proferia ofensas à Nação, Moro mostrou-se impassível, de braços cruzados.

O processo de Moro contra Bolsonaro tem desfecho previsível. O Capitão costuma repetir que é dono da caneta, do País, da Constituição, dos três poderes, do ministério. Ontem, no final da manhã, improvisou uma visita à Procuradoria-Geral da República. As notícias que vêm de lá não tem sido favoráveis a ele.

Procuradores da República, em análises preliminares do processo, encontraram indícios de crime. Bolsonaro quis intimidar a PGR. Augusto Aras lhe deve o cargo.

Jair só não tem força para segurar a onda de popularidade. Está despencando. Fala-se num patamar de 20% de apoio até o final da pandemia. Como castigo, Moro também está vendo ruir seu castelo.
Miriam Guaraciaba

É possível um liberal defender o governo Bolsonaro?

Como no Brasil tudo é possível, não foram poucos os autoproclamados liberais que embarcaram com entusiasmo no bolsonarismo. O casamento de aparências tem durado, mas depois de assistirmos ao vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquele mix insólito de Escolinha do Prof. Raimundo e discurso fascista, alguém ainda acredita que exista amor?

Um a um, cada ministro fazia sua esquete. Desnudou-se a essência do governo: bajulação do líder, arroubos militantes e preocupação única e exclusiva com o projeto de poder. A maior epidemia em cem anos? Importava apenas na medida que colocou governadores como rivais do presidente, e como cortina de fumaça para passar o trator na Amazônia.

Bolsonaro expressou seu desejo de uma população armada para intimidar prefeitos e governadores. Isso caberia num congresso chavista; mas num governo que se diz “liberal”?


Vamos definir os termos. Liberal é quem defende o valor da liberdade individual para a vida em sociedade. Isso começa com um sistema político no qual haja equilíbrio de poderes e limites a seu exercício.

Só assim podemos ter uma sociedade civil com dinamismo próprio, que não apenas orbite —por coação ou bajulação— a autoridade política.

E só assim as pessoas podem ser livres para viver suas vidas de acordo com seus valores e crenças, dando seu melhor e assumindo risco de suas escolhas, dentro de limites necessários para a boa convivência e o respeito à lei.

Ser liberal não é ser contra o Estado. Ele é uma potencial ameaça à liberdade, mas não a única. Como bem nos lembra John Stuart Mill em “Sobre a Liberdade”, a opinião pública também é. Pouco se tem falado desse efeito do projeto bolsonarista: a corrosão da sociedade civil e do debate público.

Massas de fanatizados gritando, ameaçando, xingando a Rede Globo e Sergio Moro de “comunistas”, atacando jornalistas e espalhando fake news são nocivas à liberdade individual, que requer pensamento maduro, responsabilidade e compromisso com a verdade.

“Ah, mas o Guedes…”. Sim, o ministro Paulo Guedes tem uma agenda de reformas liberais na economia. Ótimo. A liberdade econômica é condição necessária, mas não suficiente, de uma sociedade liberal. E mesmo esse plano abstrato tem tido pouco sucesso prático.

Em 2019, quando os ventos sopravam a favor, o governo entregou basicamente a reforma da Previdência, e com atraso. Nada de abertura, nada do “trilhão” das privatizações. Neste ano, com Congresso mais hostil, demandas de gasto da epidemia e necessidade de compor com o centrão, os ventos sopram contra. Será que as entregas econômicas vão aumentar?

As promessas grandiosas de Guedes não se cumprem e começam a gerar ceticismo. Na reunião ministerial ficou clara a rivalidade entre ele e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.

Isso sem falar daquilo que prometeu e não fez: reforma tributária, administrativa. Em seu lugar, fala de nova CPMF e de contratar jovens para fazer estrada e jurar à bandeira. Defendeu o equilíbrio fiscal para Bolsonaro porque este afastaria o risco de impeachment.

Um presidente autoritário interfere nos órgãos de controle e insufla uma militância golpista. No meio disso, abraça o que há de mais fisiológico na política nacional, enquanto o ministro da Economia discute Keynes. Saúde pública e economia afundam. Ninguém parece saber o que está fazendo. Bajulação, fanatismo, autoritarismo e bagunça. Se essa é a tão propalada “primavera liberal”, imagine o inverno.
Joel Pinheiro da Fonseca

Brasil reza na cova


Generais bolsonaristas vão da omissão a arreganhos autoritários

Devido ao despreparo e ao completo apego à estupidez, Jair Bolsonaro conseguiu a proeza —involuntária, claro— de fazer soar palatável a participação de militares na gestão política do país. Mesmo com a lembrança da nefasta ditadura finda em 1985, em comparação ao Jair Futebol Clube qualquer XV de Piracicaba acaba parecendo um carrossel holandês.

