segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Piscina

Andrea De Santis
Era uma esplêndida residência, na Lagoa Rodrigo de Freitas, cercada de jardins e, tendo ao lado, uma bela piscina. Pena que a favela, com seus barracos grotescos se alastrando pela encosta do morro, comprometesse tanto a paisagem.

Diariamente desfilavam diante do portão aquelas mulheres silenciosas e magras, lata d’ água na cabeça. De vez em quando surgia sobre a grade a carinha de uma criança, olhos grandes e atentos, espiando o jardim. Outras vezes eram as próprias mulheres que se detinham e ficavam olhando.

Naquela manhã de sábado ele tomava seu gim-tônica no terraço, e a mulher um banho de sol, estirada de maiô à beira da piscina, quando perceberam que alguém os observava pelo portão entreaberto.

Era um ser encardido, cujos trapos em forma de saia não bastavam para defini-la como mulher. Segurava uma lata na mão, e estava parada, à espreita, silenciosa como um bicho. Por um instante as duas mulheres se olharam, separadas pela piscina.

De súbito pareceu à dona de casa que a estranha criatura se esgueirava, portão adentro, sem tirar dela os olhos. Ergue-se um pouco, apoiando-se no cotovelo, e viu com terror que ela se aproximava lentamente: já atingia a piscina, agachava-se junto à borda de azulejos, sempre a olhá-la, em desafio, e agora colhia água com a lata. Depois, sem uma palavra, iniciou uma cautelosa retirada, meio de lado, equilibrando a lata na cabeça – e em pouco sumia-se pelo portão.

Lá no terraço o marido, fascinado, assistiu a toda acena. Não durou mais de um ou dois minutos, mas lhe pareceu sinistra como os instantes tensos de silêncio e de paz que antecedem um combate. Não teve dúvida: na semana seguinte vendeu a casa.
Fernando Sabino. "A mulher do vizinho"

Algumas reflexões diante da lama

Difícil não ser caótico para descrever uma catástrofe.

“O Rio? É doce/ A Vale? Amarga/ Ai, antes fosse/ Mais leve a carga” (Carlos Drummond de Andrade).

Viajei triste para Brumadinho. Estou cansado de desastres. Conheço até sua lógica: tristeza, indignação, medidas urgentes para acalmar os ânimos e logo depois o esquecimento.

A única forma de suportar o que veria era levar a obra de Drummond na viagem. Ninguém melhor do que ele descreveu as relações das mineradoras com a paisagem e mesmo com as almas. Talvez seja o melhor caminho para entender toda essa história.

Drummond era ao mesmo tempo a testemunha e o profeta. Morreu antes do desastre de Mariana, não viveu a fase trágica que se completa agora com o desastre em Brumadinho. A maneira como descreve Itabira é um desastre em câmera lenta.

Depois de Mariana, passei a seguir o trilho da mineração. Cobri um vazamento de alumínio nos igarapés de Barcarena, no Pará. Em seguida, o rompimento do mineroduto em Santo Antônio do Grama.

Não foram em barragens, onde se situa o maior perigo, sobretudo a do tipo de Mariana, que deveria ser proibida. Era uma decorrência do desastre. Mas onde estavam governo e Parlamento? Muito próximos da indústria, muito longe das pessoas e da natureza.


Onde estava a Justiça no caso de Mariana? Por que tão lenta? No ano passado, estive lá e nos escombros comentei a decisão de um juiz de suspender o processo contra a Samarco. Chicanas.

Tenho um pouco de escrúpulo em dizer: isto não pode se repetir. As coisas se repetem tanto. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, assumiu o cargo com o slogan “Mariana nunca mais”. Agora, a Vale quer prometer Mariana e Brumadinho, nunca mais. É só ir empurrando o nunca mais para o fim e acrescentando alguns nomes antes dele.

Lembra-me dos trens italianos, rapido, molto rapido, rapidissimo .

Acreditamos demais na palavras. O presidente da Vale estava na plateia em Davos quando o presidente Bolsonaro afirmou que o Brasil é o país que mais protege o meio ambiente no mundo. Falava apenas da relação das florestas com agricultura e pecuária.

Isso é um problema antigo com Bolsonaro. Ele teve a ideia de fundir o Ministério da Agricultura com o do Meio Ambiente. Argumentei que o meio ambiente era mais amplo, crise hídrica, saneamento básico, estendia-se até o licenciamento no pré- sal.

