domingo, 8 de março de 2020

A seguir: a 'guerra urbana'

Está na história. Em fins dos anos 70, era mais fácil encontrar um pinguim do que um militar fardado nas ruas do Brasil. Era como se, encerrado o expediente em seus então milhares de empregos oficiais, os militares pendurassem o uniforme no armário e só saíssem à paisana, para evitar constrangimentos. E com razão: sob uma ditadura já velha de 15 anos, que não metia mais medo em ninguém, um oficial fardado numa fila de cinema arriscava-se a que populares lhe mostrassem a língua. O povo estava farto deles. Mas só em 1985, vitorioso Tancredo Neves, eles marcharam de volta para o quartel e se dedicaram a tentar limpar sua imagem horrível perante a nação.


O que custou décadas, porque havia muito a limpar: a violência das cassações, prisões, torturas e mortes, as cínicas trapaças eleitorais, as sucessivas crises da economia e, como sempre, os acordos corruptos de seus tecnocratas com os piores empresários e políticos nacionais. Mas, milagrosamente, os militares conseguiram. Nos mais de 30 anos desde então, em que eles se conservaram à margem da política e do poder —e das tramoias dos vários governos do período—, o povo voltou a vê-los com simpatia e respeito.

Pois, graças ao governo Bolsonaro, essa imagem respeitável volta a correr perigo. Ao entupir seu gabinete de generais fanzocas e induzir seus subordinados a se cercar de oficiais menores, Bolsonaro está promovendo uma contaminação. Em breve, para o povo, o Exército será cúmplice do descalabro presidencial.

Por enquanto, os generais que Bolsonaro arrebanhou, e a quem impõe seu estilo desqualificado de governar, são dos que comandam mesas. Não se sabe o que pensam os que comandam tropas —e que, para começar, serão chamados a enfrentar as polícias militares dos Estados, no que o próprio Bolsonaro já chamou de “guerra urbana”.

Guerra esta que, por algum motivo, ele parece felicíssimo em insuflar.
Ruy Castro

Mulher brasileira no dicionário bolsonarista


Os planos maquiavélicos de Bolsonaro

A estratégia protogolpista do presidente Jair Bolsonaro é perfeita, exceto pela falta de um ingrediente essencial, que são os índices elevados de popularidade. Para que a tática de jogar o povo contra os outros Poderes funcione, é preciso que o Executivo conte com o apoio decidido da maioria dos cidadãos —e isso Bolsonaro não tem.


Com efeito, líderes populistas que lograram enfraquecer as instituições incumbidas de controlá-los, como Vladimir Putin, Viktor Orbán, Recep Tayyp Erdogan e Hugo Chávez, tiveram força política para enquadrar outros Poderes e até reescrever as constituições de seus países graças a bons resultados econômicos que, durante algum tempo, entregaram a seus eleitores.

Bolsonaro não chegou nem perto disso. As pesquisas de popularidade lhe dão algo em torno dos 30% de avaliações positivas, contra 36% de negativas. E é remota a chance de ele vir a surfar numa onda de pujança econômica. Se, no final de 2019, economistas ainda viam a possibilidade de o Brasil crescer uns 2% em 2020, as perspectivas pioraram no último par de meses. Agora, com o coronavírus, já há quem fale em recessão global, um cenário que seria mais compatível com rejeição nas urnas e impeachment do que com reeleição e remodelamento constitucional.

Daí não decorre, obviamente, que não precisemos nos preocupar com o estado de nossa democracia nem resistir às investidas autoritárias do presidente. No mundo contemporâneo, as ameaças à democracia já não vêm tanto na forma de tanques, mas de perda de higidez. Ficam cada vez mais raras as rupturas formais e se tornam mais presentes arranjos híbridos, em que figuras sombrias instaladas no Executivo desequilibram o balanço institucional para abocanhar mais poder. Mesmo que Bolsonaro não tenha força para introduzir mudanças profundas no sistema, muitas de suas ações mais ordinárias já pioraram a qualidade de nossa democracia.

A história escondida das mulheres guerreiras apagadas dos livros

A presença das mulheres guerreiras foi apagada da história. Mas elas sempre combateram – e não apesar de serem mulheres, mas precisamente porque o eram. Como explica a historiadora Pamela D. Toler no seu novo livro Mulheres Guerreiras (Temas e Debates), há vários motivos pelos quais a presença das mulheres guerreiras foi apagada da história. Quando se excluem as mulheres guerreiras – ou as cientistas, matemáticas ou escritoras – dos registos históricos, é fácil concluir que, com poucas exceções, as mulheres nunca combateram, realizaram descobertas ou fizeram uma diferença no mundo. Se as mulheres não aparecem nos livros de História, é fácil esquecer que elas pintaram quadros no Renascimento, que foram decisivas para a descoberta da estrutura do ADN ou que calcularam trajetórias de foguetões para a NASA. Estudar as mulheres guerreiras da história é importante, porque elas fazem parte da «história oculta do mundo».

