sábado, 16 de maio de 2020

Parece loucura, mas tem método

É lógico que uma democracia representativa digna do nome não tem condições de se firmar onde a ética da impessoalidade do Estado não se desenvolva; e tal ética, por sua vez, não se consolida se as Forças Armadas se mantiverem no universo do populismo ou do caudilhismo. Em qualquer país, a inexistência de harmonia entre essas esferas institucionais cedo ou tarde dará ensejo a retrocessos e, no limite, ao próprio rompimento da ordem constitucional. No Brasil, tal situação ficou claramente exemplificada nos episódios da renúncia de Jânio Quadros (1961) e do desgoverno de João Goulart (1961-1964).

Em 1945, logo ao regressar da guerra na Itália, o marechal Mascarenhas de Moraes deu o cartão vermelho para o ditador de plantão, o Sr. Getúlio Vargas, e exigiu a realização de eleições e a convocação da Assembleia Constituinte, como viria a ocorrer em 1946. Mesmo nos 21 anos (1964-1985) em que exerceram autoritariamente o poder, os militares não permitiram a personalização do poder, como era tradicional na América Latina.

No período recente, o populismo e a corrupção dos oito anos de Lula, aos quais se seguiram a incompetência e o voluntarismo econômico de Dilma Rousseff abortaram a retomada do crescimento econômico, mas o desarranjo institucional não chegou a se configurar plenamente, graças, é certo, ao penoso processo do impeachment de Dilma, Mas comparado ao ciclo Lula-Dilma, o momento atual suscita preocupações bem maiores.

A partir da eleição de 2018, a reação às sandices e tensões cultivadas pelo PT e o esvaziamento dos partidos de centro deixaram o espaço aberto para o surgimento de uma força política — o bolsonarismo — perigosa tanto na base quanto na cúpula. Na base, devido ao vazio de ideias, à hostilidade contra a ordem institucional e à agressividade dos adeptos de Jair Bolsonaro. Na cúpula, o presidente em vez de apaziguar os ânimos, fomenta os antagonismos; em vez de observar a liturgia do cargo que ocupa, não perde uma chance de desmoralizá-lo. Será tal comportamento uma simples emanação de idiossincrasias ou peças de uma estratégia que parece ser loucura, mas pode ter método. ´

Fato é que, alternando ameaças e gaiatices, Jair Bolsonaro parece empenhado em esticar a corda, em testar limites e em debilitar os anticorpos ainda existentes no Congresso, no STF e nas Forças Armadas. É um filme que já vimos muitas vezes, mas nunca tendo no papel principal um personagem tão manifestamente descerebrado.

Lei de morte

A lei me deu o direito de escolher as atividades essenciais. O resto, que não é essencial, é a cargo de governadores e prefeitos
Jair Bolsonaro

O suicídio de uma nação?

O Brasil passa pela crise mais grave da história republicana. Não há nada que se compare ao desastre representado pelo governo Jair Bolsonaro. A crise sanitária avança a cada dia e a tendência é que permaneça por boa parte do ano tendo em vista a dificuldade das autoridades de impor, com eficácia, o isolamento social. O maior aliado do coronavírus é Bolsonaro e suas sucessivas ações e declarações que desmoralizam o protocolo estabelecido pelo próprio Ministério da Saúde. A ampliação do número de infectados e de óbitos, além da extensão no tempo da epidemia, deve deixar um rastro de destruição que vai perdurar por alguns anos, principalmente nas comunidades mais pobres.

À crise sanitária deve ser acrescentada a crise econômica. Seus efeitos devem se estender a 2021. O efeito vai ser devastador levando ao fechamento de milhares de empresas e a uma fabulosa taxa de desemprego. Para piorar, há uma séria crise político-institucional. Bolsonaro faz do ataque às instituições o seu passatempo favorito. E ao afrontar os outros dois poderes estimula seus adeptos a comportamentos que se assemelham às milícias nazi-fascistas.


Além das tensões internas, o governo Bolsonaro patrocina ações externas lesivas ao interesse nacional. Hoje o Brasil é uma espécie de África do Sul na época do Apartheid. Estamos isolados na comunidade internacional. A pecha de país pestilento, onde o chefe do governo age de forma irresponsável, sem paralelo no mundo democrático, já percorre o planeta. Sem exagero, poderá ocorrer de brasileiros terem de passar por uma quarentena ao chegar, por exemplo, a Europa. E nisto estão incluídos não só os turistas, como os empresários.

