quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 


Lembranças e raízes

O passado sempre me assustou. Não pelo conjunto de vivências ou experiências, mas pelo vazio das ausências. Consciente da transitoriedade da existência, o desejo inconsciente da imortalidade é absolutamente inútil. E tudo passa. O realismo se impõe, mas que dói, dói. E quando me refiro ao vazio, à falta, não me limito às pessoas. Estendo um esforçado olhar para tudo que um dia foi paisagem natural ou dinâmica cultural que preencheu a vida

Todo dia 10 de dezembro, almoçava com velhos amigos na casa de Leonardo Silva, em comemoração ao aniversário do consagrado pesquisador e historiador pernambucano com quem convivi, desde os 11 anos de idade no bairro da Torre, e trabalhamos juntos em funções públicas. Com ele aprendi muito e a inteligência pernambucana foi engrandecida por sua competência e integral dedicação ao nosso rico e diversificado patrimônio cultural.

Seria um dia particularmente triste: exatos trinta dias do seu falecimento. A família, por desejo de Leonardo, manteve o almoço. O encontro, pouco convencional, ocorreu com a leveza e a beleza da vida nos dando a sensação de que ele orquestrava uma sinfonia de afetos. Brindamos a alegria e a aventurança de tão longa e indestrutível amizade.

Em mim, operou-se uma transformação. Como diria Nelson Rodrigues, tornei-me um ex-covarde. Desde morte de minha mãe, em fevereiro de 1985, não voltei à rua e às cercanias da casa onde morei, Bairro da Torre, como se pudesse apagar maravilhosas lembranças e as dores da saudade. Naquele dia, a coragem esbofeteou o sentimento mofino da fuga; abriu olhos interditados; iluminou a memória e confirmou o valor das raízes.

Fui a todos os lugares, completamente desfigurados pelo acelerado e desordenado processo de urbanização, mantidos intactos por força do processo de tombamento e iniciativa de Leonardo, a fachada da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a chaminé do primitivo engenho (depois olaria) a casa grande transformada no grupo escolar, hoje, denominada Escola Maciel Pinheiro aos quais prestei minha reverência.


Do romântico banco da praça (Barreto Campelo), compreendi o sentido do tempo da memória (título do belo livro de Norberto Bobbio – Ed. Campus, Rj, 1997) que não corre atrás de lembranças, mas olha para dentro de si mesmo, onde, dizia Santo Agostinho, habita a verdade.

Estas verdades são as raízes. E as raízes me chegaram nos três apitos (título de uma canção de Noel Rosa) que ecoavam do Cotonifício da Torre, às 14, 22 e às 6 horas da manhã determinando o fim e o começo das jornadas de trabalho; depois, veio a voz do locutor da festa de Santa Luzia (padroeira da visão e objeto da devoção pela proteção de acidentes que afetavam os olhos dos operários), voz sempre empostada, animando os frequentadores com músicas românticas e enviando mensagens cifradas de paqueras com um “assinado: pensando saberás”. Mais ao longe, a imagem do Rio Capibaribe marejou meus olhos.

O minúsculo fato provinciano reacendeu lembranças e revelou o valor das raízes, que só é possível no lugar de origem; no lugar pequeno em que se pode amar o próximo; e que os homens são mais iguais do que diferentes; que os sentimentos de mãe não conhecem fronteiras nem qualquer outra distinção.

Daí, uma das frases mais citadas de Tolstoi (1828-1910, escritor genial e um educador libertário): “Se queres ser universal começa por pintar a sua aldeia”; o cosmopolita e grande estadista, Joaquim Nabuco(1849-1910) definia seu sentimento político e afetivo de pertença em relação às suas raízes: “A verdade é que sinto cada vez mais forte o arrocho do berço”.