Na verdade, as mulheres sempre foram para a guerra, e algumas conseguiram, a custo, ficar nos relatos históricos. Por vezes são recordadas nos seus países de origem como heroínas nacionais, mesmo que tenham sido esquecidas pelo resto do mundo. Porém, «a grande maioria de mulheres guerreiras – de farda ou não, desejosas de combater ou movidas pelo desespero de se defenderem – foi relegada para as sombras da história, escondida em notas de rodapé ou quase apagada», afirma autora.

Aqui fica, em exclusivo para a VISÃO, um excerto do livro que conta a sua história e que chega agora às bancas.

Exceções insignificantes?


Quer a atração atual pelas heroínas da cultura pop, quer as batalhas persistentes pelo papel das mulheres-soldado nas Forças Armadas modernas partem do princípio de que as mulheres que vão para a guerra são anomalias históricas: Joana d’Arc [na imagem em cima], não G.I. Joana. Esta posição é resumida na afirmação incrivelmente imprecisa do historiador militar John Keegan de que "a guerra é […] a única atividade humana da qual as mulheres, salvo exceções muito insignificantes [o destaque é meu], estiveram sempre e em toda a parte afastadas. […] As mulheres seguiam o tambor, cuidavam dos feridos, tratavam do campo e reuniam as multidões enquanto o homem de família seguia o seu líder e até escavavam trincheiras para os homens se defenderem e trabalhavam em oficinas para lhes enviar armas. As mulheres, contudo, não combatem […] e nunca, em nenhum sentido militar, combatem contra homens".

Na verdade, as mulheres sempre foram para a guerra: combatiam para vingar as suas famílias, defender as suas casas (ou cidades ou nações), conquistar a independência relativamente a uma potência estrangeira, expandir as fronteiras do seu reino ou satisfazer a sua ambição.

Um punhado de mulheres abriu caminho à cotovelada até aos relatos históricos. Por vezes são recordadas nos seus países de origem como heroínas nacionais, mesmo que tenham sido esquecidas pelo resto do mundo. Porém, a grande maioria de mulheres guerreiras – de farda ou não, desejosas de combater ou movidas pelo desespero de se defenderem – foi relegada para as sombras da história, escondida em notas de rodapé ou quase apagada. Algumas desapareceram, porque se disfarçavam de homens para poderem combater, surgindo como mulheres nos registos só se os seus disfarces caíam por terra. Algumas foram mandadas para fora de cena: a minha história preferida é a do historiador que afirmou que uma mulher que combateu no cerco francês a Saragoça, em 1808, não contava como combatente, porque a sua vida estava em perigo e ela estava a defender-se. Outras que combateram no passado longínquo são subvalorizadas como lendas, mitos, folclore, exageros ou simplesmente mentiras descaradas, com a justificação de que os relatos dos seus atos ou da sua existência são escassos – uma indignidade à qual os seus congéneres masculinos são menos propensos. Algumas mulheres guerreiras são deliberadamente excluídas da história. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo soviético deu instruções explícitas aos seus esquadrões de mulheres pilotos de caças altamente condecoradas para não falarem sobre as suas experiências no tempo da guerra. Até a história de mulheres-soldado modernas começou a ficar turva. Quando eu dizia às pessoas que estava a escrever sobre mulheres guerreiras, quase todas ficavam atónitas ao saberem que mulheres norte-americanas participaram oficialmente em unidades de combate aéreas e navais nos últimos vinte anos.

Algumas mulheres guerreiras são deliberadamente excluídas da história. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo soviético deu instruções explícitas aos seus esquadrões de mulheres pilotos de caças altamente condecoradas para não falarem sobre as suas experiências no tempo da guerra

De certa forma, o desaparecimento das mulheres guerreiras faz parte da nossa tendência mais alargada de escrever a história no masculino. A tendência é explícita no mundo da história militar. Salienta o historiador militar David Hay: "A presunção de que a guerra é algo essencialmente masculino – seja a apoteose da masculinidade ou a encarnação do patriarcado – baniu o estudo das combatentes femininas para o purgatório académico." Porém, os contributos das mulheres na ciência, na literatura, na política e na economia também são frequentemente minimizados, ignorados ou esquecidos. Pesquise praticamente qualquer tema e encontrará outro exemplo, seja o papel crítico da classicista Alice Kober na decifração da escrita Linear B ou a existência de brigadas de bombeiros voluntários totalmente femininas no início do século XX. Rachel Swaby descreve a escrita sobre estes contributos esquecidos como "reveladora de uma história escondida do mundo".