Pior será se transformarem — e nossos concorrentes estão à espreita — as nossas exportações (do agronegócio, especialmente) em mercadorias que podem estar também contaminadas. Também dificilmente será aprovado o acordo da União Europeia com o Mercosul e a China deve retaliar o Brasil comprando menos e diversificando seus fornecedores de carnes e grãos. No primeiro caso, a Europa está estarrecida com o comportamento de Bolsonaro nos campos sanitário e político; no segundo devido ao xenofobismo anti-chinês de vários membros do governo, a começar pelo Presidente. Só temos uma saída: o impeachment de Bolsonaro. Se ele não consegue comandar o Brasil em plena pandemia, o fará no momento da reconstrução, quando precisaremos, principalmente, de estabilidade política?

Sai Moro, entra Roberto Jefferson

A base digital que apoia o presidente Bolsonaro avaliza as falas do ex-deputado Roberto Jefferson atribuindo-lhe a especialização em corrupção, o que o legitimaria como fiador da honestidade do atual governo. “Esse conhece o assunto”, dizem vários posts encontrados nas redes sociais. Nesse estranho conceito, a virtude é a experiência no ramo.

Não se deve julgar quem penou – ou seja, pagou a pena pelos seus erros. Mas uma segunda chance a que todos os que erram têm direito, não deve começar pelo posto de julgador. A Jefferson falta autoridade moral para exercer o papel de emissor de atestado de probidade.


O fato, por isso, torna-se um atestado de óbito da virtude, antes conceituada como algo além do dever mais elementar, a honestidade. O especialista Jefferson, posa agora de metralhadora em punho em foto cuja legenda prega o fechamento do Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que o poder verdadeiro está “na ponta do fuzil”.

Diante de tal distorção, espanta que continue sem merecer nova avaliação penal como personagem com direito a um recomeço. A metralhadora não é metáfora, mas uma proposta de extinguir a Suprema Corte à bala. Não fosse aquela que o condenou por crimes confessados, já seria uma incitação inaceitável. Sendo a instância máxima do Judiciário, e a que efetivamente o mandou para a prisão, é incompreensível o silêncio em torno de sua nova performance.

O exercício impune do cangaço digital de Jefferson é uma mostra, mais que tantas outras, do colapso moral que assola o país, em uma escala epidêmica contra a qual, à semelhança do coronavírus, não se consegue aplicar um antídoto. A diferença é que para este não se descobriu o remédio, ao contrário daquele contra o qual simplesmente não se aplica a vacina.

Jefferson experimenta uma dupla sensação de prazer. De um lado, vinga-se de sua condenação, a expor seus julgadores como integrantes de uma Corte desonesta – aqui com o estímulo da comunicação extra-oficial do governo. De outro, enxerga ansioso a possibilidade de voltar a influir na política nacional, o que importa em recomeçar sua liberdade com emprego que um ex-detento comum jamais teria.

No caso, Jefferson resgata o sonho de ter novamente o ministério do Trabalho, já extinto, mas passível de ressurreição, onde não desistiu ainda de colocar sua filha, Cristiane Brasil, vetada pela Justiça para essa função no governo anterior. Se não for por aí, não tem importância, outro mimo serve também, no contexto de uma aliança de sobrevivência costurada pelo governo.

Seria irônico, se não fosse dramático, que o renascimento de Jefferson para a política se dê pelas mãos de Bolsonaro, eleito com o mote de combate à corrupção, na esteira da Lava Jato, cujo símbolo maior acaba de deixar o governo dizendo que se enganou.

Assim, como nos anúncios de substituição nos jogos de futebol, o governo informa: sai Sérgio Moro, entra Roberto Jefferson.</p>
João Bosco Rabello

Brasil sob os clarins


Teich rejeita a opção pela morte

O médico Nelson Teich pediu demissão do cargo de ministro da Saúde menos de um mês depois de assumi-lo, provavelmente em respeito a seu juramento profissional, que diz, entre outras coisas: “A ninguém darei por comprazer nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda”. O mesmo comportamento teve o antecessor de Nelson Teich, o também médico Luiz Henrique Mandetta, ao recusar-se a obedecer às ordens do presidente Jair Bolsonaro que claramente causariam ainda mais danos à saúde da população brasileira, já bastante castigada pela pandemia de covid-19.

Qualquer médico que assuma o Ministério da Saúde e queira permanecer no cargo por mais de 15 dias terá que renunciar a esse juramento. Será, portanto, um mau profissional de saúde, que aceitará reduzir o Ministério da Saúde a mero despachante dos patológicos desejos de Bolsonaro. Pior, será um cúmplice de um empreendimento que, sem exagero, já pode ser chamado de social-darwinista – em que a morte por covid-19 é vista como uma forma de depuração da sociedade, pois só abate aqueles que não têm “histórico de atleta”.

Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta recusaram-se a chancelar a obsessão de Bolsonaro pela cloroquina, remédio cuja eficácia contra o coronavírus está muito longe de ser comprovada e cujos perigosos efeitos colaterais são, ao contrário, bastante conhecidos. Mandetta, quando ainda ministro, chegou a assinar um protocolo que liberava a droga para uso somente em pacientes em estado grave, com indicação médica e com a anuência do paciente. Mas, assim como seu sucessor, não aceitou a imposição de Bolsonaro para ampliar o uso em qualquer estágio da doença.

Pressionado pelo presidente nos últimos dias, Nelson Teich disse que havia ainda muita incerteza sobre a cloroquina e rejeitou a droga como um “divisor de águas” no tratamento da doença. Além de Bolsonaro, os únicos chefes de Estado que defendem a cloroquina como elixir milagroso contra a covid-19 são o norte-americano Donald Trump e o venezuelano Nicolás Maduro, o que dispensa comentários.

Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta também haviam manifestado oposição ao relaxamento das medidas de isolamento social, contrariando o presidente Bolsonaro, que dia e noite exige o fim da quarentena e a “volta ao normal” em todo o País, sob o argumento de que é preciso impedir o colapso da economia. É tal a determinação do presidente de colocar em risco a saúde e a vida de milhões de brasileiros para salvar sua própria pele que ele ameaçou fazer um pronunciamento em rede nacional, hoje, para insistir em seu discurso contrário ao isolamento, afrontando os governadores e prefeitos que, além de terem que lidar com a pandemia, são obrigados a enfrentar a sabotagem do governo federal.

Em menos de um mês, nada menos que três ministros – Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Sérgio Moro – deixaram o governo por se recusarem a cumprir ordens do presidente – não por insubordinação, mas em respeito aos brasileiros e aos princípios republicanos. Para Bolsonaro, quem o contraria está a contrariar o povo, que ele julga encarnar, razão pela qual seu comando deve ser obedecido sem questionamentos, mesmo que viole a Constituição, a ética e a decência.

Assim será com o próximo ministro da Saúde? Em vez de organizar os esforços nacionais do combate à pandemia, que está matando quase mil brasileiros por dia e esgotando o sistema hospitalar do País, o novo titular terá de ser apenas um obsequioso serviçal, pronto a pôr em prática os devaneios de Bolsonaro e a rasgar os manuais da ciência médica, fazendo o que nenhuma autoridade de saúde no mundo civilizado faria neste gravíssimo momento? Ou seja, terá que trabalhar pela sobrevivência política do presidente em detrimento da sobrevivência de milhares de brasileiros?

Como escreveu o médico Antonio Carlos do Nascimento em artigo publicado ontem no Estado, “sem a opção do genocídio, só nos resta o isolamento e a testagem abrangente para limitar o universo de circulação do vírus”. Aparentemente, o presidente Bolsonaro já fez sua mórbida opção.

Fornecedor da morte



Quantas pessoas mais terão que morrer para atender aos caprichos do presidente?
Júnior Bozzella (PSL)

E se Bolsonaro não passar de uma grande ‘fake news’?

O presidente Jair Bolsonaro havia anunciado que no sábado passado faria um churrasco para qualquer admirador seu que quisesse aparecer. A notícia foi vista como uma provocação contra as normas de isolamento por causa da pandemia do coronavírus. Na manhã do último sábado, ele se retratou e disse que tudo não passou de fake news. E tachou de “idiotas” os jornalistas que haviam acreditado na sua palavra.

Naquela mesma manhã, o Brasil recebia a triste notícia de ter superado os 10.000 mortos pela epidemia, e o Congresso decretou três dias de luto nacional. Bolsonaro não proferiu nenhuma palavra de pêsames às vítimas. O que são 10.000 mortos para ele?

O problema não é se aquela bravata do presidente de organizar um churrasco para uma multidão enquanto a população sofria a lei da quarentena era uma brincadeira de mau gosto, uma provocação macabra, ou uma fake news. O que ocorre é que o presidente parece todo ele, mais do que uma realidade, uma grande fake news.

Não faz muito, ele mesmo questionou o resultado das eleições que lhe deram 57 milhões de votos e a vitória. Talvez tivesse razão: que a própria eleição foi uma fake news, produzida pelos robôs que ele soube dirigir tão bem durante a campanha. Talvez seja verdade que foram falsificadas e, portanto, na verdade ele não existiria hoje como presidente.