Neste sentido, duas das maiores filósofas do século XX, Simone Weil (1909-1943) ; e Hannah Arendt (1906-1975) nos legaram sólidas reflexões sobre a questão do enraizamento e do desenraizamento (este é o título de uma das obras admiráveis de Weil) enquanto que Arendt, ao discorrer sobre a banalidade do mal, identifica o mesmo fenômeno da experiência humana desenraizada em relação à amoralidade, à subserviência às ordens e ao acriticismo.

Todos os amigos homenageavam o homem da cultura na sua mais ampla expressão que compreendeu que as raízes são uma necessidade da alma e sua negação uma grave doença social.

Do banco da praça, rapidamente, fui inundado pelo pavor do ódio, da violência, da estupidez das guerras que naquele instante assassinavam pessoas e condenavam ao desaparecimento a casa, a vizinhança, a cultura, a terra, enfim, as raízes. Daí, brotam multidões de zumbis, sem passado e sem futuro.

Por mais ingênuo que possa parecer, sigo acreditando que é possível repartir mais igualitariamente o que o engenho humano produz, semear esperança, celebrar a paz e construir um mundo melhor para se viver.

Natal de morte


Quem pode ter vontade de comemorar o Natal se estamos arrasados com as imagens que vemos todos os dias de crianças sendo retiradas dos escombros de Gaza? 
Munther Isaac, pastor da Igreja Evangélica Luterana da Natividade, de Belém

'Rezar para que a guerra acabe':

Uma manjedoura feita de escombros, onde jaz um menino Jesus envolto em um lenço (kufiya) palestino, acolhe os fiéis de uma das igrejas de Belém.

A cidade palestina, onde cristãos acreditam que Jesus de Nazaré nasceu, cancelou as celebrações do Natal neste ano.

Nem pinheiros cheios de enfeites, nem decorações foram colocados em suas ruas ou em sua famosa Praça da Manjedoura. Também não há turistas ou peregrinos que tragam o seu espírito natalino em um dos locais mais sagrados para o cristianismo.

"Quem pode ter vontade de comemorar se estamos arrasados ​​com as imagens que vemos todos os dias de crianças sendo retiradas dos escombros de Gaza", disse Munther Isaac, pastor da Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.


Desde que a sua congregação instalou a manjedoura, a imagem do menino Jesus envolto no lenço palestino circulou amplamente nas redes sociais e o padre Isaac foi inundado com pedidos de entrevistas.

"Queremos enviar uma mensagem ao mundo de que o Natal está assim em Gaza e em toda a Palestina. Isto é Natal no local de nascimento de Jesus: crianças assassinadas, casas destruídas e famílias deslocadas", afirma o clérigo.

Se Jesus nascesse de novo em nossos dias, lamenta, "ele o faria sob os escombros de uma casa em Gaza".

Cerca de 47 mil cristãos vivem na Palestina, berço do cristianismo, segundo o último censo do Gabinete Central de Estatísticas Palestino, realizado em 2017. A maioria pertence à Igreja Ortodoxa, embora praticamente todas as linhas estejam representadas nos territórios palestinos.

Os luteranos, credo ao qual Isaac, 44 anos, pertence, somam pouco mais de 1.500.

Belém tem apenas 30 mil habitantes, mas concentra mais de cinquenta igrejas e instituições cristãs devido à sua profunda importância religiosa. Segundo os evangelhos de Mateus e Lucas, que registram as "histórias da infância" de Jesus, foi para lá que Maria e José, seus pais, viajaram vindos da Galiléia e onde nasceu aquele que consideram seu messias.

A cidade abriga grande parte da comunidade cristã palestina na Cisjordânia, juntamente com Jerusalém Oriental e Ramallah, embora haja também uma pequena comunidade em Gaza.

No dia 19 de outubro, uma das igrejas onde a congregação cristã da Faixa se refugia, a de São Porfirio, foi atingida por um bombardeio israelense que matou 18 pessoas, incluindo 9 crianças, o que mostra, segundo os religiosos, que "ninguém está seguro em Gaza, qualquer lugar pode ser um alvo."

