segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

A (re)descoberta de um Brasil

Nada mais no país parece estar no mesmo escaninho de antes das 12h28m de 25 de janeiro, quando as sirenes da barragem da mineradora Vale em Brumadinho permaneceram mudas. Termos como “alteamento a montante” ou “a jusante” saltaram de planilhas de engenharia para o vocabulário caseiro de uma sociedade em choque. E brotou algo novo dessa primeira semana de luto em que substantivos como legislação, fiscalização, prevenção, responsabilização escancararam sua porosidade letal. Algo quase inebriante, que só poderá ser avaliado por gerações futuras: a possibilidade, ou pelo menos a oportunidade, de ocorrer um início de mudança na história da construção/ formação do Brasil.

“Colheita da morte” é o título da célebre série fotográfica de Timothy Sullivan e Alexander Gardner que retrata a batalha mais sangrenta da Guerra Civil americana —a de Gettysburg (1863), na Pensilvânia. Em apenas três dias de combate, as tropas confederadas do Sul e o exército do Norte sofreram algo entre 47 mil a 51 mil baixas. Foi talvez o momento mais decisivo do conflito, aquele que redefiniu para sempre a história dos Estados Unidos. Não se espera tanto do “vale da morte” de Brumadinho. Mas o desastre —que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir algo há muito esquecido no cotidiano cínico e raivoso de hoje: um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico. Quem apontou para essa fagulha de convivência foi o repórter Juan Arias, no diário espanhol “El País”, ao propor o Corpo de Bombeiros atuando em Minas como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2019. “Esses bombeiros fizeram de suas mãos[...] um instrumento de paz e ilusão de poder encontrar vida”, escreveu ele, argumentando que o país reaprendeu a torcer por uma mesma coisa.


No entender do jornalista, o lodo tóxico da Vale serve de metáfora política do Brasil envolto em corrupção, violência, desamparo social. E esses incansáveis socorristas conseguiram o milagre de, por um instante, unificar a sociedade. “Eles semearam paz num momento em que o ceticismo secava corações”, observou. Pouca coisa não é.

Rastejando feito catadores de caranguejos que entram no mangue e ali tateiam o dia inteiro em busca do crustáceo, as equipes Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime —fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico de emergência chafurdam na gosma tóxica em busca de vida, mesmo que seja apenas um pedaço de vida. Da torrente de testemunhos que compõem o dantesco cenário, um relato do repórter André Borges, do “Estado de S.Paulo”, se sobressai. É cru. Retrata o que não dá para ver sobrevoando a região de helicóptero.

Borges se juntara a uma equipe de 11 brigadistas numa margem com vegetação, com incursões no lamaçal de até seis metros de profundidade à procura, ainda, de sobreviventes. Em determinado momento, alguns chegaram ao que seria um corpo humano. “Com luvas”, escreveu o repórter, “um deles se abaixa e passa a recolher órgãos . Vísceras, estômago, fígado. Roupas. Em fila indiana vão passando o que encontram de mão em mão, até depositar as partes sobre uma manta metálica no chão”. Nas primeiras 24 horas, o cômputo oficial era de nove mortos e 300 desaparecidos. No meio da semana, a equação já era outra: 99 mortos para 259 desaparecidos.

Na sexta-feira, encerrando a primeira semana de luto com 115 mortos, pétalas de flores foram jogadas sobre o vale da morte onde 248 ainda permanecem misturados à terra em transe. Como diz o bordão, todos nós somos iguais perante a lei, mas não perante encarregados de aplicá-la.

Raiva e indignação são formas de comunicação densa — elas repassam informação e contagiam com mais velocidade do que qualquer outra forma de emoção. O americano Charles Duhigg, Pulitzer de reportagem em 1998, sustenta que a indignação é uma grande força social e que emoções à solta, sem reconciliação ou catarse no horizonte, podem tornar uma sociedade destrutiva. Ou, no caso, simplesmente anestesiada pelo uso retórico e previsível, por parte de pequenos poderes e poderosos nominais, de declarações que começam por “’É preciso...”

Não é por acaso que o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros encarregado de divulgar as boas e más notícias à nação, emergiu como um bálsamo pela postura e linguagem precisas, com ausência igual de afetação e empulhação. A classe política brasiliense deveria fazer um intensivão moral-cívico com ele. Brumadinho tanto pode retratar o passado, o presente ou o futuro do Brasil. A escolha é nossa de fazer história.

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