segunda-feira, 20 de maio de 2019

O capitão brinca com fogo

Quando presidente, acuado por denúncias de corrupção, Fernando Collor convocou seus apoiadores para ocuparem as ruas com camisas verde amarelas no dia 7 de setembro de 1992, dois anos e meio depois de ter sido empossado.

Poucos o fizeram, talvez por vergonha ou talvez porque tivessem algo melhor a fazer durante o feriado. Em compensação, multidões foram às ruas naquele mesmo dia vestidas com camisetas pretas. Ali, Collor começou a cair. Cairia três meses depois.


Neste momento, a situação do presidente Jair Bolsonaro ainda está longe de poder ser comparada com a de Collor. Por ora, é Flávio, o filho dele, o investigado por ter comprado imóveis no Rio a preços subavaliados para revendê-los a preços superavaliados.

Mas nem isso impediu Bolsonaro de estimular seus devotos a convocarem manifestações a seu favor para o próximo domingo dia 26. Se quisesse, poderia tê-los impedido. Bastaria um post seu no Twitter em sentido contrário para deter o movimento.

E se as manifestações não reunirem tanta gente? E se elas forem menores do que as que aconteceram na semana passada contra o corte de verbas para a Educação? Essas atraíram mais de dois milhões de pessoas em cerca de 220 cidades grandes e pequenas.

E se multidões forem às ruas na mesma data vestidas com camisas pretas? Novas manifestação de opositores do governo estão agendadas para o próximo dia 30. Por que o governo deveria a essa altura submeter-se ao teste das ruas? As pesquisas desaconselham.

Se o teste lhe desfavorecer, não diga Bolsonaro mais tarde que nada teve a ver com isso. Ou que não foi avisado.

Democracia já emparedou o autoritarismo

As instituições democráticas, como previsto, estão vencendo. Elas rapidamente obrigaram o ingrediente autoritário que emergiu das eleições de outubro, misturado a interesses legítimos da sociedade, a se separar da maçaroca.

Em menos de cinco meses, o bolsonarismo vê-se isolado e depurado. Nenhuma organização relevante o apoia mais, nem sequer os principais rebentos da nova direita nascidos dos protestos de 2013.

Na burocracia federal, talvez apenas o nicho vingador de juízes, policiais e procuradores ainda resista na associação, mas as investigações no Rio contra o primogênito do clã deverão esgarçar depressa até mesmo essa solidariedade.

Sob o sol, o movimento em torno do capitão regride à célula-mãe. Paranoia, despreparo e fanatismo.


Emparedada, a seita aposta numa manifestação no domingo (26), em que só lhe restará atiçar o golpismo. Contra o Supremo, contra o Congresso, contra o oficialato militar. Pregará no deserto.

Apesar da destruição econômica que a catarse acarreta, há um valor positivo em encararmos esse contraste radical —aquilo que não queremos ser. Isso promove o autoconhecimento e relativiza antinomias que outrora pareciam insolúveis.

Delineia-se, na reação ao Cérbero populista, o Partido Institucionalista. Lideranças e organizações que se esbofetearam nos últimos anos, como se combatessem o inimigo mortal, redescobrem sua filiação comum aos pactos fundamentais do civismo.

A face horrenda do monstro também favorece a autocrítica. O desejo de eliminar o adversário, a imoderação, a ojeriza à derrota política e econômica estiveram, como sempre estão, dentro de nós mesmos. Não foram domados e por isso produziram uma sequência de desgraças que nos deixaram mais pobres e rudes.

Jair Bolsonaro, reduzido a seu átomo original, talvez faça bem ao Brasil. Vai depender de como evoluirá o grande consenso que se esboça contra “isso daí”.

Bolsonaro posta vídeo em que pastor africano o cita como escolhido de Deus

Apenas 48 horas depois de compartilhar pelo WhatsApp um texto que se refere ao Brasil como um país "ingovernável" fora dos "conchavos", Jair Bolsonaro voltou à carga no Facebook. Postou neste domingo vídeo que exibe a manifestação de Steve Kunda, um pastor nascido no Congo e radicado na França. Na peça, Kunda declara que Bolsonaro "foi escolhido por Deus" para comandar o Brasil.

Ao apresentar o vídeo, Bolsonaro anotou: "Pastor francês (sic) expõe sua visão sobre o futuro do Brasil. Não existe teoria da conspiração, existe uma mudança de paradigma na política. Quem deve ditar os rumos do país é o povo! Assim são as democracias."

