“Colheita da morte” é o título da célebre série fotográfica de Timothy Sullivan e Alexander Gardner que retrata a batalha mais sangrenta da Guerra Civil americana —a de Gettysburg (1863), na Pensilvânia. Em apenas três dias de combate, as tropas confederadas do Sul e o exército do Norte sofreram algo entre 47 mil a 51 mil baixas. Foi talvez o momento mais decisivo do conflito, aquele que redefiniu para sempre a história dos Estados Unidos. Não se espera tanto do “vale da morte” de Brumadinho. Mas o desastre —que é mais que desastre e tragédia, é crime — fez emergir algo há muito esquecido no cotidiano cínico e raivoso de hoje: um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico. Quem apontou para essa fagulha de convivência foi o repórter Juan Arias, no diário espanhol “El País”, ao propor o Corpo de Bombeiros atuando em Minas como candidato ao Prêmio Nobel da Paz de 2019. “Esses bombeiros fizeram de suas mãos[...] um instrumento de paz e ilusão de poder encontrar vida”, escreveu ele, argumentando que o país reaprendeu a torcer por uma mesma coisa.
No entender do jornalista, o lodo tóxico da Vale serve de metáfora política do Brasil envolto em corrupção, violência, desamparo social. E esses incansáveis socorristas conseguiram o milagre de, por um instante, unificar a sociedade. “Eles semearam paz num momento em que o ceticismo secava corações”, observou. Pouca coisa não é.
Rastejando feito catadores de caranguejos que entram no mangue e ali tateiam o dia inteiro em busca do crustáceo, as equipes Desastre — que é mais que desastre e tragédia, é crime —fez emergir um intenso sentimento nacional acima do fosso político-ideológico de emergência chafurdam na gosma tóxica em busca de vida, mesmo que seja apenas um pedaço de vida. Da torrente de testemunhos que compõem o dantesco cenário, um relato do repórter André Borges, do “Estado de S.Paulo”, se sobressai. É cru. Retrata o que não dá para ver sobrevoando a região de helicóptero.
Borges se juntara a uma equipe de 11 brigadistas numa margem com vegetação, com incursões no lamaçal de até seis metros de profundidade à procura, ainda, de sobreviventes. Em determinado momento, alguns chegaram ao que seria um corpo humano. “Com luvas”, escreveu o repórter, “um deles se abaixa e passa a recolher órgãos . Vísceras, estômago, fígado. Roupas. Em fila indiana vão passando o que encontram de mão em mão, até depositar as partes sobre uma manta metálica no chão”. Nas primeiras 24 horas, o cômputo oficial era de nove mortos e 300 desaparecidos. No meio da semana, a equação já era outra: 99 mortos para 259 desaparecidos.
Na sexta-feira, encerrando a primeira semana de luto com 115 mortos, pétalas de flores foram jogadas sobre o vale da morte onde 248 ainda permanecem misturados à terra em transe. Como diz o bordão, todos nós somos iguais perante a lei, mas não perante encarregados de aplicá-la.
Raiva e indignação são formas de comunicação densa — elas repassam informação e contagiam com mais velocidade do que qualquer outra forma de emoção. O americano Charles Duhigg, Pulitzer de reportagem em 1998, sustenta que a indignação é uma grande força social e que emoções à solta, sem reconciliação ou catarse no horizonte, podem tornar uma sociedade destrutiva. Ou, no caso, simplesmente anestesiada pelo uso retórico e previsível, por parte de pequenos poderes e poderosos nominais, de declarações que começam por “’É preciso...”
Não é por acaso que o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros encarregado de divulgar as boas e más notícias à nação, emergiu como um bálsamo pela postura e linguagem precisas, com ausência igual de afetação e empulhação. A classe política brasiliense deveria fazer um intensivão moral-cívico com ele. Brumadinho tanto pode retratar o passado, o presente ou o futuro do Brasil. A escolha é nossa de fazer história.
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