As Forças Armadas não são de Lula, Temer ou Bolsonaro, mas do Estado brasileiro. E têm que se subordinar ao comando civil e ao império da lei.

É isso ou a república de bananas, cuja volta, queremos crer, só é desejada por desmiolados que acham divertido passar vergonha coletiva na rua, fantasiados de verde e amarelo.

Por isso, olhemos a mudez dos generais bolsonaristas na já célebre reunião de 22 de abril.


Associaram-se, acoelhados, à defesa das hemorroidas presidenciais, ao banditismo do projeto arma para todos, ao ladino que aproveita a "calmaria" da Covid para dar seus pulinhos, à beatice histérica da ministra sem noção, ao arroubo à Chuck Norris do garganteiro da Caixa e ao autopiedoso libelo puxa-saquista do inqualificável Weintraub. Uma catarse só assombrada pelo medo de, perdido o poder, serem todos presos pela obra que ora edificam. Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos, como bem resumiu Janio de Freitas.

Se a inação foi torpe, a ação se mostrou pior. O general Eduardo Pazuello chancelou depois a recomendação do uso do remédio que, segundo o maior estudo feito no mundo até agora, não só é ineficaz contra a Covid-19 como eleva o risco de morte. Que nome se dá a isso?

Carregando todo o amargor de quem desgraçadamente defende o indefensável, o general Augusto Heleno resolveu alertar que eventual apreensão do celular do chefe trará "consequências imprevisíveis", para alvoroço das vivandeiras de pijama. Já as vivemos, general, mas não serão arreganhos autoritários que farão parar o rumo da história
Ranier Bragon

As lições da pior pandemia da história

Durante a pior pandemia da história, os doentes viam uma imagem apavorante antes de morrer. Uma figura negra com um chapéu de aba larga os olhava do outro lado de óculos redondos. Sua cara era de pássaro, com um bico comprido e disforme. Em uma de suas mãos enluvadas, segurava uma vara longa com a qual examinava o paciente, na maioria das vezes apenas para comprovar se já estava morto. Era o médico da peste.

Este traje é atualmente uma das fantasias mais populares no Carnaval de Veneza. Remonta às epidemias de peste que assolaram a Europa e chegaram a aniquilar um terço da sua população. Em muitas ocasiões, a taxa de letalidade era quase de 100%. Ignorava-se sua origem, sua causa, sua forma de contágio, seu tratamento. Causava tanto terror que se evitava nomeá-la, recorrendo-se a eufemismos como “o mal que corre”.

A peste negra chegou à Europa num navio de marinheiros doentes, procedentes do mar Negro, em 1348. Em sucessivas ondas ao longo dos quatro séculos seguintes, matou centenas de milhões de pessoas. Passaram-se 500 anos até que o causador da doença foi identificado: a bactéria Yersinia pestis, transmitida pela picada de pulgas. Esses insetos viajaram pelo mundo a bordo de ratos que, por a sua vez, eram transportados acidentalmente por humanos em carroças e navios pelas principais rotas comerciais, primeiro a da seda, saindo do foco original na Ásia, e depois por todo o Mediterrâneo. Naquela época, como agora, a atividade humana fez a pandemia explodir.

Sete séculos depois da peste negra, o médico Mark Earnest, da Universidade do Colorado (EUA), recordava esta semana o dia em que entrou num quarto para examinar seu primeiro paciente com covid-19. Estava coberto por duas camadas de luvas, avental, máscara e óculos protetores. “Senti uma onda de culpa”, escreve ele na prestigiosa revista New England Journal of Medicine. “Usava um traje de proteção contra catástrofes que me deixava irreconhecível e que não era para proteger o meu paciente, e sim a mim.” Earnest se sentiu como um médico da peste.
É assombroso comprovar quantas coisas que estamos vendo durante a pior pandemia do século XXI foram inventadas de improviso na do XIV
Mas a figura apavorante do médico da peste é um símbolo do ressurgimento do conhecimento e da ciência frente às crenças religiosas ou fantásticas. O bico da máscara estava cheio de perfume e vinagre, porque em teoria isso desinfetava o ar pestilento desprendido pelos doentes e que se pensava ser o causador da infecção. Todo o corpo ficava selado, envolto em uma túnica fechada para evitar o contágio. E essa vara já era uma medida para guardar a distância de segurança. Era um primeiro exemplo do equipamento de proteção dos profissionais sanitários.