A pressão de todos os lados o fez recuar: manter o Ministério do Meio Ambiente. Mas, ao falar em Davos, de novo ele abstraiu o meio ambiente e o reduziu à questão do campo.

Bolsonaro dizia na campanha que o Ibama é uma indústria de multa. O Ibama não recebeu, por exemplo, nenhum centavo da multa de R$ 250 milhões aplicada à Samarco. É uma indústria completamente falida. Seus devedores não pagam.

Não vou argumentar mais, o desastre fala por si: toneladas de lama, bombeiros rastejando no barro fétido, uma vaca atolada, uma antena de TV flutuando, uma caixa-d’água, o desespero das famílias. A sirene que não tocou, e a lama levou os hóspedes da Nova Estância, a própria pousada foi arrastada. Eles tinham um plano de fuga. E a sirene não tocou. Eram 34, ao que me consta. E mais um bebê na barriga da mãe, mulher de um arquiteto brasileiro que vivia na Austrália e veio conhecer Inhotim. E a sirene não tocou.

Gente fora do mapa

Homem observa o rio Paraopeba, em Brumadinho (Yuri Edmundo)

O olhar de esperanças

Quando o olhar de esperanças começava a enxergar os umbrais do futuro, uma paisagem devastada por lama e rejeitos de ferro em território adornado por montanhas desvia a vista para uma horrenda fotografia do passado. Carlos Drummond de Andrade, em 1984, já descrevia: “O Rio? É doce. A Vale? Amarga. Ai, antes fosse/Mais leve a carga. Entre estatais/E multinacionais/ Quantos ais!”

O futuro ensaiava harmonia ambiental, desenvolvimento social, vida em segurança, com o homem tirando a riqueza da terra para seu pibizinho de felicidade. Era isso que se via pelas frestas do amanhã: um país retornando ao porto seguro, depois de anos de borrascas que sugavam as energias de seu povo.

O passado contém curvas, artimanhas e aquele jeitinho herdado desde remotos tempos: a mamata nas tetas do Estado, o nepotismo, a apropriação indevida dos bens públicos, o amaciamento de leis, a devastação da natureza, as tragédias anunciadas com seus mortos enfileirados, o conluio político, a dinheirama no balcão de recompensas, os Poderes sob permanente tensão, entre outras mazelas.

Até chegamos ao lema do comandante dessa que se apresentava como empresa-orgulho do Brasil, a Vale:“Mariana nunca mais”. Há 3 anos, o rompimento da barragem de Fundão em Mariana conferiu ao Brasil a marca do maior impacto ambiental da história. O maior do mundo. A barragem pertence à Samarco, propriedade da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. O desastre de Mariana se repetiu.

E o que se enxerga então? Desculpas esfarrapadas. Explicações que davam a barragem como segura. Bloqueios de bilhões da empresa, que retornarão pelo caminho longo do Judiciário. Endurecimento da legislação? Jair Bolsonaro e Romeu Zema, governador de MG, prometeram em campanha o contrário: amaciar, flexibilizar para desburocratizar. O novo governo está numa encruzilhada.

Sob a égide privatista, no guarda-chuva do liberalismo da equipe econômica, o meio ambiente não deverá ser tão protegido. O agronegócio esticará seus braços sobre paisagens verdejantes. Pode até se reaver o projeto arquivado no Senado sobre endurecimento das leis ambientais. Receberá endosso das bancadas duras? Difícil.

Não há, então, fresta na janela do amanhã para fazer brotar as esperanças? Só se for a do ministro Sérgio Moro, da Justiça, de onde descortinaríamos melhor visão. Mas ele terá que aguentar o tranco e sustentar a força investigativa do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), de olho nas contas do senador eleito Flávio Bolsonaro. Moro está entre a cruz e a caldeirinha. Se o órgão for em frente, crescerá a montanha de suspeitas sobre o filho do presidente e outros protagonistas do jogo da “rachadinha”.

Assim, o futuro continua preso ao cordão do passado. Esses laços são fortes e nossa cultura política se banhará por muito tempo em fontes contaminadas, talvez soterrada em lama e rejeitos em todo o território. Assepsia, só no longuíssimo prazo.

