sexta-feira, 26 de abril de 2024

Mantenha-se ativo na ajuda aos outros

Viver ou morrer é a mesma coisa. Porque, naturalmente, a vida não está neste pequeno corpo. O importante é a maneira como vivemos e a mensagem que deixamos. Isso é o que nos sobrevive. Isso é a imortalidade. 

O fundamental é manter ativo o cérebro, tentar ajudar os outros e conservar a curiosidade pelo mundo. 
Rita Levi-Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina em 1984

Embalo da sexta

Éramos felizes e não sabíamos

Na entrega do anteprojeto do novo Código Civil ao Congresso Nacional, o ministro Alexandre de Moraes referiu-se a variadas transformações ocorridas na sociedade brasileira, novos tipos de contratualidade social, que o tornam necessário. Ressaltou “a questão de costumes, novas relações familiares, novas modalidades de se tratar das questões do direito de família e sucessões, a tecnologia, a inteligência artificial, novas formas de responsabilidade civil”.

Ele poderia ter arrolado muitas outras modalidades de relacionamento que expressam a realidade atualizada do país e sofreram câmbios significativos. Aos olhos dos mais antigos, bloqueados no meio do caminho das mudanças, a sociedade está tomada por crescentes anomalias, até mesmo inaceitáveis para muitos.

Uma ideologia repressiva e punitiva, de cada vez mais numerosas pessoas, já domina a formação de partidos e de bancadas partidárias nas casas do Congresso; domina novas “religiões” e até mesmo disfarça religiões em partidos políticos, o que viola a Constituição e as leis. Um conjunto extenso de metamorfoses sociais tornou a sociedade brasileira disfuncional e patológica.

As redes sociais tornaram-se não só poderosos instrumentos de difusão cultural e de democratização do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, diluíram e mistificaram a consciência crítica e reveladora dessas graves anomalias e transformações. O anormal passou a fazer parte da normalidade. A anomalia passou a ser concebida como um direito em nome do direito à liberdade de opção, mesmo que antissocial. O que motivava estranheza e repulsa tornou-se ódio, base ideológica de um programa de mudança para não mudar.

Sociedades atrasadas mudam relativamente depressa por impulso de fatores invisíveis. As causas da mudança eficaz que nos move mais rapidamente nem mesmo estão aqui. E as que estão aqui só muito lentamente se transformam em motivação e fator das mudanças sociais e políticas que carecemos. Estamos sempre em atraso com nossos carecimentos.

O desenvolvimento das tecnologias das redes sociais e a rapidez de sua disseminação são acompanhados pelo dedo indicador, mas não o são pelo cérebro, pela cultura e pela consciência. Esse descompasso abriu caminho para o poder de manipulação das consciências, à qual chegam os aproveitadores dessa fragilidade muito mais depressa do que o bom senso.

A criminalidade econômica, a política e a religiosa acrescentam-se rapidamente ao elenco de criminalidades que já ameaçavam as sociedades antes das redes sociais. O crime se moderniza antes da modernização da Justiça e o elenco de criminosos se dilata.

Há também as categorias sociais que não só não mudaram como radicalizaram suas antiquadas concepções de vida e dos valores que lhes são referências. Temos saudade do que nunca fomos, queremos voltar para onde nunca estivemos.

É o caso dos militares, cuja organização é estamental, de um passado que nunca teve um lá adiante atualizado à luz das mudanças sofridas pela sociedade, como se não fizessem parte dela. São movidos por carências suas e não da sociedade.

Já na ditadura militar, mas também recentemente, no bolsonarismo, deram evidentes indicações de grande dificuldade para aceitar e reconhecer as significativas mudanças sociais e políticas que iam na direção até mesmo de uma nova concepção de democracia. Socializados para fazer a guerra contra uma sociedade de inimigos imaginários, têm agido no sentido de reduzir a sociedade brasileira aos limites de uma cultura autoritária de quartel.

Também querem a volta a um passado que não houve, os grupos que encontraram nas religiões antidemocráticas e não só fundamentalistas mais do que um refúgio contra as tentações de satanás, uma fortaleza da mentalidade de guerra que os motiva. São os de religiões antirreligiosas de enquadramento dos pobres de espírito, que nas religiões do poder se sentem seguros contra as crescentes incertezas do mundo. Insurgem-se contra a necessidade de modernização das mentalidades.

Antes das redes sociais éramos felizes não porque delas não carecíamos. Nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana. Havia uma consciência clara do que era ser gente e do que não o era.

Não sabíamos que éramos felizes porque nos bastava a esperança do que éramos. Hoje achamos que somos felizes com o mundo fantasioso das redes sociais, mas já não sabemos o que somos. Elas desumanizaram o nosso mundo e o liquefizeram. Usurparam-nos a consciência da esperança. Trocaram nossa consciência possível por uma consciência meramente provável, o destino de todos como um mero e cinzento talvez.

O 25 de Abril que falta

E se os descobrimentos ainda estivessem por cumprir e se nos faltasse descobrir as pessoas que cá estão? E se, em vez de terras longínquas, nos faltasse agora descobrir pessoas?

Temos em Portugal uma riqueza muito mais maravilhosa do que qualquer conquista colonial: a riqueza de quem escolheu vir viver para o nosso país.

Não são só as riquezas culturais que os imigrantes trouxeram, mas riquezas individuais: cada imigrante é um português à beira de ser, um indivíduo como nenhum outro, alguém que pode ser a alegria de alguém.


E se o verdadeiro império fosse o império dos imigrantes? E se o verdadeiro império fosse o império da concórdia, e do respeito, e da festa? E se o verdadeiro império fosse o império da dignidade? E se o quinto império fosse o império dos indivíduos, dos pequenos, dos diferentes, dos bem-dispostos, dos espíritos abertos? E se o quinto império fosse uma sociedade multirracial e multicultural em que os valores comuns fossem a festa, a música, a comida, o vinho, o riso e a curiosidade?

Detesto fazer mais propaganda à Festa do Avante!, mas parece-me que a Festa do Avante! mostra um caminho para essa felicidade.

Temos aqui em Portugal – já temos, não é preciso ir a lado nenhum – uma riqueza enorme de pessoas com as quais podemos dançar, aprender, conspirar, ir para a frente, voltar para trás, fazermos tudo o que nos apetecer.

A sociedade portuguesa pode ser a primeira sociedade verdadeiramente moderna do nosso tempo. A maneira de resistir aos nossos defeitos – a nossa tacanhez, desconfiança, mediocridade, inveja – é cedendo preguiçosamente às nossas qualidades – à nossa abertura, à nossa tolerância, à nossa sinceridade, à nossa doçura, ao nosso sentimentalismo.