“Com a peste de 1348 começa a era moderna da saúde”, resume o médico italiano Sergio Sabbatani. É assombroso comprovar quantas das coisas que vemos durante a pior pandemia desde o começo do século XXI foram inventadas de improviso na do XIV.

Em Veneza, uma cidade no meio de uma lagoa, foram designadas ilhas às quais os convalescentes eram levados e onde todos os estrangeiros chegados de navio deveriam permanecer durante 40 dias, a quarentena ―do italiano quaranta. Os navios que estavam livres da doença hasteavam uma bandeira amarela, que ainda hoje, no alfabeto das insígnias navais, designa a letra Q, de quarentena.

Os 40 dias são um legado do poder da Igreja. “É o tempo que Jesus passou no deserto sobrevivendo às tentações do diabo e, como se pensava que a peste era um castigo divino, assim se estabeleceu”, recorda o historiador José Luis Betrán, autor de "Historia de las Epidemias en España". O livro detalha o avanço da peste negra no país a partir dos portos do Mediterrâneo, como Barcelona e Valência, em direção ao interior. Foi uma epidemia que durou anos, chegou a matar um em cada cinco espanhóis e foi reaparecendo ao longo dos séculos, sempre causando o mesmo terror.

“Havia alguns que, se conseguiam chegar à janela de repente, se atiravam à rua e morriam, porque, como só havia um homem ou uma mulher cuidando deles, e os enlouquecidos tinham tanta força, não conseguiam contê-los”, escreve em 1651 o artesão Miquel Parets sobre a peste em Barcelona.

Daquela época datam as primeiras tentativas de estabelecer redes de informantes para obter dados reais sobre a epidemia, mas também o obscurantismo e a manipulação de dados para evitar que a notícia de uma epidemia se espalhasse, pois foi então que cidades inteiras começaram a se fechar para conter a peste, diz Betrán. Daquela época datam teorias errôneas com assombrosa semelhança com a atualidade, como que a peste tinha sido fabricada de forma deliberada. A teoria alimentou o ódio contra os possíveis culpados, os judeus, que foram perseguidos e assassinados em muitas cidades europeias, de Barcelona a Estrasburgo.

Por causa da peste foram estabelecidos os primeiros fechamentos de fronteiras e cordões sanitários, junto com a imposição de quarentenas, fumigações e banhos de vinagre aos viajantes que entrassem pelos postos de controle, sob pena de execução de quem se recusasse. Imitando Veneza, muitas cidades e reinos criaram comissões de saúde pública compostas por superintendentes que “deviam controlar a carne, o peixe, os crustáceos, as frutas, os grãos, o vinho, a água, a construção de hospitais, cemitérios, lazaretos, funerais, remédios, médicos, pobres, viajantes e prostitutas”, relata Sabbatani.

Os médicos e cirurgiões, os profissionais sanitários da época, eram vítimas frequentes da praga. Na Veneza de 1348, de 18 médicos da peste registrados, cinco morreram e outros 12 abandonaram sua profissão por medo do contágio.

Algo assim viveu Juan Tomás Porcell quando aceitou o encargo de acabar com a epidemia de peste em Zaragoza em 1564. Todos os seus antecessores no cargo tinham adoecido ou morrido. Porcell foi responsável por 2.000 infectados no hospital improvisado para a epidemia nos arredores dessa cidade espanhola. Diariamente percorria as ruas recolhendo novos doentes. Via imagens dantescas; recém-nascidos abraçados a suas mães mortas, aos quais as parteiras tinham que alimentar com seu próprio leite, sob o risco de se contagiarem, pois também os bebês tinham a peste.

Tentando salvar uma criança, Porcell fez história na medicina. Praticou uma autopsia numa grávida que morreu de peste. Conseguiu tirar o bebê ainda vivo do ventre, mas este faleceu pouco tempo depois. O médico fez pelo menos cinco autópsias sistemáticas para analisar os danos aos órgãos, a composição dos bubos e os gânglios inflamados, sobretudo onde a pulga picou, que costumava ser nas axilas ou virilha, pela presença de pelos. Isto foi algo inédito para a época, pois não se sabe de outro médico com coragem de se arriscar a fazer autópsias em empesteados. Porcell sobreviveu à peste e descreveu seus achados em um tratado médico escrito em castelhano que circulou por toda a Europa.