No caso das mulheres guerreiras, a tendência para apagar os papéis das mulheres na história é complicada pela questão contestada de se as mulheres devem ou não combater. Muitas pessoas que aplaudem as altamente sexualizadas mulheres guerreiras da cultura popular sentem-se menos confortáveis quando confrontadas com imagens reais de mulheres camufladas com cabeças rapadas na recruta ou na escola de Rangers. Na verdade, esse contraste chega a muito do desconforto social multicultural e de longa data com as mulheres guerreiras – o medo de que as mulheres que escolhem combater percam a sua feminilidade ou, pelo contrário, que a sua presença "feminilize" o exército, tornando-o assim menos eficaz, menos agressivo, menos sério ou simplesmente menos. É uma discussão antiga: quando Platão argumentou que as mulheres deveriam ter o mesmo treino que os homens e ser usadas nas mesmas tarefas, incluindo o treino para a guerra, avisou: "Não devemos ter medo das piadas do género que os espertos irão fazer sobre tal mudança na cultura física e artística, muito menos sobre as mulheres que pegam em armas e montam cavalos."

Se analisarmos atentamente as discussões sobre se as mulheres deveriam poder participar em combates nas Forças Armadas norte-americanas, torna-se evidente que quem está em lados opostos da discussão nem sequer coloca as mesmas questões, o que acontece há muito tempo. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o Congresso ponderou sobre permitir ou não que as mulheres fossem membros regulares permanentes das Forças Armadas, defensores do Women’s Armed Services Integration Act, entre os quais o general Dwight D. Eisenhower e o almirante Chester W. Nimitz, argumentaram com o valor de usar mulheres em funções "tradicionalmente femininas" e com a potencial necessidade de uma mobilização rápida em consequência das tensões da Guerra Fria. Críticos da legislação levantaram questões sobre o impacto de "insuficiências" biológicas femininas na eficiência das Forças Armadas, na masculinização das mulheres-soldado e no regresso a uma cultura típica do tempo de paz da domesticidade feminina.Imagem da Marselha desenhada por Gustave Doré no séc XIX, com a tradicional representação feminina da República em armas

Hoje, quem defende que as mulheres deveriam poder assumir funções em combates diretos argumenta em termos de direitos iguais e da natureza do combate na guerra moderna, bem como daquilo que define um combatente, um não combatente e a frente. Por outro lado, os argumentos que defendem que as mulheres não devem ir para a guerra estão profundamente enraizados em ideias sobre o que significa ser mulher e sobre o que significa ser homem. Tais argumentos estendem-se desde ideias culturais e tabus em torno da família, da maternidade, da gravidez e da menstruação até questões banais sobre dispor de instalações físicas para as mulheres-soldado. Os opositores à ideia das mulheres em combate exprimem medos de que uma mulher-soldado engravide para evitar ser mobilizada, referindo que a gravidez é a única incapacidade temporária que um membro das Forças Armadas pode infligir a si próprio sem ser penalizado. Perguntam como irão as mulheres-soldado usar a latrina numa zona de combate. Argumentam que as mulheres não são aptas, ao nível emocional, para combater, porque são naturalmente mais cuidadoras do que os homens, e, por outro lado, dado que os homens são programa- dos para proteger as mulheres, a presença destas no campo de batalha distrairá os seus camaradas das suas funções. Consideram que as mulheres não têm força física nem resistência para a função, quer esta implique usar uma armadura de placas de metal medieval ou os coletes à prova de bala atuais, mantendo uma marcha forçada, carregando uma metralhadora de vinte e três quilos até às batalhas, ou salvando um camarada atingido.

"os argumentos que defendem que as mulheres não devem ir para a guerra estão profundamente enraizados em ideias sobre o que significa ser mulher e sobre o que significa ser homem. Tais argumentos estendem-se desde ideias culturais e tabus em torno da família, da maternidade, da gravidez e da menstruação até questões banais sobre dispor de instalações físicas para as mulheres-soldado
Muitos destes argumentos são familiares a estudantes da história das mulheres. Por diversas vezes, defensores do statu quo usaram preocupações semelhantes para argumentar contra educar mulheres, contratar mulheres ou promover mulheres. Na década de 1860, médicos do departamento de saúde do exército norte-americano usaram as mesmas ideias gerais contra a utilização de enfermeiras na Guerra Civil. Na década de 1980, a polícia e os bombeiros apresentaram justificações semelhantes para não integrarem mulheres agentes da polícia em patrulhas e para não contratarem bombeiras e técnicas de emergência médica.