Tudo é tão irreal ao redor do ultra-autoritário populista que mais parece uma história de ficção que uma realidade. Parecem fake news boa parte de seus ministros vindos de outro planeta. Parece fake news sua política externa desastrada, sua ideia de escola sem partido, baseada nos ensinamentos da Bíblia. Parece fake news sua política ambiental de destruição da Amazônia e extermínio dos nativos, que assombra e atemoriza o mundo. Parece fake news seu rechaço aos direitos humanos mais elementares.

Tudo ao redor do presidente – que os psicólogos temem se tratar de um caso psiquiátrico – parece ser uma invenção, uma mentira, uma miragem, porque, se fosse verdade, seria uma tragédia.

Quer algo mais fake que essa novela de que seus filhos governam com ele e usam apelidos de polícia secreta, como 01, 02, 03 e agora está chegando o garoto 04, que Já aprendeu a escrever nas redes que o coronavírus é só uma gripezinha? Que se gaba de ter “comido” todas as garotas do condomínio onde vive em Rio? Era fake.

Quer algo mais fake news que o que seus filhos formarem uma dinastia, mesmo sem participarem de nada. Quer algo mais fake que alguns deles serem suspeitos de envolvimento em mutretas de corrupção, com um pai cuja bandeira era justamente exterminar os corruptos? Terem usado assessores fantasmas? Gente das perigosas milícias do Rio? Que tenham enriquecido com a história das rachadinhas e ganhado milhões vendendo chocolates? Tudo fake. E o assassinato de Marielle? Tudo irreal, inventado. Uma malícia grosseira de seus inimigos.

Pode haver algo mais fake que um homem bravo como o presidente, atleta, esportista, um homem completo, apaixonado pelas armas e pela brincadeira de tiro ao alvo, ser capaz de cair em pranto na frente dos seus ministros? Por Deus!

Tem que ser fake news essa história de que o presidente de extrema direita é um apaixonado pela tortura e tem saudades da ditadura, já que ele queria só era limpar a escória do comunismo no Brasil. Por isso se desiludiu quando a ditadura perdeu tempo torturando, pois para ele teria sido mais rápido eliminá-los. Pôs até um limite mínimo de quantos deveriam ter sido sacrificados, 30.000 comunistas. É que era pedir muito? Fake com certeza. O presidente é terno. Basta ver a delicadeza com que acaricia as armas e a paciência com que ensinava uma menina em seus braços a imitar com sua mão inocente o gesto de disparar um revólver.

Só pode ser fake news a facada que sofreu durante a campanha eleitoral, que poderia ter tido como mandante, segundo ele, alguém da esquerda que quis eliminá-lo das eleições. Quem, afinal, iria se preocupar em tirar a vida de um candidato que só buscava o bem da nação, para o que era necessário pôr os esquerdistas de joelhos? Tudo fake.

Dizem que no fundo, na intimidade, o presidente é doce e acolhedor. Um santo cheio de empatia. A única coisa que, aparentemente, o tira de si e o transforma em alguém violento são esses gays que crescem como cogumelos. O que não suporta são as mulheres feias. Não servem, diz, nem para serem estupradas. Os gays, dizem alguns em voz baixa, metem medo no presidente que se sente macho-alfa. Os negros são para ele outra grande preocupação. Deve se perguntar por que não os eliminaram antes da libertação dos escravos. Seu Brasil é branco. E os direitos humanos? Mas será que devem existir direitos? Para que servem os diferentes? Para ele, somos uma manada sob um só pastor, que sabe o que cada um necessita e o que nos faz mal. Mas não se preocupem, é só fake news.

Quem disse que o presidente não respeita as outras instituições do Estado? Tudo fake. O que ele não suporta é que os outros poderes pretendam ser independentes. Então para que serve o presidente? Quem melhor que ele sabe do que seus fiéis devotos necessitam? As leis que precisam ser aprovadas, as condenações que os tribunais devem impor? E o Supremo, com sua mania de querer interpretar a Constituição? O presidente já disse com todas as letras: “A Constituição sou eu”. Para que mais complicações? É algo que Moro, seu ex-ministro-estrela da Justiça, não tinha entendido. Se ele é a lei, por que a Polícia deve lhe esconder segredos? Até aí se podia chegar. Não podem existir segredos para ele, que é quem manda. O Brasil é dele.

Tudo isso não pode ser senão uma grande fake news. É que ainda não entenderam a que veio o capitão de reserva que vive coroado por generais como se fossem anjos, querubins e serafins que o protegem em seu governo. Eles são sua milícia celestial. Mas e se também isso fosse fake, já que os militares têm outras hierarquias além das celestiais? Sabem que podem mandar nele se quiserem. Talvez só esperem o momento melhor. E isso não será fake.