Sem querer, Porcell criou a disciplina da patologia clínica, ainda hoje praticada nos hospitais, e “anuncia o que será a revolução científica das gerações seguintes”, ressalta a historiadora da ciência Consuelo Miqueo. Seu caso “é paradigmático de uma atitude moderna por apoiar suas propostas preventivas e terapêuticas na experiência, na observação clínica e anatomopatológica de um número muito alto de casos (2.000), analisando variáveis com um procedimento que se acha na base da moderna epidemiologia clínica”.

A primeira vez que um ser humano viu o verdadeiro causador da peste não soube identificá-lo. Foi em 1658, quando Athanasius Kircher colheu sangue de um empesteado e o pôs sob seu rudimentar microscópio. Viu estranhos corpúsculos de forma mutável se movimentarem pelo líquido. A causa da doença inominável só seria descoberta em 1894, quando Alexandre Yersin e Kitasato Shibasaburo identificaram de forma independente o bacilo Yersinia pestis. Haviam se passado 546 anos desde a chegada da peste negra à Europa.

Apesar de atualmente haver tratamentos antibióticos efetivos, a doença continua causando surtos esporádicos, sobretudo em regiões pobres, mas também em países desenvolvidos, como os EUA. O último surto, de 2017, deixou 2.300 infectados e mais de 200 mortos em Madagascar.

Há um último paralelismo entre o passado e o presente. A peste significou a primeira vez na história em que o mundo se globalizou pelo efeito de um só micróbio. Sete séculos depois, estamos na mesma situação.

Guerra pela mente de Bolsonaro

O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril consiste numa farândola de bajuladores, entre ressentidos e vitimizados, que disputam o posto daquele cujo extremismo melhor demonstraria fidelidade incondicional ao presidente; isto enquanto, na costura de quatro momentos, Jair Bolsonaro deixa clara a intenção de interferir na PF para proteger os seus, familiares e amigos, de investigações.

De proposta concreta, ao longo daquelas duas horas em que um governo de autocratas se exibiu, houve somente a de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Não para combate à Covid-19, mas para uso da janela de oportunidades escancarada pela gravidade da doença: aproveitar que as atenções da sociedade estariam voltadas ao enfrentamento da peste e fazer passar a boiada. A boiada: demissão de fiscais, anistia a desmatadores etc.

Não deveria haver surpresa ante a inexistência de debate sobre políticas públicas num encontro do conselho de ministros de Bolsonaro. Este governo é narrativo, de modo que, reunidos os seus principais agentes, só se poderia esperar um desfile de versões e jactâncias, em que prevalecem aflições não com o impacto do vírus sobre o povo, mas com o impacto do que seria a exploração do vírus pelos adversários sobre a percepção da sociedade.

Estão lá os homens virtuosos, que são diferentes (talvez do centrão que o chefe coopta) e que se sacrificam pelo mito — que se sacrificou por nós. Abraham Weintraub, em seu esforço — sem agenda própria — por evidenciar as bordoadas e os processos que toma, reconhece estar ainda aquém do presidente: “Fez mais do que eu. Levou uma facada.”



O ministro da Educação — pela prisão dos “vagabundos” do STF — seria o vencedor do troféu Bolsonarinho não houvesse a concorrência do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, desesperado para ser ministro, responsável pelo Bolsa Jair, “o maior programa da história da humanidade”, cujas bravatas nos informam também que dispõe de 15 armas e de goela para litro de cloroquina. Guimarães, guloso, armado e perigoso, pronto para matar e morrer na guerrilha contra a tirania de Doria e Witzel, está na vanguarda da resistência bolsonarista pela liberdade das hemorroidas — e talvez tenha sido mesmo a inspiração do presidente para aquela pregação armamentista miliciana.

Fica expressa a preocupação de Bolsonaro não com o direito de o cidadão ter e poder portar armas, mas em munir a população para combater medidas restritivas temporárias de governantes eleitos. Armamento para subsidiar a desobediência civil. Não para proteger garantias individuais. Uma compreensão deturpada do que seja liberdade.

E não me venha liberal bolsonarista — este oximoro — com o papo de que a fala do presidente estaria escudada no espírito da segunda emenda da Constituição dos EUA. Conheço o texto. O que Bolsonaro disse, no entanto, nada tem com o que seria defesa de um Estado livre contra a opressão; sendo um estímulo explícito à ação contra decretos de governadores e prefeitos — decretos destinados a tolher a sanha de um vírus assassino e submetidos a controle de constitucionalidade.