Somos um país de braços abertos. Só nos resta escolher quem abraçamos: não só aqueles que falam português, mas aqueles que vêm de países com os quais engraçamos. Somos muito abertos, muito internacionalistas, muito amistosos. Somos portugueses, porra!

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Valores da morte (dos outros)


Nos poupe das suas lágrimas de crocodilo. São 200 dias de Israel limpando Gaza da face da Terra. 505 bombas por dia. Valas comuns, médicos e jornalistas assassinados. Os valores europeus são os mesmos de sempre: assassinato e colonialismo

Clare Daly, deputada irlandesa

Feras de estimação

Uma vez entrevistei Orlando Orfei. Foi em outra vida, num mundo em que ainda existiam circos com animais, e ele era considerado um dos maiores treinadores do mundo. Orfei era italiano, dono de um circo famoso que rodava o Brasil e de um parque de diversões na Lagoa, o Tivoli, que deixou saudades.

Me lembro que conversamos muito, e longamente, sobre os animais. Eu não gostava de ver animais amestrados, mas não estava lá como militante. Orfei era um homem do seu meio e do seu tempo: quando nasceu, em 1920, a família trabalhava com circo há mais de cem anos. Ele era um domador sui generis, que conversava com os bichos e não acreditava no medo como ferramenta didática. Eu o vi interagir com os leões e ali havia amor.

Antes de ir embora quis fazer carinho nos bichos, mas Orfei deu o contra: com certos animais, explicou, não se brinca.

Algum tempo depois ele foi atacado durante um espetáculo e quase morreu. Sua primeira preocupação no hospital foi com os leões — eles não tinham culpa.

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Durante anos, uma das atrações mais populares de Las Vegas foi o show de Siegfried & Roy, mágicos e domadores que se apresentavam com tigres e leões brancos. Um dia Roy foi atacado por um tigre chamado Mantacore e, como Orlando Orfei, ficou seriamente ferido. A caminho do hospital, também pediu que nada fosse feito ao tigre: ele não tinha culpa.

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Há inúmeras histórias assim — com tigres, leões, ursos.

E pitbulls. Muitos pitbulls.

Os animais nunca têm culpa.

A culpa é única e exclusivamente dos humanos, que não aprendem que com certos animais não se brinca.

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Penso todos os dias na escritora Roseana Murray, que foi atacada por três pitbulls quando saía de casa para dar uma volta. Perdeu o braço direito, teve o corpo todo mordido e ainda assim deu sorte, porque sobreviveu. (Roseana é um exemplo de resiliência. A internet fez uma roda à sua volta, “lute como uma poeta”. Ela luta. E definiu os cuidados da equipe médica como o trabalho de aranhas douradas sobre o seu corpo.)

Os pitbulls não têm culpa do que fizeram. Eles descendem de animais que foram desenvolvidos para lutar, para investir contra touros e outros cães, com o propósito singular de distrair ingleses entediados no século XIX. Isso está no seu DNA e, o que é pior, está no DNA de muitos tutores que ainda entendem os seus animais como símbolos de status e de poder.

Tenho amigos que têm pitbulls. Eles dizem que os cães são dóceis e gentis, e que os que atacam não foram bem adestrados. Dizem que nunca tiveram problemas com os seus animais. Orfei e Roy também não tiveram problemas com os seus — até o dia em que tiveram.

Pitbulls, como tigres e leões, podem matar, e às vezes matam. Estraçalham pessoas. Não têm culpa de ser assim, apenas são. Cabe à sociedade mantê-los à distância.

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Na Califórnia, Brooklinn Khoury (@brookhoury), modelo e skatista, já passou por sete cirurgias para refazer o lábio superior; na segunda passada, Jacqueline Durand (@jacqueline_claire99) passou pela sua 23ª cirurgia. Suas contas no Instagram são poderosos argumentos contra a criação de feras.

Relaxe

'Brasil é um dos países mais desiguais'

Um dos países mais desiguais, um lugar especialmente difícil para mulheres, negros e LGBTQ+, que pelo 14° ano seguido é o que mais mata pessoas trans no mundo. É assim que o mais recente relatório da Anistia Internacional, divulgado nesta quarta-feira, retrata o Brasil.

O documento, chamado "O estado dos direitos humanos no mundo", é divulgado anualmente e mostra um panorama sobre a garantia de direitos humanos em 155 países, passando por questões sociais, econômicas, culturais e políticas. De acordo com a análise da organização, a situação no Brasil é preocupante.

O texto cita que, até dezembro de 2023, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos havia registrado mais de 3,4 milhões de denúncias de violações de direitos humanos, como racismo, violência física e psicológica e assédio sexual. Esse número representa um aumento de 41% em comparação com 2022.


Apesar de um aumento do salário mínimo pouco acima da inflação e da expansão do programa Bolsa Família no ano passado, o 1% mais rico da população brasileira ainda detinha quase metade da riqueza do país, de acordo com dados de 2023 do Banco Mundial destacados pelo relatório.

A insegurança alimentar é alarmante: 21,1 milhões de pessoas passaram fome no Brasil em 2023, o equivalente a 10% da população. As famílias negras são prejudicadas de forma desproporcional: 22% dos domicílios chefiados por mulheres negras encontravam-se em estado de fome.

O déficit habitacional no Brasil também é preocupante. Há pelo menos 215 mil pessoas sem teto, de acordo com dados da Universidade Federal de Minas Gerais. No ano passado, 12% da população brasileira vivia em favelas.

O relatório chama atenção para o uso excessivo e desnecessário da força no Brasil, uma vez que o governo ignorou medidas para reduzir a violência policial, como o uso de câmaras corporais. Isso resultou em homicídios ilegais e outras graves violações de direitos, com prevalência da impunidade.

A Anistia Internacional, em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos e outras organizações, documentou 11 casos de violações graves dos direitos humanos perpetradas por agentes do Estado brasileiros, incluindo execuções extrajudiciais, entrada ilegal em residências, tortura e outros maus-tratos.

Dois policiais são conduzidos em cima de uma escavadeira em operação na favela da Maré, no Rio de JaneiroDois policiais são conduzidos em cima de uma escavadeira em operação na favela da Maré, no Rio de Janeiro

O relatório lembra do caso da morte do ativista Pedro Henrique Cruz, em 2018, em Tucano, na Bahia. Ele era conhecido por denunciar violências policiais e foi morto dentro de casa. Os três policiais indiciados pelo crime ainda não foram levados a julgamento, e sua mãe, Ana Maria, continua a sofrer ameaças e intimidações.