Até lá, com paciência e persistência e, sobretudo, fé, poderemos empurrar o balão da política na direção de novos ventos.

Comparação

Não adianta chorar
ir à sacada e bradar
oh tempora, oh mores!

Não somos maus
só temos o azar
de os outros serem melhores.
 

A lama invadiu o Brasil

O luto é um estado de espírito que piora a cada dia quando se aceita que o que aconteceu não é um pesadelo. É o cara a cara com a perda irreparável, é o amanhã do que não poderia ter acontecido. Olhar em volta e só ver a lama.

Estamos vivendo um luto. Pelas ilusões perdidas, pelos falsos profetas enlameados, pelo país que poderia ter sido e que não foi. Há poucos anos acreditávamos que o Brasil, enfim, decolaria.

Foi nessa época que visitamos Inhotim e pernoitamos em Brumadinho, uma cidade modesta, um nome que se pronuncia com carinho. Voltamos da visita ao parque e, à noite, tudo era alegria, um orgulho imenso do Brasil em que se misturavam os Parangolés do Oiticica, os azulejos da Varejão com uma natureza esplendorosa e bem preservada. O Brasil do talento alimentou esperanças de que um dia o país seria todo como esse parque feito de arte e originalidade, em um meio ambiente exemplar. Nessa noite, em Brumadinho, fomos felizes.

Não tínhamos ainda visto a lama. A lama que invadiu o país, torrencial, se infiltrando por todas as frestas, invadindo as casas, soterrando gente e projetos, engolfando partidos. Essa lama omnipresente que destrói tudo e nos ameaça com o descrédito internacional, nos faz terra arrasada.

Essa lama que invadiu as empresas que destroem o que deveriam construir, os gabinetes de deputados repletos de fantasmas, essa lama feita de atraso, propinas, ganância, desonestidade, de irresponsabilidade e incompetência, de desprezo pela vida humana, essa lama invadiu as nossas veias e está endurecendo nossos corações. Esse país nos envergonha. Não é o que sonhamos na noite de Brumadinho.

A cidade destruída, mais uma, é uma metáfora poderosa e trágica. Os mortos foram enterrados vivos. Os vivos chafurdam na lama assassina, que cola neles, sem saber como removê-la. Não é um pesadelo. É o Brasil.

Mas há os que não desistem, os que procuram sobreviventes. Em todo o pais é preciso buscar sobreviventes para, juntos, reconstruí-lo. Só assim nós mesmos sobreviveremos.

Paisagem brasileira

Santo Antônio de Lisboa, bairro açoriano de Florianópolis (SC)

É possível dar um preço à mudança climática?

Gases do efeito estufa e outras substâncias tóxicas prejudicam a saúde humana, destroem ecossistemas e aquecem o clima global. Por todo o mundo, aumentam as intempéries extremas, causando inundações, secas, destruição e muito sofrimento. Segundo o mais recente Índice de Risco Climático Global, 11.500 pessoas perderam a vida em 2017 devido a extremos meteorológicos, e os custos materiais ultrapassaram os 375 bilhões de dólares.

Até agora, os causadores de danos ao clima, meio ambiente e saúde em geral não arcam com os prejuízos. Nos raros casos em que os atingidos obtêm assistência, ela parte da comunidade ou do Estado.

"Temos de conseguir que os preços de nossos produtos digam a verdade ecológica", reivindica a especialista Astrid Matthey, do Departamento Federal do Meio Ambiente (UBA) da Alemanha. Com base em métodos científicos, ela e seus colegas de equipe avaliam os prejuízos dos diversos produtos para a humanidade em geral.

"Provocam-se danos à saúde, a edifícios e infraestrutura, em nossos ecossistemas", explica. "E, se eu monetizo esses danos, ou seja, se os expresso em euros, aí a maioria das pessoas consegue perceber melhor do que em termos de danos ao ecossistema ou de uma tonelada de CO2."

A equipe de Matthey acaba de divulgar as mais recentes quotas de custos para a Alemanha. Elas permitem avaliar a extensão dos custos ambientais da eletricidade a partir de carvão mineral ou vento, da calefação com óleo, gás ou energia solar, e de uma viagem de ônibus, trem, automóvel ou avião.