Cerca de 900 pessoas refugiam-se nas duas igrejas em Gaza. Uma bomba israelense atingiu o prédio da igreja de São Porfírio em 19 de outubro, matando 18 pessoas

Munther Isaac está em constante contato com a comunidade cristã de Gaza, onde tem amigos que vivem com medo: "Cada vez que telefono, eles me lembram que pode ser a última vez que falamos, que aquele pode ser o último dia deles".

"Eles são o nosso povo, são os nossos amigos, os nossos parentes, e a comunidade internacional continua justificando este assassinato, racionalizando-o para enviar a mensagem de que as crianças palestinas não importam", diz ele por telefone de Belém, onde é reitor acadêmico. do Colégio Bíblico de Belém.

Pelo menos 18.400 pessoas, incluindo mais de 7.700 crianças, já morreram na operação militar israelense em Gaza, segundo o Ministério da Saúde da Faixa de Gaza. Isso começou em 7 de outubro, após o ataque do Hamas a várias cidades do sul de Israel, no qual cerca de 1.200 pessoas morreram e 245 foram sequestradas, segundo as autoridades israelenses.

Os feridos em Gaza chegam agora a 50 mil, enquanto o seu sistema de saúde está à beira do colapso, quase sem medicamentos, com hospitais saturados e profissionais de saúde vivendo em tendas improvisadas de plástico às portas dos centros.

Cerca de 900 cristãos se refugiaram nas duas igrejas que ficam em Gaza, segundo o padre Isaac, a Igreja Católica da Sagrada Família e a de São Porfírio, ortodoxa grega, e onde se encontrou enterrado aquele que foi o bispo de Gaza no século 5 e que dá nome ao templo.

Ambas ficam no centro da Cidade de Gaza, que foi intensamente bombardeado desde o início da guerra e que é cenário de combates ferozes entre o Hamas e as tropas israelenses.

Embora Israel tenha pedido aos residentes que deixassem a área, os cristãos abrigados nas igrejas recusam. "Eles têm medo de que, se partirem, nunca mais poderão voltar. Se eles vão morrer, dizem, morreremos juntos na igreja. É um pensamento muito triste", reconhece o religioso.

A Faixa de Gaza contava com também com a Igreja Batista de Gaza, que acabou por deixando esse território palestino em 2008.

No atual conflito, não foi a primeira vez que a pequena comunidade cristã de Gaza buscou refúgio em seus templos.

Nas guerras passadas, a igreja de São Porfírio e a da Sagrada Família acolheram centenas de pessoas, cristãos e muçulmanos, dentro de seus muros.

Nesta ocasião, afirma Isaac, "os sacerdotes foram muito conscientes desde o princípio de que esta seria uma guerra longa, por isso chamou imediatamente todos os cristãos para se abrigarem na igreja".

O conflito em Gaza também é sentido na Cisjordânia, onde aumentaram os ataques dos colonos israelitas contra a população. Desde 7 de outubro, mais de 280 palestinos morreram, incluindo 63 crianças, naquele território.

Belém, localizada a apenas uma dezena de quilômetros de Jerusalém, está rodeada por assentamentos israelenses e seus habitantes também têm sofrido com o aumento da tensão.

"Os colonos sentem que esta é a sua oportunidade porque não só o foco está em Gaza, mas ninguém os responsabiliza ou controla. Eles fazem o que querem e o que podem", diz o Padre Munthar Isaac.

Nos últimos dois meses, aumentaram as incursões militares israelitas em Belém e muitos residentes têm medo de viajar entre as cidades porque as estradas são controladas pelo exército e é onde os colonos tendem a ser mais ativos, afirma o religioso.

A cidade, que no Natal costuma viver seu momento mais movimentado com a chegada de milhares de cristãos que desejam visitar a Basílica da Natividade, o templo cristão que tem o uso contínuo mais antigo do mundo, apresenta hoje um aspecto bem diferente de outros anos.

A Praça da Manjedoura, em frente à Basílica da Natividade, está praticamente vazia, apesar da data.