A Anistia mostra que nas escolas brasileiras a violência aumentou. Até o final de outubro, 13 ataques violentos com armas aconteceram no ambiente escolar, que deixaram nove pessoas mortas. Isso representa 30% de todos os incidentes do tipo ocorridos nos últimos 20 anos. Todos os agressores eram do sexo masculino, enquanto a maioria das vítimas era do sexo feminino.

Em todo o continente americano, a violência de gênero permaneceu arraigada, segundo o diagnóstico da Anistia Internacional. As autoridades não conseguiram enfrentar a impunidade para esses crimes nem proteger mulheres, meninas e outros grupos de pessoas em risco.

Houve avanços limitados na proteção aos direitos das pessoas LGBTQ+ em alguns países, mas os ataques a esses direitos se intensificaram em muitos outros. Essa comunidade foi alvo de hostilidades, discriminações, ameaças, ataques violentos e assassinatos, além de enfrentarem obstáculos ao reconhecimento legal em países como Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Paraguai, Peru e Porto Rico, destaca o relatório.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Em 2023, houve 155 mortes, sendo 145 casos de assassinatos e dez suicídios após violências ou devido à invisibilidade trans.

Segundo a organização, as autoridades brasileiras também não tomaram medidas suficientes e eficazes para garantir o direito das pessoas a um meio ambiente saudável e mitigar os efeitos da crise climática.

Eventos climáticos extremos causaram mortes, destruição de propriedades e deslocamentos no Brasil. Os povos indígenas foram privados do pleno exercício de seus direitos, e a demarcação de terras aconteceu de forma lenta. A Anistia destaca a crise humanitária e sanitária do povo Yanomami, que ainda sofre com a presença do garimpo ilegal da região.

No geral, a Anistia relata um ressurgimento de sistemas autoritários e observa que cada vez menos pessoas vivem agora em uma sociedade democrática. No prefácio do relatório, a secretária-geral da Anistia, Agnes Callamard, observa que é como se o mundo estivesse "em espiral no tempo, retrocedendo em relação à promessa de 1948 de direitos humanos universais".

Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório "O estado dos direitos humanos no mundo" Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório "O estado dos direitos humanos no mundo"

Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório da organizaçãoFoto: Justin Tallis/AFP/Getty Images

Em 2023, diz ela, em muitos governos e sociedades, "as políticas autoritárias corroeram as liberdades de expressão e associação, atacaram a igualdade de gênero e corroeram os direitos sexuais e reprodutivos".

Ela observa que a tecnologia está facilitando a erosão generalizada de direitos, perpetuando políticas racistas, permitindo a disseminação de desinformação e restringindo a liberdade de expressão.

"No entanto, se deixarmos os tecnocriminosos com suas tecnologias ardilosas cavalgarem livremente no Velho Oeste digital, é provável que essas violações dos direitos humanos só aumentem em 2024, um importante ano eleitoral. Essa é a previsão de um futuro que já chegou", afirma Callamard.

No que diz respeito aos direitos das mulheres, a organização lamenta novas restrições no Afeganistão e no Irã, e o fato de o Irã também implementar software de reconhecimento facial contra mulheres que não usam hijab.

A Anistia relata retrocessos nos Estados Unidos e na Polônia em torno da regulamentação legal do aborto. Quinze estados norte-americanos proibiram completamente o aborto ou só o permitirão em casos muito excepcionais.


O relatório também chama atenção para o fato de que existem mais de 60 países em todo o mundo onde as pessoas LGBTQ+ são criminalizadas e os seus direitos restringidos.

Segurança pública falha é obstáculo a sociedade civilizada

Nós acabávamos de passar cinco semanas viajando pela Europa, sobretudo pelo norte da Itália e pela Alemanha. Nesse período, nem uma única vez ouvimos falar que alguém tivesse levado tiros, sido assaltado ou vítima de algum tipo de violência.

Mal chegados à Bahia, o quadro mudou radicalmente: primeiro constatamos que a nossa comunidade é a quarta em que há mais assassinatos no Brasil. Num ranking mundial, ela estaria definitivamente entre as dez cidades mais violentas do mundo. Mas isso não é tudo: das dez cidades brasileiras com taxas de homicídio mais altas, seis ficam na Bahia. Duas se situam na minha vizinhança imediata, duas outras só um pouco mais distante.


Há muito estamos acostumados com um aumento da violência no país durante e em torno das eleições. É comum as gangues aproveitarem o vácuo da transmissão de poder para acertarem as contas entre si. Os clãs, milícias, narcos – ou seja, todo o crime organizado – precisam se arranjar com os novos mandatários na política e nas forças de segurança, e vice-versa. Isso pode levar tempo.

Mas desta vez, nunca vimos uma onda de violência tão forte assim. No domingo, a polícia alvejou "sem querer" um menino de dez anos nas proximidades de uma "boca de fumo", a menos de dois quilômetros da nossa casa. Desde então, residentes revoltados ocupam diariamente a rua multipista por meio dia, resultando em numerosos assaltos aos automóveis e estabelecimentos comerciais da área.

Ao mesmo tempo, voltaram a chegar más notícias do Pelourinho, o bairro antigo de Salvador, uma das principais atrações turísticas do Brasil: mais uma vez uma família de turistas estrangeiros sofreu um assalto violento. Nos últimos tempos isso se repete quase toda semana.

O que são telefones celulares e mochilas roubadas contra os 598 seres humanos assassinados no primeiro semestre na Grande Salvador? Comparando: em Berlim, com uma população comparável, houve em 2022 59 homicídios – o recorde de uma década.

Mas essa violência tem a mesma raiz: há muitos anos os governos não têm nenhum plano para combater a criminalidade absurdamente alta, nenhum político mostra interesse em se destacar com uma iniciativa assim.. Nem mesmo um presidente de extrema direita como Jair Bolsonaro perseguiu um projeto de segurança – a menos que se queira interpretar como "projeto" o seu armamento da sociedade civil.

Mas tampouco o recém-empossado governo Lula conferiu prioridade máxima à segurança, nem durante a campanha eleitoral, nem agora. Parece que também ele se conformou com a falta de segurança. Na Bahia, o governo federal acaba de doar novas viaturas policiais, e ministros discursaram sobre a má integração dos jovens como raiz da violência.

E no entanto é óbvio, e qualquer brasileira ou brasileiro assinaria embaixo: a segurança pública deficiente é o maior obstáculo para o país no sentido de uma sociedade civilizada e bem-sucedida.