Segundo os cálculos do UBA, por exemplo, uma tonelada de dióxido de carbono provoca danos de cerca de 640 euros nos próximos 100 anos. "Com essa quota de 640 euros por tonelada de CO2, são avaliados tanto os danos às futuras gerações quanto à geração atual."

Aplicando-se essa taxa, por exemplo, a meios de transporte, um voo de curta distância de mil quilômetros teria um impacto ambiental de 235 euros por passageiro, contra apenas 26 euros para o mesmo trecho num ônibus de viagem, ou 46 euros nos trens movidos a eletricidade da Alemanha.

A viagem de carro é também muito prejudicial ao meio ambiente: um trecho de mil quilômetros provoca impacto duradouro de 193 euros num veículo movido a diesel, e de 152 euros num automóvel elétrico, tendo-se como base a atual matriz energética alemã.

No entanto o UBA sugere que, ao avaliar danos futuros, se aplique uma quota reduzida de 180 euros por tonelada de CO2, dando-lhes peso inferior aos danos atuais, ressalva Matthey. Em 2019, o departamento divulgará pela primeira vez o impacto ecológico da produção agropecuária.

Especialistas de todo o mundo discutem atualmente sobre como expressar num "preço do carbono" os custos ambientais, sobretudo em conexão com a proteção climática. Nesse sentido propuseram-se diversas abordagens, e já se aplicam ou vão se aplicar sistemas de comércio, impostos e preços mínimos sobre o CO2.

Para atingir a meta climática global dos dois graus centígrados, a Comissão de Alto Nível para Precificação do Carbono, sob direção de Nikolas Stern e do portador do Prêmio Nobel Josef Stiglitz, chegou a um preço acessível de 35 a 70 euros por tonelada de CO2 até 2020, e de 44 a 88 euros até 2030.

Se a meta for permanecer num aquecimento global de apenas 1,5ºC em relação ao início da era industrial, o preço até 2030 deveria ser "de três a quatro vezes maior", postulam economistas do Instituto de Pesquisa de Potsdam (PIK) e do Mercator Research Institute on Global Commons and Climate Change (MCC).
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Faça-se a lei

O que acontece é que nós somos muito bons em legislação, mas péssimos em fiscalização. Há que fiscalizar, é isso. Não há muito o que argumentar. A lei existe, então, há que impor a lei
Hamilton Mourão, vice-presidente

Trevas cristãs

O “Deus acima de todos” que integrou o lema da campanha de JairBolsonaro e ainda o acompanha em muitas de suas declarações deveria provocar calafrios em todas as pessoas historicamente alfabetizadas, sejam elas religiosas ou não. Como a maioria dos brasileiros votou em Jair Bolsonaro conhecendo seu lema, parece lícito concluir que ou a maioria das pessoas é masoquista ou não é historicamente alfabetizada.


Nesta última hipótese, nossos professores de história, todos eles esquerdistas, fracassaram miseravelmente em mostrar para seus alunos os crimes cometidos em nome de Deus. Um bom jeito de sanar essa falha é a leitura de “The Darkening Age” (A idade das trevas), de Catherine Nixey (há uma edição lusitana).

A tese central do livro é simples. O cristianismo triunfou na Europa e cercanias destruindo o mundo clássico que o precedeu. O “destruir” deve ser interpretado literalmente, para incluir a pilhagem de templos, vandalização de estátuas, queima de livros e, é claro, tortura e assassinato de adversários. Nixey conta os detalhes dessa história.

Para dar uma ideia da escala da destruição, estima-se que apenas 10% da literatura clássica tenha sobrevivido até a Idade Moderna. Se considerarmos só os latinos, o quadro é ainda pior. Só 1% do que foi escrito por romanos não cristãos foi preservado. Santos das Igrejas Católica e Ortodoxa, como João Crisóstomo, gabavam-se de ter feito desaparecer toda uma cultura.

O que mais perturba na leitura de “The Darkening Age” é a total semelhança entre o que fizeram os cristãos dos anos 300, 400 e 500 o que fazem hoje membros do Taleban e do Estado Islâmico. A intolerância que militantes religiosos radicais mostram para com outros credos, os assassinatos praticados com requintes de crueldade e a insana “certeza” de estar obedecendo a comandos de um ente supremo infalível revelam quão perigoso é pôr Deus acima de tudo.