É aqui que tradicionalmente chegam os peregrinos vindos de Jerusalém, e onde o Natal é celebrado três vezes por ano: o rito ocidental inicia as celebrações em 24 de dezembro, enquanto as igrejas ortodoxas celebram em 6 de janeiro e as armênias, em 19 de janeiro.

Os hotéis, restaurantes, lojas de souvenirs e fábricas artesanais de cruz e outros objetos religiosos em madeira de oliveira, que garantem as finanças da maioria dos habitantes, estão desertos.

Desde 7 de outubro, os hotéis têm recebido um cancelamento atrás do outro, também de reservas para o próximo ano, como disse um deles à agência Reuters.

As orações, hoje em dia, estão focadas no fim da guerra, embora Munther Isaac reconheça que é difícil para eles manter a esperança:

"Na nossa manjedoura, Jesus é a nossa esperança, a nossa fé, não a guerra, não o resto do mundo, não os políticos. Desistimos de que a comunidade internacional viesse em nosso auxílio. Percebemos que a nossa esperança reside na nossa unidade como povo. Este não é o momento de esperar um futuro melhor, este é o momento de desejar e rezar para que esta guerra acabe."

A fuzilaria invisível

Em uma guerra, o cansaço e a indiferença permitem ao absurdo e à destruição se misturarem à paisagem sem interromper os afazeres diários dos combatentes. Oficial de artilharia na frente ocidental em 1914-1918, o poeta Guillaume Apollinaire explicou em um verso de seus Calligrammes a razão então desse fenômeno: “Car on a poussé très loin durant cette guerre l’art de l’invisibilité”. Eis que se levara longe demais a arte da invisibilidade. Naquela guerra, como em Gaza.

Na semana passada, três reféns do Hamas levantaram as mãos e traziam uma bandeira branca, mas seus gestos permaneceram invisíveis aos soldados de Israel que deviam salvá-los. Os três foram abatidos. Fatalidade? Quando soldados vão à batalha em meio à aparente disposição de não fazer prisioneiros, é a civilização que é derrotada.

Quem não percebeu o alcance daquelas três mortes devia ler o artigo O Custo da Resposta Israelense ao Ataque do Hamas, de Paulo Gomes Filho, coronel do Exército brasileiro. Ou responder à pergunta do cientista político John J. Mearsheimer no artigo Death and Destruction in Gaza. A reação israelense ao terror do Hamas dissemina a rejeição ao sofrimento imposto a civis não combatentes. “O chinês

Sun Tzu, autor de Arte da Guerra, destaca que, dentre os cinco erros que podiam ser cometidos por um general estavam a imprudência, que leva à destruição, e a cólera, que leva à precipitação”, lembrou o coronel, antes de questionar: “Estariam os líderes israelenses motivados por uma cólera imprudente?”


Podem-se exibir túneis, armas e a impiedade do Hamas. Sabe-se que ele se mistura a civis e deliberadamente põe em risco a população para causar danos ao Tsahal. Mas o comportamento do terrorista não autoriza Israel a usar quaisquer meios ou métodos de combate para alcançar seus objetivos militares.

Para o coronel, ao optar por ações que alcançam de forma imediata seus objetivos táticos, mas causam muitos danos colaterais, Israel pode colher no futuro uma derrota no nível estratégico. “A vitória de Israel, no campo da tática, é questão de tempo. Mas a conquista dos objetivos militares é só uma parte da operação. Depois dela, virá a mais difícil: estabilizar a Faixa de Gaza e encontrar uma forma para que israelenses e palestinos convivam em harmonia.”

Ainda que a ideia de um mundo pacífico, embora atraente, não seja prática ou que a sobrevivência seja o principal objetivo das Nações, Mearsheimer endereçou sua pergunta “aos líderes israelenses e à administração Biden”: “Vocês não têm vergonha?” A resposta a ela talvez seja a mesma encontrada por Apollinaire: quando o obus assume a cor da lua é preciso lembrar que existem homens no mundo que não foram jamais à guerra.