Alexander Busch

Não quer imigrantes? A avó nunca irá se aposentar

Como já referi anteriormente , os imigrantes estão a impulsionar o boom econômico dos EUA. Isto é: os Estados Unidos escaparam à recessão, o crescimento das contratações excedeu as expectativas e a inflação arrefeceu mais rapidamente do que o previsto – tudo em grande parte porque a imigração aumentou o tamanho da força de trabalho dos EUA . Não acredite apenas na minha palavra; pergunte ao presidente do Federal Reserve ou aos economistas de Wall Street.

Depois de uma série de níveis de imigração deprimidos – impulsionados principalmente pela limitação do sistema de imigração legal por parte de Donald Trump -, o número de imigrantes que vêm para cá começou a se recuperar em meados de 2021 . É mais provável que os imigrantes estejam em idade ativa do que os americanos nativos, pelo que as suas chegadas ajudaram a resolver uma série de problemas enfrentados pela economia dos EUA.

Por exemplo, alguns dos nossos problemas na cadeia de abastecimento relacionados com a pandemia estavam ligados à escassez de trabalhadores em áreas críticas como a construção e a transformação de alimentos. Um afluxo de novos trabalhadores ajudou a preencher essas vagas e a descomplicar cadeias de abastecimento paralisadas.

Noutros casos, os imigrantes têm-se mostrado dispostos a aceitar empregos que os americanos nativos não estão dispostos a encarar, tais como o trabalho árduo de colher batatas , construir casas e cuidar dos idosos . Eles também estão preenchendo cargos de alta tecnologia que os americanos não podem ocupar porque não há número suficiente de nós com as habilidades necessárias. E estão a criar oportunidades de emprego inteiramente novas através do lançamento de novas empresas – algo que os imigrantes fazem a taxas muito mais elevadas do que os nativos .

E depois há os empregos que nós, americanos nativos, poderíamos teoricamente estar dispostos e capazes de preencher, mas simplesmente não há um número suficiente de nós por perto para preenchê-los . A aritmética é clara: os boomers estão a reformar-se e as taxas de natalidade nos EUA caíram vertiginosamente. Na ausência da imigração, a população em idade ativa dos EUA ficaria estagnada ou diminuiria em breve .

Como resultado, todo o novo crescimento do emprego desde a pandemia, no total, deveu-se a trabalhadores nascidos no estrangeiro. Ou seja, se você eliminasse os imigrantes, não haveria mais pessoas empregadas hoje do que havia antes da covid.

Catherine Rampell

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Os bilionários

Hoje, os bilionários são 2.544 pessoas no mundo, segundo “Billionaire Ambitions Report 2023” do Banco UBS, com a riqueza (assets financeiros e não financeiros) em US$ 12 trilhões, nominalmente equivalente a 12% do total do PIB mundial de US$ 101,3 trilhões, seis vezes maior do que a riqueza dos 50% da população mundial mais baixos na base da pirâmide. Hoje, segundo o “World Inequality Report 2022”, os 1% mais ricos do mundo detém 19% do PIB mundial enquanto os 50% mais baixos detém 8,5% do PIB mundial, com a renda total dos 1% mais ricos 2,3 vezes maior do que a renda total dos 50% mais baixos na pirâmide.

Na lista dos bilionários, os Estados Unidos lideram com 751, China 520, Índia 153, Alemanha 109, Inglaterra 83. O primeiro trilionário em riqueza surge neste ano de 2024, Bernard Arnault, francês, do grupo LVMH / L’Oréal, com US$ 1 trilhão de riqueza, nominalmente equivalente à metade do PIB do Brasil em 2023, estimado em US$ 2,1 trilhões pelo FMI.


O Brasil, com a 9ª economia do mundo, está na 10ª colocação mundial de bilionários, com 45 no total; acima do Canadá com 42; Japão 38; França 34. Nos indicadores socioeconômicos, no índice de GINI, que mede a distribuição de riqueza para 162 países, o Brasil encontra-se na 154ª posição; no IDH, que mede a qualidade de vida em função bens e serviços para 191 países, o Brasil encontra-se na 87ª posição; no PISA, que mede o desempenho de alunos do ensino médio em 81 países, o Brasil encontra-se na 52ª posição em leitura, 61ª em ciências, e 65ª em matemática.

Paradoxalmente, a Suíça, 20ª economia do mundo, ocupa o 6º lugar no ranking mundial com 75 bilionários; Hong Kong, 30ª economia, 7º lugar com 68 bilionários; Taiwan, 22ª economia, 9º lugar com 46 bilionários; todos acima do Brasil, 9ª economia, no 10º lugar com 45 bilionários. Segue-se Singapura, 32ª economia, 12º lugar com 41 bilionários. Os núcleos de decisão se deslocam.

No Oriente Médio, Israel conta com 26 bilionários; Emirados Árabes 17; Arábia Saudita 6; Egito 4; Líbano 2.

Wright Mills, em A Elite do Poder, diz que manda o econômico, garante o militar, executa o político, e modera o intelectual, aqui compreendido como imprensa e universidades. E Max Heirich, em A Espiral do Conflito, analisa o processo decisório que chega ao afunilamento dos conflitos, onde, do social ao político, as decisões acabam por ficar nas mãos de poucos, com imprevisibilidade nas decisões tomadas. Nunca estivemos, ao longo de nossos 200 anos de capitalismo industrial, na mão de tão poucos. Vide Davos.

É hora de se pensar em uma Sociologia dos Bilionários, para o melhor entendimento da economia atual, das consequências da economia sobre a ecologia, e das guerras que se acentuam. As guerras e os danos ao meio ambiente se tornam mais incidentes, por serem movidas pelas decisões de poucos; e mais imprevisíveis em seus possíveis resultados, por serem movidas pelas decisões de poucos.

Que Deus nos proteja.

Está envenenada a terra

Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.
Já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Já não há parques, só "parkings".
Já não há sociedades, só sociedades anônimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas, só públicos.
Não há realidades, só publicidades.
Não há visões, só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: 'que linda, parece de plástico'.

Eduardo Galeano

O bom operário

Estava o beato Antônio em oração e jejum quando o sono venceu-o e ele sonhou que do céu descia uma voz que lhe dizia que seus méritos ainda não eram comparáveis aos do curtidor José, de Alexandria. Saiu andando Antônio e surpreendeu o simplório homem com sua presença respeitável. “Não me lembro de ter feito nada de bom — declarou o curtidor —. Sou um servo inútil. Diariamente, ao ver o sol raiar sobre esta grande cidade, penso que todos os seus moradores, do maior ao menos importante, entrarão no céu por sua bondade, menos eu que, por causa dos meus pecados, mereço o inferno. E o mesmo mal-estar me contrista quando vou deitar-me, e cada vez com mais veemência”. “Na verdade, meu filho — observou Antônio — tu, dentro de tua casa, como bom operário, ganhaste descansadamente o reino de Deus, enquanto que eu, irrefletido que sou, consumo minha solidão e ainda não cheguei a tua altura”. Isto posto, voltou Antônio ao deserto e, no primeiro sonho que teve, voltou a baixar a ele a voz de Deus: “Não te angusties; estás perto de mim. Mas não esqueças de que ninguém pode estar seguro nem do próprio destino nem do destino dos outros”.

Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"

Em 50 anos de democracia, Portugal passou de país atrasado a referência

Intenso como os cravos sobre as roupas cinzentas de 1974, o vermelho de um sinal fechado salvou Rita da prisão. A então estudante de 21 anos combatia na clandestinidade a ditadura em Portugal e achava que era seguida nas ruas de Lisboa pela temida e violenta Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), adepta da tortura que aniquilou ou quase matou alguns de seus camaradas. Ela conta que teve a sorte de parar em um semáforo, abrir a porta e fugir para o carro ao lado, dirigido por um amigo de infância.

Era, assim, carregado, o clima em Portugal antes do 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos, que completa 50 anos na quinta-feira. O fim da ditadura de 48 anos (1926-1974), a mais longa da Europa, trouxe liberdade e comprovou como a democracia melhorou os índices de um país considerado atrasado e pobre, como revelou o banco de dados Pordata, num estudo inédito.

“Em 1970, um em cada quatro portugueses (25,6%) era analfabeto. Em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%. Cerca de 68% das casas não tinham chuveiro, 53% não tinham água canalizada e 42% não tinham instalações sanitárias, números que se inverteram quase totalmente”.

Segundo um trecho do livro “A Revolução Gentil”, que será lançado em maio pelo escritor Ricardo Viel, mais de um terço da população vivia sem luz elétrica. Havia cerca de 30 mil presos políticos e entre 7 a 10 mil livros censurados. Só em Lisboa, 90 mil pessoas (mais de 10% da população à época) vivam em cerca de 18,5 mil barracas Eram os “bairros de latas”, ou simplesmente favelas.


Ali viviam milhares de mulheres, relegadas pela ditadura ao papel de submissas ao homem por imposição de um Código Civil do século XIX. Elas e seus filhos foram as primeiras a ocupar casas e só depois permitiam a entrada dos homens. Também ganharam direito ao voto.

— O homem era o chefe e a mulher lhe devia obediência, como mandava o Código. Isso desapareceu com o 25 de Abril. Mulheres que viviam nas favelas foram com seus filhos para casas ocupadas e depois chamaram os maridos. Fábricas com mão de obra feminina aderiram às greves. Houve um pacto universal para mudar a família e a sociedade. Alterar a mentalidade demorou mais. Mas o fato era que, de repente, tínhamos as leis mais avançadas da Europa — lembrou Rita, pseudônimo de Irene Flunser Pimentel, que uma vez livre da opressão, virou escritora e historiadora especialista na ditadura.

Não houve banho de sangue, mas quatro pessoas morreram na revolução. Segundo Pimentel, todas as vítimas foram assassinadas pela PIDE. A tomada do poder foi organizada pelos militares, que planejavam entregar o comando para a sociedade civil, como de fato aconteceu. O 25 de Abril suave pôs cravos nos canos das armas, imagem atraiu o “turismo da Revolução”, levando a Portugal o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o francês Jean-Paul Sartre e o alemão Heinrich Böll, três vencedores do Prêmio Nobel de literatura. E também Sebastião Salgado, Simone de Beauvoir e muitos outros renomados escritores, jornalistas, fotógrafos e cineastas.

— Foi a época do ‘turismo vermelho’. Havia voos fretados da Europa em rota contínua. Lembro que passei a atuar como uma guia informal, não formada, porque estudei no Liceu Francês e sabia falar outros idiomas. O que eu fazia como Rita, na clandestinidade, passei a fazer em liberdade, ao ar livre — conta a historiadora.

Hoje, Portugal respira os 50 anos do 25 de Abril, o que traz à tona o debate em torno da criação de uma rota turística oficial sobre a Revolução dos Cravos para preservar e promover locais históricos.

— A revolução é pouco explorada em termos turísticos. Se em 1974 muita gente veio conhecer o país que tinha derrubado uma ditadura com uma revolução pacífica, hoje pouco se fala disso para os milhões de turistas que todo ano visitam Lisboa — lamenta Viel: — As iniciativas do poder público são tímidas e mal-feitas. Desafio qualquer pessoa a ir à Praça do Comércio e achar alguma referência, uma placa ou busto, sobre o que aconteceu lá no dia 25 de Abril de 1974. Visitar o quartel da Pontinha, onde foi o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, é fazer uma viagem no tempo (e nem todas são boas). Tudo o que está lá parece que foi feito nos anos 80 e nunca mais foi tocado.

Para a historiadora, uma rota dos Cravos seria também uma maneira de rebater o saudosismo fascista que tem ocupado ruas e redes sociais. Principalmente com grupos organizados para idolatrar a figura do ditador António de Oliveira Salazar, que ingressou no governo em 1928, criou o Estado Novo em 1933 e comandou o país com mão de ferro até morrer, em 1970.

— Mesmo com dados que provam como a democracia só fez bem, há quem defenda que na ditadura de Salazar é que era bom. É reflexo de um processo que começou com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e liberou as pessoas da vergonha que tinham de dizer o que pensavam. Em Portugal culminou no partido Chega — diz Pimentel, que também faz um alerta para o simbolismo de ter 50 deputados da ultradireita do Chega eleitos para o Parlamento justamente nos 50 anos da retomada da democracia: — O Parlamento é a principal instituição da democracia e a vontade deles é destruir a democracia.

Uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa para o semanário “Expresso” e para a rede SIC revelou que 35% dos simpatizantes do Chega dizem que Portugal está pior do que na ditadura. Embora a maioria das pessoas ouvidas acredite que a vida esteja melhor, também considera que a criminalidade e a corrupção pioraram. Outro alerta da pesquisa: 34% preferem ter um líder forte e alçado ao poder sem eleições democráticas.

Em um jantar oferecido na segunda-feira em Lisboa a jornalistas estrangeiros, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a transição pacífica do 25 de Abril é um orgulho. E ressaltou que a população percebe os benefícios que a democracia trouxe.

— Neste momento, apesar de ainda existirem dois milhões na pobreza, das desigualdades e da falta de coesão territorial, os portugueses sentem que estão vivendo um momento sem sobressaltos econômicos. As ajudas do governo acomodaram a situação social e a sensação é de razoável estabilidade política.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O que é, o que é...