Fake ou não, louco ou são, o presidente que ri da epidemia e despreza tudo o que cheire a liberdade de expressão, embora ele a use e dela abuse diariamente, precisa ser vigiado como se faz com as crianças quando deixadas sozinhas em casa, brincando de acender fósforos. Crianças e loucos são perigosos porque um dia podem acabar incendiando a casa.

Melhor apeá-lo de seu perigoso pedestal e devolvê-lo à escola para que aprenda que a vida real, não a das fake news, é muito diferente. Para que aprenda a riqueza das diferenças, o respeito pelas ideias alheias, a força da democracia e das liberdades. E para que aprenda os horrores e as baixezas, que já conhecemos da história, em que a humanidade cai quando se esquece que precisa viver em harmonia e em liberdade, respeitando-se mutuamente, ou então voltaremos aos infernos que já conhecemos, cuja mera lembrança não só nos horroriza como também nos julga e nos condena. E isso não é fake news. É uma realidade que o Brasil não merece viver.

A pílula da vez

A cloroquina é a pílula do câncer da vez de Bolsonaro. A obsessão do presidente Bolsonaro com a cloroquina, que derrubou o ministro da Saúde Nelson Teich e já colocara o ministro anterior, Luiz Henrique Mandetta na linha de tiro, pode ser explicada pela busca de um remédio milagroso que permita dar a sensação de segurança aos cidadãos para abrir a economia. Assim como fez campanha pela pílula do câncer e, ao ser perguntado se acreditava mesmo na sua eficácia, respondeu: ” Sou Capitão do Exército. Minha especialidade é matar, não é curar ninguém. Se cura, não sei. Mas vamos dar uma chance àquele que está com dia marcado para morrer”. 

A Medida Provisória que ele editou esta semana pode ser considerada a “excludente de ilicitude” da Covid-19. Aquele instrumento, que foi rejeitado pelo Congresso, dizia que o agente público não pode ser culpado quando age sob "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Na Medida Provisória relacionada à Covid-19, os agentes públicos “somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de combate ao coronavírus (…)".

O espírito é o mesmo, isentar de culpa agentes públicos que se excederem no cumprimento do dever, até mesmo provocando mortes, como no caso da cloroquina. Inclusive o próprio presidente.


No mundo, poucos são os que defendem a cloroquina com tanta obstinação quanto Bolsonaro, que também nesse ponto se equivale a Maduro, da Venezuela. Nem mesmo o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, continua nessa defesa, depois que estudos acadêmicos diversos demonstraram que a cloroquina não apenas provoca danos colaterais variados, que podem ser fatais, como não tem se mostrado eficaz no combate ao Covid-19.
Falou-se até que Trump seria sócio da farmacêutica francesa Sanofi, que produz a cloroquina, mas, mesmo existindo, essa participação na empresa é tão insignificante que não parece razão para sustentar o apoio. O dono da farmacêutica, sim, é um dos grandes financiadores eleitorais de Trump.

Já com Bolsonaro, embora haja muitos boatos nesse sentido, não há evidências de interesses comerciais para sua insistência, mas apenas o caráter autoritário de um presidente que precisa de uma desculpa para agir na contramão do mundo, encerrando o distanciamento social horizontal para implantar o vertical, protegendo apenas os grupos de risco. É um interesse eleitoreiro claro.

Há também um erro de decisão que fez com que o Brasil tenha comprado da Índia 530 quilos de insumos para a fabricação de cloroquina. Também o Laboratório Químico Farmacêutico do Exército aumentou 80 vezes sua produção, passando de 250.000 comprimidos a cada 2 anos para combate de doenças como malária e lúpus para 1,2 milhões em um mês e meio. 

O maior perigo dessa segunda demissão no ministério da Saúde, no momento em que o Brasil se aproxima dos 15 mil mortos pela pandemia da Covid-19, e ameaça chegar a mil mortos por dia, é a irresponsabilidade de Bolsonaro, que acha que, por ter sido eleito, tem o direito de decidir de acordo com sua vontade, e não com base científica.
Um governo voluntarista que coloca em risco a população que preside e tenta fugir do controle das instituições democráticas que dão os limites ao presidente da República. Esse voluntarismo está presente, por exemplo, nesse caso da reunião ministerial que é a prova material que pode definir a denúncia contra ele por interferência indevida na Polícia Federal. 