A força e a continuidade desses argumentos apontam para uma sensação de desconforto social que ultrapassa os argumentos específicos apresentados por opositores às mulheres em combate, aquilo que Elaine Donnelly, fundadora do Center for Military Readiness, descreve como "dissonância cultural", relacionada com a ideia de mulheres nas Forças Armadas. Durante a maior parte da história humana, as imagens dominantes da guerra, e consequentemente da paz, foram baseadas no género. A guerra é considerada uma coisa de homens, posição ilustrada pela ativista e poetisa Grace Paley:

Devo dizer que a guerra é feita por homens. É uma coisa deles, é o mundo deles, e eles são terrivelmente lesados por ela. Sofrem terrivelmente nela, mas ela é feita por homens. Como chegam ao ponto de viver desta maneira? Eu demorei anos a perceber. Porque quando era pequena, era um rapaz, como muitas meninas que gostam de conhecer coisas e que querem estar onde existe ação, que é num canto qualquer onde param os rapazes. E eu percebi isto muito bem, porque era o que realmente me interessava. Estava ansiosa por continuar a ser um rapaz para poder ir para a guerra e fazer todas as outras coisas excitantes de rapazes.

Se os homens são vistos como guerreiros, as mulheres são não guerreiros.

Na sua aceção mais positiva, o papel de «não guerreiro» é enquadrado em termos de maternidade, potencial e factual. As mulheres são consideradas um recurso demasiado precioso para se colocar em perigo, como expôs o correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd num artigo sobre os batalhões russos de mulheres-soldado na edição de março de 1918 da Delineator. "As mulheres têm algo que os homens não têm", explicou ele através do seu intérprete à jovem mulher-soldado que estava a entrevistar.

"Elas têm a maternidade potencial, e, se matarmos isso, matamos a raça inteira." Ao mesmo tempo, as mulheres são vistas como pacifistas natas, precisamente porque são mães (posição que é historicamente dúbia). No debate moderno, a ideia da mãe como não guerreira é muitas vezes disfarçada em termos aparentemente práticos: o que acontece aos filhos quando uma mãe é mobilizada? Pior, o que acontece aos filhos se ambos os pais forem mobilizados? O serviço de elevados números de mulheres jovens nas Forças Armadas teria um efeito adverso na taxa de natalidade de um país? Ideias deste género levam à conclusão de que, mesmo que as mulheres sejam capazes de combater, permitir-lhes que o façam poderá não ser do interesse geral da sociedade.

A imagem das mulheres como não guerreiras não implica que as mulheres não se envolvam na guerra. A alegação de Keegan de que as mulheres não combatem está envolta numa lista de modos em que as mulheres estiveram envolvidas na guerra: "As mulheres seguiam o tambor, cuidavam dos feridos, tratavam do campo e reuniam as multidões enquanto o homem de família seguia o seu líder e até escavavam trincheiras para os homens se defenderem e trabalhavam em oficinas para lhes enviar armas." O historiador e teórico militar Martin van Creveld defendeu a mesma tese em termos mais sombrios quando descreveu os papéis não guerreiros que "as mulheres desempenharam na guerra, nomeadamente como suas causas, objetos e vítimas".

Van Creveld deixa explícita a ideia subjacente àquilo que eu entendo como o "argumento saco para cadáveres": os opositores à ideia de as mulheres combaterem invocam muitas vezes a imagem de uma mãe ou de uma filha a chegar a casa num saco para cadáveres, como se esse fosse um argumento contra a utilização de mulheres nos combates por mérito próprio e como se a morte de uma mãe em combate fosse inerentemente mais horrível do que a morte de um pai. Do outro lado da barricada, a historiadora Linda Grant De Pauw sugere que o problema não é o facto de ser uma mulher dentro do saco para cadáveres: "O horror de mulheres em sacos para cadáveres não é o horror de uma mulher morta. É o facto de a mulher ter sido uma guerreira, de que não é uma vítima. A cultura americana não quer aceitar que as mulheres podem ser ao mesmo tempo guerreiras e mães. […] Aceitar as mulheres como guerreiras significa desafiar o patriarcado ao seu nível mais fundamental."