Se ele sempre fala de virtude, então é um depravado; fala constantemente de religião, então o é extremamente
Immanuel Kant

A proximidade de uma guerra absurda

Neste momento, considero muito interessante a reflexão do escritor Amin Maalouf no livro recém-lançado no Brasil “O labirinto dos desgarrados, o Ocidente e seus adversários” (Editora Vestígio, 332 páginas). Ele não é cientista político nem estrategista. É um escritor que não só tem coragem de afirmar o absurdo da guerra, como de devolver as qualificações de romântico ou ingênuo atribuídas aos que a consideram inevitável.


Creio que Maalouf, nascido no Líbano e vivendo na França, tem muitas razões para refletir bem sobre o Ocidente. Ele escreveu um livro sobre as Cruzadas mostrando como, nas Cruzadas, os europeus comiam crianças muçulmanas no espeto. Ele conhece também todos os horrores da colonização europeia na África, Ásia e em todos os outros lugares por onde ela se instalou. Mas seu conhecimento da História mostra também que o ódio sistemático ao Ocidente acaba desviando para a barbárie e para a autopunição.

Na comparação entre as duas guerras frias, a que terminou com o fim do Império Soviético e a atual, Maalouf compreende bem que países como Rússia e China, que, de certa forma, encarnavam a revolução no passado, representam hoje o campo do conservadorismo político, social e intelectual. Essa constatação parece não ter chegado à esquerda brasileira, mas isso é apenas um detalhe.

Uma das importantes conclusões do livro é que nem os ocidentais nem seus aliados são capazes de conduzir a humanidade para fora do labirinto em que ela se perdeu. Isso é verdade, pois nenhuma nação detém todas as virtudes e todas as respostas, muito menos o direito de dominar as outras.

Ele pensa que estaríamos realmente perdidos se acreditássemos que a humanidade precisa de uma nação hegemônica para liderá-la. Estaríamos condenados a torcer pelo que nos maltrata menos, tipo de opção que alguns países como o nosso são forçados a adotar no plano da política interna.

A estupidez de uma guerra mundial pode nos destruir. Mas é uma pena, pois temos grandes problemas comuns, como o combate à emergência climática, e grandes possibilidades de progresso por meio da evolução da medicina genética e mesmo da inteligência artificial, se conseguirmos controlar suas consequências. Apesar de parecer ingênuo, é necessário apostar na paz. Claro que, num confronto mundial, o Brasil, com suas raízes históricas e culturais, é um país do Ocidente e deve ficar ao seu lado.

Mas antes de tudo é necessário investir não só na paz regional no Oriente Médio, como em todos os lugares onde houver conflito. Os fundamentos de nossa política externa nos permitem isso. Há, porém, uma brecha entre os fundamentos e a prática, marcada até agora por frases infelizes e uma visão nostálgica da primeira Guerra Fria. A ideia de que existe democracia relativa na Venezuela ou democracia efetiva na China é apenas resultado de uma visão que não encontra nenhuma base no mundo real.

Na verdade, a democracia não é a única forma de governo. Não se pode universalizá-la com adjetivos, muito menos tentar levá-la a outros países na ponta da baioneta como os Estados Unidos fizeram em muitas ocasiões. O grande esforço intelectual do momento é dissecar todos os elementos de conflito no mundo e neutralizá-los.

Maalouf destaca um deles que contribui enormemente para envenenar o clima político. É o vínculo que estabelece entre religião e identidade, sobretudo nos países de tradição monoteísta. Os conflitos identitários que se baseiam em referências divinas acabam envenenando a História humana. Nesse ponto, há um reconhecimento da longevidade de Confúcio: para ele, o que importava era o comportamento do cidadão na cidade, e não suas preferências metafísicas.

Os ianques guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado

A Califórnia já pertenceu ao México, e suas terras aos mexicanos; então uma horda de americanos esfarrapados e loucos imundou-a. E tal era a sua fome de terra que eles tomaram, roubaram as terras dos Guerrero, dos Sutter, roubaram e destruíram os respectivos documentos de posse e brigaram entre eles sobre a presa, esses homens esfomeados, raivosos; e guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. E isso era apropriação, e apropriação era propriedade.

Os mexicanos eram fracos e esquivos. Não puderam resistir, porque nada no mundo desejavam com o frenesi com que os americanos desejavam aquelas terras.


Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante pela terra, por água e um céu azul sobre elas, pela verde relva exuberante, pelas raízes tumescentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nada mais desejavam. Não mais ambicionavam um hectare produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em torno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas em capital mais juros, e as colheitas eram compradas e vendidas antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então as colheitas fracassavam, secas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia, até que finalmente nem mais eram fazendeiros os meeiros, apenas homens de negócios, pequenos industriais, que tinham de vender antes de ter produzido qualquer coisa. E os fazendeiros que não eram bons negociantes perdiam suas terras para os que eram bons negociantes. Não importava quão trabalhador e diligente um homem era, e o quanto amava a terra e tudo que nela crescia, desde que não fosse também um bom negociante. E com o tempo os bons negociantes apropriavam-se de todas as terras, e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo em que diminuíam em quantidade.

Já aí a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto não o soubessem. Importavam escravos, embora não os chamassem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Ora, veja como eles vivem. E se se tornarem exigentes, a gente os expulsa do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia poucos fazendeiros pobres nas terras. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados e se sentiam apavorados, e alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo, e outros rebelavam-se e eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade de proprietários.

E as colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de grãos, e legumes destinados a alimentar o mundo espraiavam-se pelo chão: alface, couve-flor, alcachofra, batatas — colheitas humilhantes, inferiores. Um homem pode ficar de pé quando trabalha com a foice, o arado, o forcado; mas tem que rastejar por entre os canteiros de alface, tem que curvar-se e arrastar o enorme balaio por entre os algodoeiros, e tem que vergar os joelhos como um penitente para tratar da couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários não mais trabalhavam em suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras, o cheiro da terra e a satisfação de cultivá-la; lembravam-se apenas de que elas lhes pertenciam quando estavam calculando o quanto ganhavam ou perdiam nelas. E algumas das propriedades cresciam a ponto de um só homem nem mais poder imaginar o seu tamanho; eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e torná-las mais produtivas; capatazes cuja missão consistia em fazer com que os homens que trabalhavam nas terras o fizessem até o último resquício de sua força física. Então, esses proprietários assim transformavam-se em autênticos donos de armazéns. Pagavam aos homens e vendiam-lhes gêneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E após algum tempo deixavam absolutamente de pagar aos homens e economizavam a escrituração, os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia desse jeito trabalhar e comer; e quando terminava o trabalho verificava simplesmente que ainda devia ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas propriedades, como havia muitos que jamais o tinham.