Esse conjunto assombroso de campanhas, algumas mesmo criminosas, em uma reunião ministerial eclipsou a mais aberta batalha — sobre o futuro do programa econômico de Paulo Guedes — travada ali. As ideias do ministro da Economia vão questionadas dentro do governo. A agenda reformista liberal está em xeque. A pressão desenvolvimentista cresce, impulsionada pela demanda social por que o Estado induza a economia. O vento virou. “Não existem verdades absolutas” —diz Rogerio Marinho, o desafiante. É uma guerra pela mente de Bolsonaro; que está tentado, Dilma Rousseff em matéria econômica que é.

A alternativa tentadora, que o vídeo mostra ser encarnada também por Braga Netto e Tarcísio de Freitas, pode ser resumida nesta fala do ministro do Desenvolvimento Regional — que trabalha por ter um Minha Casa Minha Vida para chamar de seu: “Se vamos gastar R$ 600 bilhões para resolver uma situação que é emergencial e todos reconhecemos que é necessária, e darmos segurança à população, no caso alimentar, para evitarmos o caos, para diminuirmos a mortalidade das empresas, muito bem. Tá correto. Essa é a boa direção. Por que não 5%, 6%, 7% desse total, 10% desse total, em obras de infraestrutura? Por que não termos a capacidade de alavancarmos emprego num momento em que a retomada, todos os economistas aqui reconhecem, vai ser muito lenta?”

Guedes não reconhece.

A propósito: aquela reunião fora convocada, por Braga Netto, para tratar do tal — ainda obscuro — Pró-Brasil, um PAC com estofo militar. Mais tarde naquele dia, sem a presença do ministro da Economia ou de qualquer representante da pasta, o programa seria apresentado.

Ainda na reunião ministerial, mencionada a possibilidade de privatizar o Banco do Brasil, o presidente pediu que se deixasse aquilo para 2023; mas ele não pensa em eleição.

É uma guerra pela mente de Bolsonaro; o de cabeça já feita.

Os bocas-sujas

Em dezembro do ano passado —só seis meses, e parece uma eternidade—, a atriz Isis Valverde falou um palavrão na novela “Amor de Mãe”: “Você não tem mãe, não? Seu desgraçado! Filho da puta!”. Os sites especializados apressaram-se em repercutir a cena que “chocou os internautas”. Logo estes, que vivem xingando uns aos outros nas redes sociais.


Nelson Rodrigues costumava dizer que o espectador deixava o teatro, depois de assistir a uma peça de sua autoria, com a certeza de ter escutado 300 palavrões, embora não tivesse ouvido nenhum. É que o palavrão estava na cabeça deles, que reconheciam o pecado, o desvio moral, a devassidão, representados no palco, neles próprios. Daí a impressão de sujeira impregnada no corpo e na alma com que voltavam para casa.

O chulo e o calão se tornaram engraçados e naturais na vida do país, mas as pessoas insistem em se espantar com eles. Ou fingem que se espantam. Nelson Rodrigues, de novo, foi ao caroço da questão: “Antigamente, o brasileiro só usava o palavrão por uma necessidade vital irresistível. Havia, entre um e outro, uma distância, uma cerimônia, uma solenidade”, escreveu ele. E concluiu: “De repente, instalou-se nos palcos e nas plateias a doença infantil do palavrão”. A qual também está alojada, como vimos e ouvimos, nos altos gabinetes de Brasília.

Que o presidente é uma boca-suja, todos já sabiam, sobretudo seus eleitores. E, pelo jeito, deve ter contagiado os ministros de “perfil técnico”. Os repórteres Matheus Teixeira e Gustavo Uribe contaram 41 palavrões —Bolsonaro liderou, com 33— usados na balbúrdia de 22 de abril. Alguns de gosto clássico em sua safadeza (“trozoba”) e outros que ainda não haviam sido dicionarizados em seu sentido mais profundo e obscuro (“hemorroida”).

O mais inocente da reunião foram os palavrões. E os garçons servindo à mesa.