Bolsonaro já disse que poderia ter destruído o vídeo, e não poderia. Estaria cometendo um crime, pois o vídeo é um documento do governo brasileiro que, se quisesse destruí-lo, teria que preencher diversos requerimentos e protocolos e talvez nem pudesse fazê-lo se a decisão fosse tomada apenas com base na sua vontade. Pior ainda se a intenção fosse obstruir a Justiça.
E é essa mesma obsessão autoritária que faz com que considere normal querer que a Polícia Federal lhe repasse informações “ouvidas atrás da porta”. O exemplo que deu, de pais ouvindo atrás da porta para saber o que os filhos estão fazendo, mostra que o de que ele sente falta mesmo é de informações colhidas fora das normas legais.

Pensamento do Dia


Às favas os escrúpulos de consciência dos que apoiam Bolsonaro

'Aqui, a história não se repete como farsa'
Luis Fernando Verissimo

O que dirão as pessoas quando assistirem aos atos explícitos de cumplicidade da maioria dos ministros diante dos palavrões ditos pelo presidente Jair Bolsonaro na reunião de 22 de abril passado gravada em vídeo prestes a ser divulgado?

Ninguém, ali, demonstrou estranhamento – uns porque já estão a acostumados com a linguagem porca do presidente, outros porque a compartilham. Ninguém pareceu se incomodar com o comentário do ministro da Educação sobre a prisão dos juízes do Supremo.

A ministra da Mulher e dos Direitos Humanos sentiu-se tão à vontade que sugeriu a prisão de governadores e prefeitos. Ninguém a interpelou a propósito. Todos sabiam que a reunião estava sendo gravada, mas jamais imaginaram que pudesse um dia vir a público.

Da mesma forma devem ter pensado os ministros que se reuniram com o presidente Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968 para discutir a edição de mais um ato institucional – o de número 5, o mais violento. Foi quando a ditadura militar tirou a máscara.

Costa e Silva abriu a reunião dizendo: “Ou a revolução continua, ou se desagrega”, e pediu a opinião de todos. Apenas o vice-presidente, Pedro Aleixo, foi contra o ato. Ficou célebre a frase dita pelo ministro do Trabalho e da Previdência Social Jarbas Passarinho:

- Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência.

Pior que São Tomé

Há anos não me sentia constrangida assim por ser brasileira. Mas está difícil aguentar meus conterrâneos, a quem é preciso ensinar como se lavam as mãos, durante a pandemia e fora dela. São piores que São Tomé, a quem Jesus precisou mostrar as chagas, para ser reconhecido depois de ressuscitado. Não acreditam nem mesmo no que veem: as estatísticas de mortes e contaminados pelo corona vírus, as fotos sobre centenas de sepultamentos, os depoimentos de quem se curou e dos que perderam alguém.

Vivo numa cidade praiana e, com dias tão ensolarados e azuis, muitos desprezam as orientações e vão surfar, caminhar no calçadão interditado, voar de ultraleve, fazer passeatas. Há grande pressão para a reabertura do comércio. Agora usam máscaras, por causa da multa imposta pelo prefeito, mas levam às ruas crianças pequenas sem a proteção, como se estivessem isentas do mal. Vejo muitas gestantes, também, e idosos longe de suas casas, desafiando a sorte.


Fora tudo isso, convivemos com uma intensa campanha de notícias falsas e demonstrações de fanatismo. Mais uma vez, amostras de São Tomé ao contrário acreditam em tudo o que o pastor ou o mito e seus ministros falam, sem qualquer comprovação científica. Aliás, corre um boato de que até o título de mito é falso, pois se trata de uma corruptela de palmito, como Bolsonaro seria apelidado na infância, por ter pernas muito brancas e finas. Fica a dúvida.

Na outra ponta, o isolamento social é o grande álibi para a incompetência dos prestadores de serviço que permanecem em atividade. Experimente fazer contato com algum SAC – Serviço de Atendimento ao Consumidor. Sua paciência será testada ao limite, nem sempre resultando em satisfação. Espere encomendas pelos Correios, novo teste de resiliência. É melhor não ter pressa.

O comprador de agora também está sujeito a explorações de todo o tipo. Uma grande rede de supermercados, “neste momento difícil que estamos passando”, oferece entrega das compras em domicílio. Há até um ramal para atender com exclusividade quem tem acima de 60 anos. Mas são vários os senões: a entrega não é feita em qualquer ponto da cidade, demora quatro dias úteis e é cobrada uma taxa salgada que, conforme os produtos escolhidos, pode sair mais cara que a mercadoria.