Então chegaram as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste — vinham de Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira, expulsas pelos tratores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos — inquietos qual formigas, famintos de trabalho, de poder suspender, carregar, puxar, arrancar, cortar, colher, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por um pouco de comida. Nossos filhos têm fome. Não temos casa pra morar. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, antes de mais nada, de terra.

A gente não é estrangeiro. Sete gerações de americanos, e antes disso irlandeses, escoceses, ingleses, alemães temos em nosso passado. Um avô nosso fez a revolução, e muitos outros parentes tiveram na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.

Vinham famintos e ferozes, tinham a esperança de encontrar um lar, e só encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram covardes e que os Okies corajosos, e que eram bem nutridos e que os Okies passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem fraco quando esse alguém era feroz e faminto e estava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também, pois que eles não tinham dinheiro para gastar. Não há caminho mais curto para se obter o desprezo de um negociante. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies porque eles nada lhes deixavam ganhar. Eles nada possuíam. E os trabalhadores odiavam os Okies porque um homem esfomeado tem que trabalhar, e quando precisa trabalhar e não tem onde trabalhar, automaticamente trabalha por um salário menor, e aí todos têm que trabalhar por salários menores.

E os espoliados, os imigrantes inundavam a Califórnia, duzentos e cinquenta mil, trezentos mil. Atrás deles, novos tratores marchavam pelas terras, os meeiros que ainda tinham ficado eram também expulsos. Novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

E enquanto os californianos desejavam muitas coisas, acumular riquezas, sucesso social, diversões, luxo e uma curiosa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam duas coisas: terra e comida; para eles as duas coisas se fundiam numa só. E enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos, indefinidos, os desejos dos Okies jaziam nos caminhos, eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e achar água, boas terras verdejantes, terras que se podia esmigalhar entre as mãos ao experimentá-las, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até sentir-lhes o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que suas costas curvadas e seus braços diligentes fariam frutificá-lo, produzir nele a couve, o milho dourado, os rabanetes, as cenouras.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"

segunda-feira, 22 de abril de 2024

O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado a vida em sociedade

O aiatolá Khomeini impressionou o mundo ao derrubar o xá Reza Pahlavi em 1979. Com seu olhar severo, a partir de Paris, comandou a insurreição contra o monarca iraniano (lá mantido pelos americanos). Ao que eu saiba, foi o primeiro a provocar a queda de um regime usando apenas o telefone.

Pahlavi deu trela. Vendia a imagem de bon-vivant, de um governante moderno e ocidental. Espécie de playboy persa, ao lado de sua bela mulher, a rainha Farah Diba, cuja coroa fora assinada pelos joalheiros Van Cleef & Arpels. Era encenação: por trás da imagem, dava guarida a uma corja corrupta.

Na aparência, Khomeini era seu oposto. Sisudo, barbudo e não afeito a luxos terrenos ou à cultura. Depois de anos de exílio na França, voltava ainda mais fanático. Atrás da estampa, havia um religioso sedento por vingança. Não titubeou em mandar matar vários adversários de sua fé e de sua intransigência política. Pela força, levou a laica sociedade iraniana a retroagir à Idade Média, em crenças e desejos.

Uma de suas vítimas mais célebres, o autor anglo-indiano Salman Rushdie, reapareceu na semana passada no coquetel de lançamento de seu novo livro — “Faca”. Era uma festa privada num restaurante de Manhattan, oferecida pela revista on-line Air Mail, onde se reuniu com escritores, editores e jornalistas. Os amigos se impressionaram com sua disposição e bom humor, achando-o elegante num blazer esverdeado e de óculos com uma das lentes totalmente escura. Sua figura agora lembra a do pirata com tapa-olho. Há dois anos, Rushdie sofreu um atentado. Sobreviveu às 12 facadas que perfuraram diversas partes de seu corpo, cortaram seu rosto, além de macularem seu olho direito, que ficou dependurado no rosto “feito um ovo cozido”.

Quem tentou matá-lo atendia a uma fatwa emitida por Khomeini 30 anos atrás. O aiatolá forjou a mentira de que “Os versos satânicos”, obra de Rushdie, vilipendiavam o profeta Maomé. E assim o condenava à morte. Depois de viver anos escondido, o escritor foi alcançado por um chacal numa pequena cidade no upstate de Nova York. “Faca”, um livro de memórias, reconstrói o atentado e sua recuperação. “A obra não traz ódio”, adiantou Rushdie.

Khomeini morreu em 1989, aos 86 anos, no Irã. Rushdie sofreu o atentado em agosto de 2022, nos Estados Unidos, aos 74 anos. A distância no tempo revela a força e o alcance prático de uma mentira política, que no contexto contemporâneo poderíamos chamar de fake news. O aiatolá desejava impor os ditames de sua religião aos alcunhados “ímpios”. Era ainda um leitor iletrado. “Os versos satânicos” são uma obra poética, baseada numa lenda islamita e na própria vida do escritor, dividido entre a tradição persa e muçulmana e a contemporaneidade ocidental.

O uso da religião pela política, entre várias outras mortes, também está presente no massacre dos jornalistas do satírico Charlie Hebdo, na Paris de 2015. Qual Rushdie, alguns dos chargistas assassinados constavam de uma lista divulgada pela Al-Qaeda como alvos a ser abatidos. Sim, eram “ímpios”.

No germe da intolerância, a mentira e a incivilidade. O conceito revolucionário da urbanidade pressupõe o convívio de diferentes crenças, opiniões e gostos. Para a proteção de tal liberdade de escolha, ao final em defesa da própria vida cidadã, a civilização precisou criar regras e leis. Existem avanços e retrocessos, e mesmo os fracassos fornecem sinais. O fundamentalismo político, agora sob as redes sociais, tem dinamitado o arcabouço da vida em sociedade. Busca-se aplicar uma visão da antiga tribo ao cotidiano contemporâneo. Preconceitos e frustrações ajudam a criar clivagens. Mundo afora, o almoço familiar dominical virou um campo de guerra.

O Homo bolsonarus, da mesma cepa do aiatolá, defende a liberdade de expressão enquanto martela nas redes sociais reincidentes mentiras. Assim se enxerga livre para atirar. O novo discurso deles constrói a irrealidade de que o Brasil vive numa ditadura! Falam até numa ditadura judiciária. Os golpistas do 8 de Janeiro difundem o cenário de um Brasil avenezuelado, sem processo legal.