A (re)descoberta de um Brasil

Nada mais no país parece estar no mesmo escaninho de antes das 12h28m de 25 de janeiro, quando as sirenes da barragem da mineradora Vale em Brumadinho permaneceram mudas. Termos como “alteamento a montante” ou “a jusante” saltaram de planilhas de engenharia para o vocabulário caseiro de uma sociedade em choque. E brotou algo novo dessa primeira semana de luto em que substantivos como legislação, fiscalização, prevenção, responsabilização escancararam sua porosidade letal. Algo quase inebriante, que só poderá ser avaliado por gerações futuras: a possibilidade, ou pelo menos a oportunidade, de ocorrer um início de mudança na história da construção/ formação do Brasil.

“Colheita da morte” é o título da célebre série fotográfica de Timothy Sullivan e Alexander Gardner que retrata a batalha mais sangrenta da Guerra Civil americana —a de Gettysburg (1863), na Pensilvânia. Em apenas três dias de combate, as tropas confederadas do Sul e o exército do Norte sofreram algo entre 47 mil a 51 mil baixas. Foi talvez o momento mais decisivo do conflito, aquele que redefiniu para sempre a história dos Estados Unidos. Não se espera tanto do “vale da morte” de Brumadinho. Mas o desastre —que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir algo há muito esquecido no cotidiano cínico e raivoso de hoje: um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico. Quem apontou para essa fagulha de convivência foi o repórter Juan Arias, no diário espanhol “El País”, ao propor o Corpo de Bombeiros atuando em Minas como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2019. “Esses bombeiros fizeram de suas mãos[...] um instrumento de paz e ilusão de poder encontrar vida”, escreveu ele, argumentando que o país reaprendeu a torcer por uma mesma coisa.


No entender do jornalista, o lodo tóxico da Vale serve de metáfora política do Brasil envolto em corrupção, violência, desamparo social. E esses incansáveis socorristas conseguiram o milagre de, por um instante, unificar a sociedade. “Eles semearam paz num momento em que o ceticismo secava corações”, observou. Pouca coisa não é.

Rastejando feito catadores de caranguejos que entram no mangue e ali tateiam o dia inteiro em busca do crustáceo, as equipes Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime —fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico de emergência chafurdam na gosma tóxica em busca de vida, mesmo que seja apenas um pedaço de vida. Da torrente de testemunhos que compõem o dantesco cenário, um relato do repórter André Borges, do “Estado de S.Paulo”, se sobressai. É cru. Retrata o que não dá para ver sobrevoando a região de helicóptero.

Borges se juntara a uma equipe de 11 brigadistas numa margem com vegetação, com incursões no lamaçal de até seis metros de profundidade à procura, ainda, de sobreviventes. Em determinado momento, alguns chegaram ao que seria um corpo humano. “Com luvas”, escreveu o repórter, “um deles se abaixa e passa a recolher órgãos . Vísceras, estômago, fígado. Roupas. Em fila indiana vão passando o que encontram de mão em mão, até depositar as partes sobre uma manta metálica no chão”. Nas primeiras 24 horas, o cômputo oficial era de nove mortos e 300 desaparecidos. No meio da semana, a equação já era outra: 99 mortos para 259 desaparecidos.

Na sexta-feira, encerrando a primeira semana de luto com 115 mortos, pétalas de flores foram jogadas sobre o vale da morte onde 248 ainda permanecem misturados à terra em transe. Como diz o bordão, todos nós somos iguais perante a lei, mas não perante encarregados de aplicá-la.

Raiva e indignação são formas de comunicação densa — elas repassam informação e contagiam com mais velocidade do que qualquer outra forma de emoção. O americano Charles Duhigg, Pulitzer de reportagem em 1998, sustenta que a indignação é uma grande força social e que emoções à solta, sem reconciliação ou catarse no horizonte, podem tornar uma sociedade destrutiva. Ou, no caso, simplesmente anestesiada pelo uso retórico e previsível, por parte de pequenos poderes e poderosos nominais, de declarações que começam por “’É preciso...”

Não é por acaso que o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros encarregado de divulgar as boas e más notícias à nação, emergiu como um bálsamo pela postura e linguagem precisas, com ausência igual de afetação e empulhação. A classe política brasiliense deveria fazer um intensivão moral-cívico com ele. Brumadinho tanto pode retratar o passado, o presente ou o futuro do Brasil. A escolha é nossa de fazer história.