Visão

Mundo

Na cidade de Ouro Preto há um monumento que eu não direi bonito – não, não é bonito: uma coluna fina e alta e, no cimo da coluna, uma estátua que não parece proporcionada ao pedestal. Mas ao pé desse monumento medíocre há uma inscrição, tão nua e tão sóbria, que nos dá três voltas no coração e vale sozinha por uma dúzia de monumentos. A estátua é do Tiradentes e na inscrição lê-se apenas isto: “Aqui, em poste de ignomínia, foi exposta a sua cabeça”. Sim, ali. Naquele mesmo lugar, no mês de abril de 1792, naquela praça da antiga Vila Rica, onde hoje se ergue a coluna, era a estaca de pau; e onde agora se vê a imagem em bronze do Alferes, espetava-se a sua cabeça, barbuda e descorada, terrível, curtindo ao sol.

Lembrei-me hoje dessa estátua, desse lugar, desse ominoso poste de ignomínia, lendo nos jornais um telegrama onde se conta que as autoridades portuguesas de Angola estão decapitando os rebeldes que apanham e expondo em postes as cabeças degoladas, para escarmento do insurretos. Acrescenta o despacho que tal medida visa atingir a crença supersticiosa dos negros, segundo a qual um corpo sem cabeça não poderá ter descanso depois da morte.

Para que comentar a notícia? Creio que basta repeti-la em todo o seu medieval horror. Breve se completarão 170 anos que os ministros da senhora dona Maria I mataram, esquartejaram, degolaram Tiradentes, expondo-lhe os pedaços do corpo mutilado ao longo da estrada que vai do Rio a Minas, e espetando a cabeça do herói no orgulhoso coração da rebelde Vila Rica. Mas depois disso houve a Revolução Francesa. Houve Napoleão e suas guerras. A ascensão e a queda do Império britânico. A formação e a liquidação do Império prussiano. A Primeira Grande Guerra. A Revolução Russa. O fascismo. O nazismo. A guerra civil na Espanha. A Segunda Guerra Mundial. A bomba atômica. Os mapas da Europa, da Ásia, da África inteiramente subvertidos e renovados. A impressionante insurreição dos povos de cor do mundo inteiro – o que talvez seja a feição principal a marcar este nosso século perante a história.

Entretanto, ao longo disso tudo, parece que a política colonial portuguesa não aprendeu nada; ainda não saiu do reinado de dona Maria I. Rebeldes? É degolá-los e lhes expor a cabeça em praça pública, numa boa estaca, para que tomem a lição e a deem aos outros!

Ontem fui ao cinema ver o excelente documentário que, sob o título de "Mein kampf", recapitula a mocidade, a ascensão e o triunfo de Adolf Hitler. E há na fita um momento onde se faz um cálculo: só por causa daquele homem, entre guerra e "pogroms", morreram mais de 22 milhões de seres humanos.

Dantes, quando eu era jovem, o espetáculo da ferocidade bestial do nazismo, além de me despertar a justa cólera que brada aos céus e pede satisfações a Deus por permitir semelhante horror sob Seus olhos, deixava-me a consoladora convicção de que, em verdade, o sangue derramado dos mártires é a sementeira dos heróis e de que, só sobre alicerces de sofrimento, se constrói a felicidade das gerações futuras. Hoje, que envelheço, talvez a cólera não seja menor, nem menor o apavorado testemunho. Apenas me vai faltando a fé na veracidade daqueles slogans. Já não confio muito na sementeira de heróis, na colheita de liberdades e compensações como herança do sangue dos mártires. Antes me dá um dó terrível, justamente pelos mártires, coitadinhos, pelo seu sacrifício, pelos seus sofrimentos – tão fúteis, Deus que me perdoe, tão perdidos! E por que só pagarem aqueles, justamente aqueles?

Homens que viveram pelo ferro e pelo fogo, morram pelo ferro e pelo fogo, como Trujillo, como Mussolini, como Hitler, e como deveriam ainda morrer alguns. Mas, por que também os inocentes, os que não tinham nada com Hitler nem com os negócios de guerra, os que não disputam o petróleo nem o espaço vital, os que não inventam bombas nem projéteis teleguiados. Os meninos judeus de cara escaveirada e olhos arregalados diante das câmaras de morte; aquela velha avópisoteada na rua, chorando e morrendo; o homem de sobretudo esfarrapado que tenta segurar com as mãos nuas a metralhadora do guarda SS.

E quem marcou, entre os negros rebeldes de Angola, os que teriam a sua cabeça cortada, espetada num poste? E, acima de tudo, quem será o cristão batizado que degola homens e os priva de sua esperança de salvação, só para sustentar alguns meses mais o poder nas mãos trêmulas de um velho? E por falar nesse velho – o que me surpreende é ele, que reza e bate nos peitos, não ter medo desse sangue negro que derrama assim na África, friamente, calculadamente, hitlerianamente. Ele há de dizer que desde que o mundo é mundo Portugal guerreia em terras d´África. Será. Mas com uma diferença: antes, com dom Sebastião, com todos os mais, Portugal lutava em África, matando e morrendo. Morrendo! Agora apenas mata, e de longe, em segurança. Dantes era guerreiro; hoje está apenas querendo ser carrasco.