Pensamento do Dia


Falta de segurança faz jornalistas do Grupo Globo deixarem plantão no Alvorada

A falta de segurança para seus jornalistas na saída do Palácio da Alvorada fez o Grupo Globo decidir que seus profissionais não mais farão plantão naquele lugar. Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro que são levados a ficar lado a lado com os jornalistas, apenas com uma grade entre os dois grupos, têm insultado de forma cada vez mais agressiva os profissionais de imprensa, de todos os veículos, que estão ali trabalhando. Como animosidade dos militantes tem sido crescente, e sem que haja providências por parte das autoridades para proteger os jornalistas, o vice-presidente de Relações Institucionais do Grupo Globo comunicou a decisão, por carta, ao ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno. 
“Ao cumprimentar V.Exa., trazemos ao conhecimento desse Gabinete uma questão que envolve a segurança da cobertura jornalística no Palácio da Alvorada. É público que o Senhor Presidente da República na saída, e muitas vezes no retorno ao Palácio, desce do carro e dá entrevistas, bem como cumprimenta simpatizantes. Este fato fez vários meios de comunicação deslocarem para lá equipes de reportagem no intuito de fazer a cobertura.
Entretanto são muitos os insultos e os apupos que os nossos profissionais vêm sofrendo dia a dia por parte dos militantes que ali se encontram, sem qualquer segurança para o trabalho jornalístico.
Estas agressões vêm crescendo.
Assim informamos por meio desta que a partir de hoje nossos repórteres, que têm como incumbência cobrir o Palácio da Alvorada, não mais comparecerão àquele local na parte externa destinada à imprensa.
Com a responsabilidade que temos com nossos colaboradores, e não havendo segurança para o trabalho, tivemos que tomar essa decisão.
Respeitosamente,
Paulo Tonet Camargo, Vice-Presidente de Relações Institucionais -Grupo Globo"

Sucesso de mortandade

A atitude negacionista do governo Bolsonaro frente a pandemia e ao número cada vez maior de infectados e mortes no Brasil virou destaque global e consolida a percepção no exterior de um país à deriva, cujo presidente opera em uma realidade paralela
Oliver Stunkel

As razões dos militares

Os militares que estão no governo aparentemente não comandam. Por motivo simples: uma coisa é a aptidão técnica e a formação intelectual para planejar e executar considerando meios e fins. Para isso os militares foram muito bem preparados em suas academias, que equivalem a escolas de business comparáveis às melhores lá de fora.

Outra coisa é o exercício da política, aprendizado que não está nos currículos dessas academias. Tem sido mais fácil para os militares no governo se apegar a seu padrão ético de “cumprir a missão”, “obedecer ao comando hierárquico” e “não abandonar o barco em dificuldades” do que enxergar que prestígio e respeito pacientemente recuperados pelas Forças Armadas após o regime que instauraram e conduziram por 21 anos estão naufragando pelo suporte que emprestam ao que hoje, sob Bolsonaro, deriva numa aventura rumo ao abismo.

 O que os levou a pular para a carruagem do atual presidente, que estava longe de ser a primeira escolha deles, foi a noção de esgarçamento do tecido social e de desagregação institucional ilustrada por dois episódios significativos ainda no início da campanha eleitoral de 2018. O primeiro foi o fica ou sai de Lula da cadeia em Curitiba, devido a uma sequência de canetadas do Judiciário. Bagunça que por um triz não levou à desordem. O segundo foi a bagunça mesmo criada pela greve dos caminhoneiros.


A um candidato sem planos, além de frases de efeito, os militares levaram seriedade, confiabilidade e gente experiente em logística, gestão de recursos, planejamento, disciplina e hierarquia. Acharam que a onda disruptiva que destruiu a reputação de políticos, partidos, imprensa e várias instituições se traduziria num “momento” político capaz de fazer prosperar mesmo num Legislativo hostil a reformas, à transformação do Estado e por aí vai. Não estavam sozinhos nessa mescla de fé e esperança, combinadas a um pouco de cálculo.

Faltou o lado político, pelo qual Bolsonaro enveredou da pior forma possível. Preferiu renunciar ao exercício de seu maior poder, que é ditar a agenda. Preferiu concentrar-se no afago às suas parcelas de seguidores incondicionais, que estão diminuindo.

Jogou fora várias oportunidades de se tornar uma voz pregando convergência, união, pacificação, concentração de esforços. Perdeu tempo e, com a pavorosa crise do coronavírus, perdeu também a moral.

Na mais recente grande crise do governo, a da saída de Sérgio Moro, os militares encontraram como conveniente justificativa para tolerar um governo no mínimo errático a postura do STF de limitar as prerrogativas do Executivo. Além de legislar, o Judiciário em alguns casos até governa, ou não deixa governar. Há um forte debate jurídico e acadêmico sobre o tema, mas militares e políticos, e não só os do Centrão, avaliam esse fato como usurpação de prerrogativas.

Portanto, sob essa ótica, é até “compreensível” o flerte nada discreto do presidente com a crise institucional que os militares não querem que aconteça. O problema político que eles não resolveram é traçar a linha entre o que é “suporte institucional” a um governo destrambelhado e o que é cumplicidade com o destrambelhamento. É o tipo de coisa, porém, que só fica bem clara depois.