Disse Steve Kunda no vídeo: "Não faço política, sou pastor. Mas creio que tenhamos que exercer uma influência na política. A igreja não é só orar manhã, noite e tarde. A igreja é influenciar a sociedade no campo positivo, não só negativo. Na história da Bíblia, houve políticos que foram estabelecidos por Deus. Um exemplo é quando falam do imperador da Pérsia, Ciro. Antes do seu nascimento, Deus fala através de Isaías: "Eu escolho meu servo Ciro". E o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil, você querendo ou não."

O pastor africano declara que o próprio Deus lhe informou sobre a missão atribuída a Bolsonaro. Ele exorta os brasileiros a apoiarem o capitão, abstendo-se de fazer oposição: "Eu não moro aqui. Mas falo da parte de Deus. Vocês aceitando ou não, você seja de esquerda ou de direita, o senhor Jair Bolsonaro é o Ciro do Brasil. Deus o escolheu para um novo tempo, para uma nova temporada no Brasil. Não passe o seu tempo criticando. Juntem as forças e sustentem esse homem. Orem por ele, encorajem ele, não façam oposição, venham fazer proposição"

Impossível deixar de estabelecer uma conexão entre o texto despejado no WhatsApp há dois dias e o vídeo deste domingo. O texto que Bolsonaro recomendou como "leitura obrigatória" realça a resistência das "corporações" e as travas do Congresso. O vídeo contrapõe a esse cenário que pode levar o governo a ser "desidratado até morrer de inanição" a figura messiânica de um enviado dos céus.

A passagem bíblica evocada pelo pastor Kunda —"Deus fala através de Isaías"— consta do Capítulo 45 do livro de Isaías. Eis o início: "Assim diz o Senhor ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações ante a sua face, e para descingir [desapertar] os lombos dos reis, e para abrir diante dele as portas, que não se fecharão. Eu irei adiante de ti, endireitarei os caminhos tortuosos, quebrarei as portas de bronze e despedaçarei as trancas de ferro; dar-te-ei os tesouros escondidos e as riquezas encobertas."

Steve Kunda se autoproclama um "profeta". Fundou na França a igreja evangélica Orleans Gospel 45. O vídeo reproduzido por Bolsonaro foi exibido no último dia 10 de abril por uma emissora de Belo Horizonte, a Rede Super de Televisão. Pertence à Igreja Batista de Lagoinha.

A certa altura, Kunda disse ter escutado do Todo-Poderoso uma profecia que orna com a percepção de qualquer brasileiro com dois neurônios: "Deus falou que os dois primeiros anos dele [Bolsonaro] não vão ser fáceis."

A julgar pelos primeiros quatro meses e meio, faz sentido. "Mas a mão de Deus está com ele porque vai cortar muitos obstáculos, muitas opressões", tranquilizou o pastor. "Foi Deus quem o escolheu."

Bolsonaro espalha o texto apocalíptico e o vídeo tranquilizador às vésperas de manifestação convocada por seus apologistas nas redes sociais para o dia 26 de maio. O presidente parece empenhado em mobilizar seus apoiadores para que desçam ao asfalto. Nem seria necessário, pois quem tem Deus como aliado para enfrentar as tramas diabólicas da política decerto não precisa do apoio das ruas.

Paisagem brasileira

O sitio do meu vizinho, Modesto Brocos ( 1852 – 1936)

O fantasma de Jânio assombra o país de Bolsonaro

Na sexta-feira 10, Jair Bolsonaro surpreendeu a plateia com um aviso: “Talvez venha um tsunami na semana que vem”. O presidente não deu explicações, mas acionou o alerta de crise em Brasília. Três dias depois, a onda se ergueu no mar. O Ministério Público quebrou os sigilos do primeiro-filho, Flávio, e de outras 85 pessoas ligadas ao clã.

A investigação começou no gabinete do Zero Um, que foi alçado de deputado estadual a senador. Não se sabe onde terminará, e nem se o presidente acabará entre os afogados.

Até aqui, o Ministério Público já afirmou que o escritório parlamentar de Flávio abrigava uma “organização criminosa”, com “clara divisão de tarefas” para desviar dinheiro público.

A ponta mais visível do esquema é a “rachadinha”, o truque de embolsar parte dos salários de assessores. Os dados bancários poderão esclarecer outas suspeitas, como a conexão da família presidencial com as milícias.