Pensamento do Dia


Escritores contagiosos

Leio que, na Itália, a epidemia de coronavírus tem levado milhares de leitores às livrarias para comprar “A peste”, de Albert Camus. Também o “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, voltou a frequentar as tabelas dos livros mais vendidos, 25 anos após ser lançado em Lisboa.

Aconteceu algo semelhante no Japão, em 2011, logo a seguir ao acidente nuclear de Fukushima. Nos meses seguintes, os leitores japoneses redescobriram “A peste”. Outro livro que costuma ter grande procura durante crises como a atual é “1984”, de George Orwell. Não por acaso, a forma como o mundo vem reagindo à epidemia de coronavírus configura uma mistura entre “1984”, romance sobre um déspota que recorre às tecnologias mais sofisticadas para vigiar os seus cidadãos, e o livro do escritor franco-argelino, o qual, a partir do drama de uma pequena cidade argelina, Oran, tomada pela peste bubônica, reflete sobre alguns dos aspectos mais sombrios da natureza humana.
'Posso finalmente ler e trabalhar sem que ninguém me incomode. Quando aparece alguém, eu apenas tusso'
Não sei se os aflitos encontram real conforto nos títulos acima. Se algum incauto me contratasse como terapeuta literário aconselharia antes “O amor nos tempos do cólera”, de Gabriel García Márquez, um livro fabuloso, no qual o amor pode não conseguir vencer a epidemia, mas pelo menos permite aos amantes permanecer numa quarentena infinita. Ou seja: se forem forçados a ficar de quarentena, pelo menos escolham bem a companhia.

O coronavírus, portanto, tem o seu lado positivo. Até vários lados. Com as fábricas encerradas, o ar tornou-se mais respirável em vastas zonas da China, diminuindo o número de pessoas afetadas por doenças respiratórias.

Em Portugal, a epidemia tornou-se quase sinônimo de literatura, dando um sentido literal à expressão “escritor contagioso”, no momento em que um romancista chileno, Luís Sepúlveda, foi diagnosticado com a doença. Dois dias antes de ser hospitalizado, na cidade espanhola de Gijon, onde vive, Sepúlveda estivera num famoso festival literário, o Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. A notícia provocou forte alvoroço nos meios literários. Escritores que haviam confraternizado na Póvoa com Luís Sepúlveda optaram por se isolar em casa. O romancista caboverdiano Germano Almeida, muitas vezes referenciado como o maior dos autores de língua portuguesa, foi internado num hospital da cidade do Mindelo, em Cabo Verde, logo depois que o seu avião aterrou. Temia-se que o escritor — um gigante afável, com mais de dois metros de altura —, pudesse, ao espirrar, destruir o arquipélago.

O meu editor português, Francisco José Viegas, conseguiu a proeza de ter estado na Póvoa do Varzim, na China e no norte de Itália nas últimas três semanas. Também ele está em prisão domiciliar, pondo a leitura em dia. No momento em que escrevo esta coluna, quinta-feira, Luís Sepúlveda permanece hospitalizado (faço votos para que se recupere logo). Germano Almeida, felizmente, já está em casa. Os restantes escritores, entre os quais José Luís Peixoto, João Tordo e tantos outros, aproveitam para ler e escrever. “Foi a melhor coisa que me aconteceu”, confessou-me um deles: “Posso finalmente ler e trabalhar sem que ninguém me incomode. Quando aparece alguém, eu apenas tusso.”

Testemunho obstinado

Quem responderia neste momento à terrível obstinação do crime, senão a obstinação do testemunho?
Albert Camus

'Isso aí acabou

Foi assim que o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da presidência da República, tranquilizou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em relação ao temor de alguns deputados de que estariam sendo monitorados pelo governo.

No início do governo Bolsonaro, quando a relação com o Congresso estava em momento crítico, deputados procuraram o presidente da Câmara com uma apreensão: acreditavam que estavam sendo gravados.

Os relatos não foram conjuntos, mas individuais, em diversas circunstâncias, uns consideravam que seus telefonemas estavam sendo grampeados, outros “sentiam” que estavam sendo gravados em suas conversas no Palácio do Planalto.

Eram mais percepções e temores do que fatos concretos que motivassem uma reclamação formal do presidente da Câmara. Até que um deputado com patente militar, ligado à comunidade de tecnologia de segurança de informação, disse a Maia que tinha certeza de que fora grampeado, e deu detalhes técnicos sobre o que poderia ter acontecido ao seu celular Android.