Parece evidente neste momento que está além da formação técnica e doutrinária dos militares resolver um nó que é político na mais pura essência. O símbolo de tudo isso é um general, que não é médico, liberando no Ministério da Saúde um documento contendo protocolo de tratamento que médicos que o antecederam não quiseram assinar – e se recusaram a fazê-lo por razões técnicas, e o general o fez por razões políticas do presidente da República.

São razões que passaram a ser, por conivência, conveniência ou inércia, as razões também dos homens que vestiram ou vestem fardas.

Efeitos secundários da covid

Não quero alarmar ninguém mas tenho tido uns sintomas esquisitos. Dor de cabeça, febre… Felizmente, não me apareceram por ter contraído covid mas sim por ter ouvido gente a falar de covid. Tenho sofrido muito. Ouço-os e começo a ferver. E a seguir dói-me a cabeça. O problema é este: muita gente julga que o vírus é uma garrafa que a gente recolhe à beira-mar e que tem dentro a mensagem de um náufrago. Neste caso, o náufrago limitou-se a meter na garrafa um papel em branco, que cada pessoa interpreta à sua maneira. E há hermeneutas que têm lido romances inteiros no papel em branco. Os mais irritantes de todos são os masoquistas. Aqueles que acham que o vírus é um castigo muito merecido.

João Fazenda
Curiosamente, eles nunca são dos mais castigados. Gente que se congratula por o vírus ter devastado a economia, porque isso fará nascer uma civilização melhor, regra geral não ficou no desemprego nem na miséria. É muito interessante. Nas filas para o centro de emprego e para a sopa dos pobres é difícil encontrar admiradores da covid. Os pobres e os desempregados, por uma razão qualquer, não são sensíveis à linda mensagem de amor e fraternidade que o vírus tem sussurrado a tanta gente. Mas as pessoas que não são afectadas pelo brutal aumento do desemprego, pelas falências em massa e pela recessão económica, agradecem muito à covid estes tempos de reclusão, que têm sido tão bons para intensificar o contacto com a família, meditar no sentido da vida e alinhar os chacras. “Fez-nos dar valor ao que é mais importante na vida”, dizem elas, confortavelmente instaladas nos seus sofás, iniciando o visionamento de mais uma série da Netflix juntamente com os seus entes queridos. Só é pena que nem toda a gente veja a pandemia com os seus olhos doces. Pessoas menos sensíveis ao que é mais importante na vida, e que ligam bastante importância precisamente àquelas questões menos importantes e até mesquinhas, como ter dinheiro para pagar a renda e a conta da mercearia, não têm desfrutado tanto dos ensinamentos da covid.

Acaba por ser incrível que, quase cinco décadas depois do 25 de Abril, ainda haja quem aprecie um paizinho severo, que nos restringe a liberdade, nos obriga a ficar em casa, ameaça a nossa saúde e, pelos vistos, nos vai condenar à pobreza. Só falta dizerem que isto precisa é de um coronavírus em cada esquina.

À espera dos bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloquências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
Konstantinos Kaváfis

Depois de tudo que fizeram pelo Brasil, os militares surtaram e hoje apoiam o que há de pior no país

Não dá para falar em desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil omitindo o militar. O militar ensinou engenharia, topografia e desenho. Construiu estradas, obras de arte, edifícios públicos monumentais e igrejas antes de o Brasil ter faculdades especializadas. Deu emprego a matemáticos quando não havia função remunerada para tal tipo de cientista. Desenhou mapas com traçados exatos de rios e correntes marítimas quando ninguém sabia nada de geografia, cartografia, oceanografia e correntes aéreas.

Impulsionou a veterinária, o militar. Precisava de eqüinos capazes de transportar tropas e armamentos. Desenvolveu estudos agronômicos para garantir pastos aos animais e tecnologia de alimentos para ter produtos saudáveis para alimentar a tropa.

Estudou e renovou a medicina, as ciências farmacêuticas e a odontologia ciente de que, sem vencer pestes, remendar ossos e curar feridos, não haveria tropa capaz de vencer batalhas. Disseminou hábitos salutares, procedimentos higiênicos e práticas esportivas para dispor de homens fortes.

Introduziu e desenvolveu o estudo da química, física, mineralogia e metalurgia para a produção de armas e munições. Compreendeu que sem dispor de aço da melhor qualidade, explosivos potentes e manipuláveis, barcos resistentes e bons combustíveis não seria credenciado para guerrear.