Sem falar nos golpistas de plantão. Recentemente, num município vizinho, foram flagrados estudantes de informática que anunciavam máscaras, álcool em gel e outros, em site fictício. Recebiam pelos produtos e jamais os entregavam, porque não existiam. A quadrilha foi identificada, mas, misteriosamente, ninguém acabou detido…

Vergonha de ser brasileira. Dizem que tudo passa, mas quando? Nesse caso, como Tomé, tenho fé, mas só acredito vendo.
Madô Martins

Abraço da bandidagem

Não é mais toma lá, dá cá, não tem nada disso. Tem um centro democrático se formando para apoiar o governo, ele é programático, não é fisiológico
Paulo Guedes, ministro da economia

O som que agora vem da rua

Com a mudança do mundo, mudam os problemas também. Parece óbvio, mas, na verdade, fiquei bem impressionado com uma coisa logo assim que voltei de São Paulo pro Rio. Apesar de ter sido avisado por amigos sobre como as ruas andavam cheias em seus respectivos bairros, ver acontecer é bem diferente.

Cheguei em casa num domingo. Uma agitação enorme na rua, muito mais vida do que tinha me acostumado no Centro de São Paulo. Churrasco rolando nas lajes, as crianças jogando bola. Aos poucos, vi se transformar minha relação com o som. A música me incomodava de um jeito novo. E cada dia isso fica mais forte.

Cria do subúrbio, a mudança pro Vidigal foi grande também com a relação de espaço. Se em Bangu a casa da maioria das pessoas da minha rua tinha quintais enormes, árvores de frutas, às vezes, um jardim, um chiqueiro ou galinheiro. No Vidigal, tudo era mais apertado. Eu podia ouvir as conversas da minha rua deitado no sofá, o som do vizinho passava pela minha casa antes de avançar até a próxima. Aprendi a usar fones de ouvidos pra ler. Acostumei a dormir com o chão tremendo, numa casa que morei bem ao lado de um baile funk. Acordar com a igreja e o bar do lado, numa disputa pra ver quem alcança mais gente morro adentro.


Nunca fui de ter raiva do barulho. Até porque não existia nada que pudesse fazer a respeito. Além disso, eu não sei, o barulho da rua, de alguma forma, sempre me fascinou. A quantidade de repertórios possíveis, os sotaques, o brega, o funk, o pagode, Roberto Carlos, Racionais MC’s e Kleber Lucas, tudo numa harmonia caótica, que preenche o espaço com ondas sonoras, emoções, sonhos e desejos. O barulho das obras. Tudo sempre em construção. As provocações da pipa e do futebol. Tudo isso sempre me deu a sensação de vida que acontece, porque precisa acontecer. E quanto a isso, nunca me senti no direito de me opor.

Nas conversas com outras pessoas, também preocupadas com a situação no morro, tento não julgar aqueles que enchem as ruas. Tenho consciência de que vivo numa casa confortável, onde não tenho problemas com água nem luz elétrica, sem filhos ou netos. Não posso adivinhar como poderia enfrentar uma quarentena em outro momento da vida.

Realmente imperdoável é a postura de certos políticos e empresários que, liderados pelo presidente da República, lutam pelo fim do isolamento social, única medida realmente eficaz pra contenção do vírus. É criminosa a narrativa criada por essas pessoas, que induz parte da população a acreditar que o maior problema seja a quarentena, e não o próprio vírus. Dizem isso em jornais, na internet, bem do alto de suas torres, com a certeza de que a ajuda médica não demora mais do que 20 minutos pra chegar, bem isolados do mundo, como já estavam muito antes de qualquer pandemia.

O que será das próximas semanas é impossível prever, mas a perspectiva é a pior possível. Quando penso no tanto de gente conhecida, entre amigos e familiares que já foram contaminados, alguns ainda em recuperação, outros que sucumbiram à doença, vejo diretamente o cerco se fechar. Dessa forma, o som que vem da rua, que já me inspirou tanto nessa vida, agora traz a horrível sensação de que posso ouvir a morte chegar.

Militares no poder são cúmplices de mais um ato irresponsável do macabro Governo Bolsonaro

Os militares brasileiros que estão no poder desenterram as memórias mais tristes de seu passado de vergonha da ditadura com um presente caótico à mercê do Governo Bolsonaro. Alinhados ao discurso e à gestão diversionista do presidente, deixam claro que endossam cada ato irresponsável do mandatário em plena pandemia de coronavírus. Há mais de 200.000 infectados e quase 14.000 óbitos de brasileiros oficialmente, sem contar aqueles que não foram notificados. A saída do ministro da Saúde Nelson Teich antes mesmo de completar um mês no cargo é só mais um desses atos inconsequentes.

Teich caiu por um embate irracional sobre isolamento social e protocolos de uso da famigerada cloroquina. O medicamento, que já caiu em descrédito até mesmo nos Estados Unidos, virou uma obsessão para Bolsonaro, mesmo sem eficácia comprovada. É apenas uma maneira de se contrapor à ciência, aos governadores, aos seus críticos políticos e, ao fim e ao cabo, à realidade.