O faz-tudo Fabrício Queiroz continua sumido. Foram dele os cheques que abasteceram a conta da primeira-dama com R$ 24 mil. Se não bastassem as transferências para Michelle, o presidente fez questão de trazer o foco do inquérito para si.


“Querem me atingir, venham para cima de mim”, desafiou. Ele reclamou de “esculacho”, mas não explicou a evolução patrimonial do herdeiro. No mesmo dia, recitou a palavra “impeachment”, que ainda não estava na boca dos adversários.

O tsunami não foi a única onda gigante da semana. Na quarta, protestos pela educação se espalharam pelo país. O presidente chamou os manifestantes de “imbecis”, o que deve engrossar novos atos contra o governo.

Na sexta, Bolsonaro divulgou um texto apócrifo, afirmando que o país “é ingovernável” sem os “conchavos” que ele se recusaria a fazer. “Que poder tem, de fato, tem o presidente do Brasil?”, questiona a mensagem.

O texto descreve Bolsonaro como refém das “corporações”, entre elas o Congresso, a Justiça e até as Forças Armadas. No fim, traça um cenário de “ruptura institucional irreversível, com desfecho imprevisível” e recomenda a venda de ativos brasileiros.

O tom apocalíptico lembra a carta-renúncia de Jânio Quadros, outro presidente que chegou ao poder com discurso messiânico. Na campanha, ele brandia uma vassoura com a promessa de limpar a “bandalheira” da política. No poder, perdeu-se em atitudes e medidas excêntricas, como a proibição da briga de galo e do maiô de duas peças.

Em agosto de 1961, Jânio escreveu que desejou “um Brasil para os brasileiros”, mas foi “esmagado” por “forças terríveis”. A renúncia, sete meses depois da posse, foi uma tentativa frustrada de emparedar o Congresso. “Imaginei que o povo iria às ruas, seguido dos militares, e que seria chamado de volta. Deu tudo errado”, ele confessaria, três décadas depois.

<p>Bolsonaro já imitou o antecessor nas cruzadas conservadoras. Censurou a propaganda de um banco público porque não gostou dos figurantes e ofendeu homossexuais ao dizer que o país dispensa o “turismo gay” porque “nós temos famílias”.

Ao flertar com a radicalização, o presidente sugere que o fantasma de Jânio continuará a nos assombrar.
Bernardo Mello Franco 

Óbvio ululante

Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações!
Janaina Paschoal (PSL-SP)

Aviso de tsunami no Brasil

Conversando com um amigo, disse para ele que escrever um diário talvez ajude a atravessar esta fase sombria no Brasil. Diários costumam ser confusos, incompletos, mas talvez espelhem melhor o caos, sejam a única maneira de interpretá-lo. Quando houvesse necessidade de clareza, como existe aqui, bastaria organizar, editar, acrescentar um ou outro argumento, para voltar a fazer sentido.

Pensei em começar com a frase de Eduardo Bolsonaro sobre a bomba atômica. Num diário, falaria da Coreia do Norte, que era dirigida por Kim Il-sung, e agora um dos rebentos da família se dedica à produção da bomba. Ou mesmo do ministro brasileiro que defendeu a construção do artefato, vestido com um roupão numa sala de hospital.

Estava envolvido nessa questão de gênero, no caso gênero literário, quando li que Bolsonaro esperava um tsunami. Pensei: estou de bobeira na praia. Deixei tudo de lado, para esperar a gigantesca onda.

Na verdade, não é só uma onda, mas um punhado de ondas estranhas: a revelação de um pacto para levar Moro ao Supremo, a inabilidade na explicação para contingenciar gastos na educação, a frase de Bolsonaro chamando manifestantes de idiotas inúteis.


Uma tática que me parece suicida; quem sabe um dia descubra sua lógica.

Aí então veio uma onda maior: a iniciativa dos procuradores do Rio de quebrar o sigilo bancário de Flávio Bolsonaro e de seu funcionário Fabrício Queiroz, o que, certamente, vai revelar a vida financeira de ambos.

Mas as grandes interrogações que rondam a passagem de Flávio pela Alerj não se limitam ao sucesso na compra e venda de imóveis. Houve muitas fontes de renda suspeitas entre deputados do Rio. Propinas, cala-boca, rachadinhas, um longo inventário.