Segundo relatos de deputados, o presidente da Câmara aproveitou uma conversa com o General Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para abordar o tema delicado. Revelou a preocupação de diversos deputados, e recebeu a resposta tranquilizadora, que foi repassada aos deputados queixosos. O assunto morreu.

A revelação do ex-ministro Gustavo Bebianno de que o filho 02 Carlos Bolsonaro pensara em montar um esquema não oficial paralelo de monitoramento de políticos e jornalistas trouxe o assunto de volta ao noticiário e gerou desdobramentos.

Ontem, a revista Crusoé publicou em sua capa um amplo material sobre o tema, detalhando como o esquema teria sido montado. Não há dúvida de que o atual diretor da Agência Brasileira de Informações (ABIN), delegado Alexandre Ramagem foi quem inicialmente discutiu com Carlos e mais três agentes da Polícia Federal a estruturação de uma equipe que seria responsável por essa atividade. Mas não é possível afirmar, (apenas intuir), que ele sabia que o trabalho seria clandestino, embora patrocinado pelo novo grupo que ocupava o Palácio do Planalto.

Há o antecedente histórico do ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, político paranoico que procurou se proteger gravando clandestinamente as conversas no Salão Oval e grampeando seus “inimigos”.

Também objetivava impedir que vazamentos de documentos oficiais voltassem a acontecer como no caso dos Pentagon Papers, que revelou atuação ilegal do Departamento de Estado na Guerra do Vietnã. Essa equipe clandestina era conhecida como “plumbers” (bombeiros), e foi descoberta a partir da prisão de um grupo que invadiu a sede do Partido Democrata no prédio Watergate em Washington. A descoberta dos esquemas clandestinos levou à renúncia de Nixon ante a possibilidade de sofrer um impeachment.

O que é certo é que o General Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, conversou com o General Heleno sobre o assunto, e também Gustavo Bebianno, o primeiro a revelar formalmente essa tentativa do filho do presidente de montar um serviço de segurança paralelo ao já disponível pela presidência da República.

Houve o aconselhamento ao presidente da República, por parte dos dois ex-ministros, de que seria uma temeridade acobertar tal tipo de atividade, que poderia motivar um impeachment.

O ministro Augusto Heleno mais uma vez ontem negou a veracidade da tentativa de criar-se uma “ABIN paralela”. Mas não se referiu em nenhum momento ao filho do presidente, talvez indiretamente citado na definição de “devaneio de amadores”, como classificou a informação.

De fato, é tecnicamente equivocado chamar-se de “ABIN paralela” uma equipe clandestina de rastreamento de pessoas em posições “sensíveis”, embora seja jornalisticamente oportuno.

Mas as indicações são claras de que esse movimento foi feito. Se o esquema chegou a ser implementado a ponto de os deputados “sentirem” sua presença nas conversas políticas, é um tema para ser investigado mais a fundo.

Pode ser até mesmo que não tenha nem sido instalado, diante das advertências aos “amadores”. Ou, o que seria uma tragédia institucional, pode ser que tal esquema continue em plena vigência. Só uma investigação independente poderá esclarecer a situação.

Questões emergentes de nossa democracia

A democracia representativa está em crise. Este é um tema recorrente. Para amparar a tese, ora recorre-se aos mecanismos tradicionais da política, deteriorados desde a Queda do Muro de Berlim; ora se pinça a lição de Norberto Bobbio, que lembra as promessas não cumpridas pela democracia.

Na primeira leva, temos a derrocada das ferramentas clássicas da política: crise das ideologias, pasteurização dos partidos, declínio dos Parlamentos, arrefecimento das oposições, desmotivação dos eleitores, exacerbação do presidencialismo de cooptação, entre outras. Em contraponto, surgem novos polos de poder, como as entidades de intermediação social.


Já na vertente de Bobbio, narram-se as falhas dos sistemas democráticos, que prometeram eliminar o poder invisível e o império das oligarquias; proporcionar transparência e expandir os valores da cidadania pela educação. Em “O Futuro da Democracia”, Bobbio descreve o cenário do amanhã.

Evidente que, a cada ciclo, acrescentam-se novos ingredientes. Por isso, quando se planeja hoje algum evento sob a chancela de “crise”, deve-se entender que as pautas tratarão de questões emergentes, pontuais e agravadas pela cultura política de cada país.

Exemplos são: a politização das Forças Armadas e a “milicialização” das Polícias Militares. Líderes desses dois contingentes poderão dizer que “não ocorre isso”, é um exagero de jornalistas, políticos e analistas. Mas a quadra atual sugere que essas temáticas não sejam escondidas.