A arrogância de Bolsonaro para brincar no cargo de presidente se estende à instituição. A desfaçatez macabra do líder da nação, também. O presidente que falou “E daí?” para as mortes, quando o país somava mais de 5.000 óbitos confirmados, e fez alarde de churrasco e passeio espalhafatoso de jet ski quando o Brasil somava então mais de 10.000 vítimas, tem no corpo militar seu cúmplice. Um desprezo com valores humanos e um código de honra que a própria instituição prega.

Jair Bolsonaro já é mote de piada entre chefes de Estado. Visto como genocida mundo afora, o que não é culpa da imprensa ou de interlocutores mal-intencionados que estariam sendo guiados por interesses políticos, como sugeriu o vice-presidente Hamilton Mourão em artigo publicado nesta quinta-feira. Os fatos falam por si. A saída de Teich é destaque em todo o planeta num momento em que todas as nações lutam para atenuar os efeitos trágicos da peste. Não é preciso ser tão inteligente para admitir que trocar duas vezes um ministro da Saúde em meio à pandemia demonstra uma total falta de estratégia e a adesão a um método camicase de governar um país de 210 milhões de pessoas.

No imaginário brasileiro, os militares estampam a ideia de ordem e disciplina. Foi a partir de 2014, diante dos escândalos derivados das notícias da Lava Jato, que eles retomaram a visibilidade como alternativa de poder. O segundo Governo Dilma se afundava em denúncias e perdia apoio popular. Era o momento de rechaço da sociedade com a classe política, que Bolsonaro soube manejar como ninguém. Vendeu-se como alternativa mesmo sendo parte do mesmo status quo político por décadas.

Generais ganharam voz nesse período por repudiar a corrupção e o caos social que o petismo, segundo eles, representava. Em abril de 2018, o general Villas Boas, então comandante do Exército, fez estardalhaço com um tuíte às vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula que poderia livrá-lo da cadeia. “Asseguro à nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, escreveu ele.

O que pareciam interesses patrióticos e valores concretos da instituição é passível de reinterpretação. Os militares patrocinam hoje um presidente enrolado num processo do Supremo que aponta uma tentativa de interferir em investigações que podem comprometer sua família. O repúdio à impunidade não existe aqui? O conceito de paz social que reinava na cabeça de militares como Villas Boas no passado também fica desbotado no presente. Se algum deles está confortável de acreditar que existe paz com as confusões do presidente que acaba de perder o seu segundo ministro da Saúde em um mês é preciso deixar claro que as bandeiras que erguem valem apenas como régua aos seus adversários. Acreditam que a democracia está a salvo com um presidente que participa de atos que sugerem fechamento do Supremo e do Congresso. Enxergam os brasileiros como subalternos que precisam obedecer o comandante da tropa, sem perceber o tamanho das contradições que revelam.

Em julho de 2018 o hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, também se posicionava como uma das vozes que rechaçavam conluios com deputados do Centrão, quando a candidatura de Bolsonaro era lançada. “Se gritar ‘Pega Centrão’, não fica um meu irmão”, ironizou Heleno no evento, parafraseando a música cujo verso original é “Se gritar pega ladrão...” Hoje, se vê abraçado aos deputados que negou no passado.

Os militares haviam submergido depois das desastradas tentativas de estender o Governo militar nos anos 80. Carregam até hoje cadáveres de inocentes, como o jornalista Vladimir Herzog, ou a vergonha de colocar crianças em salas de tortura. Decisões tomadas na cúpula, e não nos porões como se acreditou até pouco tempo. Voltaram à tona depois da queda de Dilma Rousseff, com a oportunidade de expor o melhor que a instituição de fato carrega. A realidade, porém, tem dado espaço a uma faceta que o Brasil lembra bem nos tempos de exceção. Bancar uma política de Estado que não dá valor às vidas de inocentes, que repete arroubos autoritários, e nega a realidade. Comprometem-se com um Governo que pretende forçar a abertura da economia, ampliando a guerra aberta com governadores — a despeito da multiplicação de vítimas por covid-19 que isso pode representar.

As operações militares em comunidades do Rio nos últimos anos já haviam deixado sequelas deploráveis. O assassinato do músico Evaldo dos Santos Rosa com 80 tiros em abril do ano passado é só um dos vários exemplos. Agora o Brasil vive sob um presidente que fomenta o caos que outrora o Exército renegava. Mas para os militares, tudo bem. Não há demérito em entrar para a História com mais uma gestão truculenta. A vida de quem se opõe a suas verdades continua valendo nada no século 21.