Efeitos secundários da covid
Não quero alarmar ninguém mas tenho tido uns sintomas esquisitos. Dor de cabeça, febre… Felizmente, não me apareceram por ter contraído covid mas sim por ter ouvido gente a falar de covid. Tenho sofrido muito. Ouço-os e começo a ferver. E a seguir dói-me a cabeça. O problema é este: muita gente julga que o vírus é uma garrafa que a gente recolhe à beira-mar e que tem dentro a mensagem de um náufrago. Neste caso, o náufrago limitou-se a meter na garrafa um papel em branco, que cada pessoa interpreta à sua maneira. E há hermeneutas que têm lido romances inteiros no papel em branco. Os mais irritantes de todos são os masoquistas. Aqueles que acham que o vírus é um castigo muito merecido.
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João Fazenda |
Curiosamente, eles nunca são dos mais castigados. Gente que se congratula por o vírus ter devastado a economia, porque isso fará nascer uma civilização melhor, regra geral não ficou no desemprego nem na miséria. É muito interessante. Nas filas para o centro de emprego e para a sopa dos pobres é difícil encontrar admiradores da covid. Os pobres e os desempregados, por uma razão qualquer, não são sensíveis à linda mensagem de amor e fraternidade que o vírus tem sussurrado a tanta gente. Mas as pessoas que não são afectadas pelo brutal aumento do desemprego, pelas falências em massa e pela recessão económica, agradecem muito à covid estes tempos de reclusão, que têm sido tão bons para intensificar o contacto com a família, meditar no sentido da vida e alinhar os chacras. “Fez-nos dar valor ao que é mais importante na vida”, dizem elas, confortavelmente instaladas nos seus sofás, iniciando o visionamento de mais uma série da Netflix juntamente com os seus entes queridos. Só é pena que nem toda a gente veja a pandemia com os seus olhos doces. Pessoas menos sensíveis ao que é mais importante na vida, e que ligam bastante importância precisamente àquelas questões menos importantes e até mesquinhas, como ter dinheiro para pagar a renda e a conta da mercearia, não têm desfrutado tanto dos ensinamentos da covid.
Acaba por ser incrível que, quase cinco décadas depois do 25 de Abril, ainda haja quem aprecie um paizinho severo, que nos restringe a liberdade, nos obriga a ficar em casa, ameaça a nossa saúde e, pelos vistos, nos vai condenar à pobreza. Só falta dizerem que isto precisa é de um coronavírus em cada esquina.
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