No entanto, o mais inquietante são os indícios de que a milícia tinha um espaço no gabinete de Flávio e que esse espaço era administrado por Queiroz. Milicianos, esposas e mães de milicianos recebiam salários e não se sabe precisamente por quê.

Uma história de corrupção envolvendo a família Bolsonaro realmente representaria uma grande onda negativa para quem se elegeu com a bandeira de luta contra a corrupção.

Mas se a investigação sobre as origens da grana demonstrar também uma associação com as milícias, aí, realmente, é melhor se afastar da praia, pois tem cara de tsunami.

De um modo geral, as ondas foram criadas pelo próprio governo. Bolsonaro viu Lula Livre em todos os cartazes. Parece pedir socorro ao próprio PT. Por favor, voltem com força. Preciso de um bicho-papão.

Milhares de pessoas foram às ruas porque consideram a educação um tema decisivo para o país. Elas pedem projetos, explicações mais sérias do que contar chocolates na TV.

Resta-me, no momento, voltar ao pensamento informal, refletir mais livremente. Por que sobem e caem os populistas? Por que, ao cair, acabam fortalecendo um outro populismo que se opõe a eles?

Até que ponto continuarão brincando de gangorra com um país desse tamanho? O medo de um leva ao outro. E assim vamos vivendo de horrores.

Por acaso, o que esteve em jogo esta semana de manifestações é uma das chances de sair dessa armadilha: priorizar a educação.

A bomba atômica que explodiu na agenda, com o discurso do filho do presidente, foi sufocada pelo rumor das ondas. Ia tratá-la com respeito, pois Eduardo Bolsonaro apresentou-a como um fator de poder do país. Mas há outros poderes mais suaves: nossa cultura, que não se expressa apenas nas artes e costumes, mas na defesa da paz em vários lugares do mundo.

É um poder mais barato e durável. Não significa desprezar a defesa necessária. Mas esse poder é em si um fator auxiliar da proteção. Quem vai atacar um país internacionalmente empenhado em garantir a paz?

Se tivéssemos uma bomba atômica, Maduro nos respeitaria como espera o jovem Bolsonaro? A resposta é não. O que faríamos com a bomba atômica?

Momentos estranhos. Mas passam. No meu caderno, anoto apenas um verso de Fernando Pessoa e o imagino transfigurado na boca de um ministro Weintraub, mestre em Contabilidade: “Come chocolates, pequena/ Come chocolates!/ Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”
Fernando Gabeira

Bolsonaro não consegue conviver com os contrapesos da democracia

A vitória na eleição, o mandato e a caneta não são suficientes para Jair Bolsonaro. O presidente e seus aliados passaram os últimos meses se queixando de que, apesar de seus imensos poderes, o político mais forte do país é vítima de um “sistema” que o impede de governar.

Além de funcionarem como uma desculpa para mascarar sua própria incapacidade, os ataques do bolsonarismo às instituições reforçam os velhos sinais de que sua trupe não é capaz de conviver com divergências e com os contrapesos da democracia.


Bolsonaro chancelou mais um protesto desse tipo ao distribuir uma mensagem pelo celular a aliados na sexta. O autor do texto afirma que o país é “ingovernável” e reclama: “Como todas as suas ações foram ou serão questionadas no Congresso e na Justiça, apostaria que o presidente não serve para nada”.

Quando a estrutura republicana é tratada como obstáculo pelo próprio governo, temos um problema. Ainda que a popularidade de parlamentares e ministros do STF esteja no fundo do poço, eles têm atribuições legítimas e servem como agentes de moderação e fiscalização.

Se um presidente invade competências e assina um decreto que amplia de maneira ilegal o porte de armas, o Congresso deve intervir. Da mesma forma, Bolsonaro tem poder de veto sobre projetos do Legislativo. Na última semana, ele teve a chance de barrar uma anistia de multas a partidos políticos, mas não o fez.

Na campanha, o então candidato flertou com delírios autoritários e insinuou que gostaria de usar medidas excepcionais para atacar o tal “sistema”. Disse, por exemplo, que pretendia aumentar o número de cadeiras no STF para criar uma maioria artificial a seu favor. Depois, recuou. Talvez esteja sofrendo uma recaída.

Bolsonaro alimenta um conflito permanente para angariar apoio nas ruas e pressionar as instituições, mas precisará continuar dentro das regras do jogo. Se ele acreditava que teria poderes ilimitados, não deveria ter procurado uma faixa de presidente, mas a coroa de um monarca.