A politização das Forças Armadas tem como eixo-mor o círculo de generais em volta do presidente da República. Duas visões sobre o tema: uma, dos próprios participantes da roda, nega tal incursão na política. A menos que seus integrantes o façam pela via partidária, como na eleição de 2018. Outra ala defende militares da ativa fora da política, seguindo a ordem constitucional. O comandante do Exército, Edson Pujol, seria o avalista dessa linha.

Militar reformado assume o papel de civil, como devem ser considerados os generais aposentados do “núcleo duro”. Mas o fato é que, de pijama ou sem, o número de generais no Executivo chama a atenção ao encarnar fortaleza em defesa do presidente. Isso atemoriza parcela da sociedade.

Na “milicialização” das PMs, a inferência negativa é até maior, a partir da leitura do episódio do Ceará. Houve ali um “motim”? Policial pode fazer greve? Por indução, entende-se que os “amotinados” poderiam se multiplicar país afora. O termo “milícia” é empregado para designar bandidagem, relacionando quadrilhas no Rio (e figuras ligadas à família Bolsonaro) com quadros policiais nos Estados. Lembre-se de que a vida política de Bolsonaro começou com a defesa de aumento de soldos para as Forças Armadas.

Os dois temas estão incorporados na política e na polarização que envolve o país. A discussão se justifica, até para afastar dúvidas sobre suas intenções.

O Instituto Brasil Mais Plural, formado por cientistas políticos, jornalistas, juristas e advogados, economistas, pessoas de denso pensamento, prepara para maio, em parceria com o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), um seminário em São Paulo sobre esses fenômenos que ameaçam nossa democracia. É hora de debatê-los à luz do bom senso.

Apelo às ruas é mais um sinal de desespero de um presidente isolado

O que causa espanto não é Jair Bolsonaro remeter um vídeo para seus seguidores endossando a manifestação de rua contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal convocada por seus devotos para o próximo dia 15 – e depois negar que o tenho feito. Nem aproveitar, agora, uma viagem de fim de semana a Roraima para incentivar o povo a participar da manifestação que será, segundo ele, muito bem-vinda, porque é “o povo quem diz para onde o Brasil deve ir”. Nada disso espanta.

Espanta é a reação dos que ainda acreditam ou dizem acreditar que Bolsonaro tem compromissos, sim, com a manutenção da democracia entre nós e que em momento algum tenta enfraquecê-la. Ou são ingênuos, ou cegos ou coniventes com ele. É direito do povo ou de parcelas dele ir às ruas pacificamente defender o que quiser, até mesmo uma ditadura como parte faz, e Bolsonaro nunca condenou, antes pelo contrário. Mas o presidente não tem o direito de jogar o povo contra os demais Poderes.

Foi o general Augusto Heleno, ministro do esvaziado Gabinete de Segurança Institucional, quem sugeriu a Bolsonaro chamar os bolsonaristas de raiz e os de ocasião para pressionar o Congresso a rever o acordo sobre o chamado Orçamento Impositivo da União. O acordo havia sido firmado, de um lado, pelos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, por outro, pelos ministros Paulo Guedes, da Economia, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. Bolsonaro e Heleno estavam informados a respeito. Mesmo assim o acordo acabou revisto por um Congresso com medo de ser enxovalhado nas ruas. Um novo acordo foi fechado nesta semana e começou a ser votado. Isso não impediu que Bolsonaro, outra vez, mentisse ao afirmar que não fez acordo.

O apelo dele ao apoio das ruas tem menos a ver com verbas do Orçamento e mais com a situação difícil que o país atravessa, e também o governo. A economia patina. O coronavírus chegou. Por sua culpa ou escolha, Bolsonaro está cada vez mais isolado. E aí... Aí tenta distrair a atenção dos brasileiros dos problemas que de fato importam. Quanto mais confusão, melhor para ele. Chama o palhaço fantasiado de presidente para explicar o pibinho. Culpa a imprensa por tudo, rompe relações com ela, para depois reatar. Cerca-se de generais. Nomeia uma artista de televisão, antiga namoradinha do Brasil, com a missão de pacificar as relações do governo com a classe artística. Promete que ela terá carta branca para governar e depois diz que não será bem assim.

Onde está Queiroz? Quem matou Marielle Franco? Por que barrar a investigação do esquema da rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro? O que guardam na memória os celulares do miliciano Adriano Lopes caçado e morto na Bahia?

É jogo jogado que Bolsonaro será sempre Bolsonaro, o mal militar como disse o ex-presidente Ernesto Geisel, o presidente mau como se revela. Resta impedi-lo de destruir “tudo o que está aí” para depois construir o país dos seus sonhos. Ou dos seus pesadelos.