Foi pioneiro nos estudos estatísticos para saber quantos eram e onde moravam os brasileiros, do contrário não viabilizaria o serviço militar obrigatório universal e continuaria compondo tropas com camponeses infelizes recrutados no laço ou ladrões e assassinos retirados das cadeias e disciplinados na base da chibata. O IBGE foi imprescindível à modernidade militar.

O militar desenvolveu as comunicações e a logística para ter capacidade de operar em grandes espaços territoriais. Indo à guerra, barganhou usina siderúrgica, esteio de múltiplas indústrias.

Dedicou-se aos estudos aeronáuticos, à eletrônica e a computação para contar com aviões e foguetes que ampliassem sua capacidade ofensiva e sua autonomia relativamente ao fornecedor estrangeiro. Foi pioneiro na pesquisa nuclear visando dispor da arma dissuasão capaz de constranger candidatos a donos do mundo.

Estudou e ensinou filosofia a partir da matriz positivista. Enobreceu nosso “opulento léxico” (Euclides). Inaugurou o pensamento geopolítico sistemático (Mário Travassos). Traduziu a sociologia weberiana (Otávio Velho). Popularizou conceitos marxistas e empenhou-se na interpretação do Brasil (Nelson Werneck Sodré).

Gritos no Clube Militar ecoaram pela Petrobrás. O militar criou o CNPq e impulsionou a pesquisa científica. Turbinou a CAPES para que o país dispusesse de ensino superior qualificado. Ofereceu bolsas de estudo e criou comitês de avaliação do mérito científico. Garantiu recursos para a criação da Casa Ruy Barbosa e muitas outras instituições relevantes.

Reconheceu as ciências humanas como área do conhecimento científico. Propiciou a disseminação de programas de pós-graduação em sociologia do desenvolvimento, ciências políticas e antropologia. Prendeu, bateu e matou professores, estudantes, artistas e jornalistas que não gostavam da ditadura, mas espalhou universidades país afora. Olival Freire conta que, vendo que a repressão sanguinária afugentar cientistas importantes, o militar promoveu “repatriamento de cérebros”.

O militar inaugurou a Finep para amparar a inovação. Criou a Embrapa para revolucionar a agricultura e a pecuária. Criou a Embraer para fabricar aviões e estimulou empresas como a Engesa e a Avibrás, que inseriram o Brasil no sofisticado comércio internacional de armas e equipamentos bélicos.

O militar amparou o surgimento e a consolidação da engenharia pesada que logo se projetou mundialmente e passou a incomodar os concorrentes estrangeiros.

Meus colegas da Sociedade Brasileira de História da Ciência que não me deixem mentir, mas não dá para descrever o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil esquecendo os que se preparam para guerrear.

Eis que, como numa tempestade tenebrosa, o militar pirou, surtou, ensandeceu! Baixou Procusto no militar! Assombrado por um fantasma apelidado de “marxismo cultural”, o militar se abraçou com terraplanistas, criacionistas, negacionistas tresvariados, inimigos jurados da razão.

Primeiro, o militar bateu palmas para o desmonte da engenharia pesada no Brasil. Depois, endossou a venda de empresas estratégicas que ele mesmo ajudou a criar. Finalmente, paraninfou um governo que retira dinheiro das universidades, desidrata agências de fomento à pesquisa, difama os institutos científicos, deixa sem manutenção equipamentos custosos, atenta contra a casa Ruy Barbosa, sabota eventos científicos, corta bolsas de estudo, inclusive as de baixíssimo custo e grande retorno em termos científicos e sociais como as bolsas de iniciação científica! Interrompe a perspectiva de jovens talentos de famílias humildes ingressarem na carreira científica…

Quem quiser acompanhar o lúgubre espetáculo do desmonte da pesquisa científica no Brasil prepare seu estômago e acompanhe as postagens de Ildeu Moreira, presidente da SBPC, nas redes sociais.

Ou assista ao vídeo em que dois ministros-generais manipularam grotescamente estatísticas para, agradando o chefe, relativizar a devastação da pandemia. Onde se viu militar atrapalhando cientistas e médicos que trabalham intensivamente para proteger o povo?

O militar sumiu quando ouviu calado o Presidente da República, em reunião ministerial, resumir a investigação arqueológica à descoberta de “cocô de índio petrificado”.

Senhor Deus dos desgraçados, dizei-nos, Senhor Deus, o que será de nós quando homens pagos para nos proteger perdem o senso?
Manuel Domingos Neto, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.