Rushdie não blasfemou contra o profeta Maomé, como Khomeini e os mercenários da Al-Qaeda difundiram em fake news. Nem o Brasil vive numa ditadura ou Lula transformou o país numa Venezuela. Rushdie vive escondido, com medo de ser morto ou perder o olho esquerdo. Mas seu algoz aguarda julgamento numa prisão americana, para mostrar que a vida e a liberdade de expressão são direitos fundamentais do Homo sapiens.

Revolução dos Cravos, 50, foi onda democrática que chegou ao Brasil

Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal, regime ditatorial que vigorou por 41 anos. João Pereira Coutinho comenta os contextos sociais e econômicos que levaram à queda da ditadura, o turbulento processo de democratização nos meses seguintes, os impactos da revolução em países que viviam sob governos autoritários, como o Brasil, e como os portugueses avaliam os últimos 50 anos


Foi bonita a festa, pá? Digo que foi, embora não tenha estado presente. Nasci depois de tudo. Esse tudo, aqui, é o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, 50 anos atrás. Mas, às vezes, nas minhas horas de ociosidade, pergunto o que teria sido de mim se a sorte me tivesse jogado duas ou três gerações antes de eu nascer, no mesmo país, sob o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980).

Dizer que a minha vida teria sido diferente seria um eufemismo: como escrever livremente em um país com censura prévia e polícia política? A cadeia ou o exílio teriam sido opções possíveis. Ou o silêncio, já agora: nunca devemos subestimar o papel da boa e velha covardia.

O que é válido para a loucura da arte é válido para a loucura da guerra —em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau— que consumiu as gerações anteriores.

Em princípio, minhas maleitas físicas teriam poupado a carcaça a certos terrores. Mas nunca fiando: entre 1961 e 1974, 200 mil rapazes foram mobilizados para as "províncias ultramarinas", com o fino propósito de defender as populações brancas das guerrilhas independentistas (o que se compreende), e por lá continuaram, contra toda a lógica, defendendo o "império" ou uma noção anacrônica de império (o que não se compreende). É muito?

É muitíssimo. Falamos de 2% da população portuguesa, contas por baixo, um número superior, em termos relativos, às tropas que os Estados Unidos enviaram para o Vietnã. Mais de 8.000 não regressaram. Trinta mil regressaram, mas em péssimo estado. Poderia ter sido um deles? A resposta arrepia de tão óbvia.

Como foi óbvia para os "capitães de Abril" quando disseram basta à guerra e, por inerência, ao regime. Um deles era Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), que na madrugada do 25 de Abril de 1974 falou assim aos seus homens, antes de sair com eles para derrubar o Estado Novo: "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegamos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos".

Não é qualquer um que inaugura uma revolução com essa mistura de clareza e humor. Mas Salgueiro Maia não era qualquer um: no Movimento das Forças Armadas, ele foi o mais corajoso e, deposto o regime, um dos mais recatados também. Morreu jovem e relativamente esquecido. Mas divago.

Estou grato a esses homens. Estou grato aos que vieram depois: derrubar um regime autoritário não é coisa pouca; mas construir uma democracia liberal é tarefa ciclópica.

Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo ano.

Mas o que importa, para lá dessas contabilidades macabras que continuam a alimentar ressentimentos vários nas franjas da sociedade portuguesa, é olhar para o povo. Falo do povo que realmente existe, não do "povo" como criação mítica de vanguardas revolucionárias que têm o hábito desagradável de falar em seu nome.

Nas primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, em 1975, os portugueses votaram. Para quem acompanhava o curso da revolução nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos jornais, na televisão, o caminho para o comunismo parecia inexorável. Pelo menos, para quem achava que os portugueses, depois de experimentarem a mais longa ditadura da Europa, estariam dispostos a ter outra, de inspiração soviética.

Quase 92% dos eleitores acorreram às urnas, números que nunca mais se repetiram. Quando os resultados foram divulgados, 68% escolhiam partidos defensores da democracia liberal e do pluralismo político (o PS, o PPD e o CDS, por ordem decrescente).

O Partido Comunista, que se julgava ungido pela história e proprietário do país, ficava em terceiro lugar, com 12,5%. A "legitimidade revolucionária", como então se dizia, sofreu um golpe fatal. Ainda sobreviveu uns meses, na união perversa entre a ala radical do Movimento das Forças Armadas e a extrema esquerda. Ocuparam-se terras, nacionalizaram-se empresas, cometeram-se abusos e violências contra as forças da "reação", ou seja, contra os democratas. Mas o país tinha falado e nunca mais voltou atrás.

Como diria mais tarde o presidente e primeiro-ministro Mário Soares sobre o "verão quente" de 1975: "As praias e os parques de automóveis estavam literalmente a abarrotar. Como é possível, pensei, com esta classe média tão forte, com toda esta gente nas praias, que se venha dar aqui um golpe comunista? Não era". E não foi.

Quando eu nasci, em 1976, a democracia era um fato, ainda que limitada pela tutela dos militares (até à primeira revisão constitucional de 1982). A entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1986, passou a ser o horizonte de um país que só queria uma vida normal.

Tive direito a uma vida normal: educação pública até a universidade, fronteiras abertas para viajar pela Europa durante toda adolescência e a liberdade para escrever e publicar por minha conta e risco.

Quando fui a tribunal por abuso de liberdade de imprensa, pouco depois dos 18 anos, não foi a Pide/DGS, a polícia política do regime salazarista, que me foi buscar a casa. Caminhei para a sala de audiências pelo meu próprio pé, conhecendo os meus direitos e deveres.

E por falar em pé: foi ele que me salvou quando compareci à inspeção para cumprir o serviço militar obrigatório, só abolido no século 21. Fui dado como "inapto". Nunca estive nas antigas províncias ultramarinas, muito obrigado.

Foi bonita a festa, pá? O cientista político Samuel Huntington não tem dúvidas: foi belíssima. Nas primeiras linhas do clássico "The Third Wave: Democratization in the Late 20th Century" (a terceira onda: democratização no final do século 20), escreve Huntington: "A terceira vaga de democratização no mundo moderno começou, implausível e involuntariamente, 25 minutos depois da meia-noite, quinta-feira, 25 de abril de 1974, em Lisboa, Portugal, quando uma estação de rádio tocou a canção 'Grândola Vila Morena'".

Explico melhor. Na obra de Huntington, a democracia na era contemporânea é como as ondas do mar, avançando e recuando em momentos históricos particulares. E arrastando consigo outros países, por influência ou exemplo.

A primeira vaga aconteceu entre 1828 e 1926 e tem as suas raízes na Revolução Francesa e no alargamento do direito de voto nos Estados Unidos (aos homens brancos, claro).

A sua contravaga surgiria em 1922, com a infame marcha dos fascistas sobre Roma, contaminando Portugal (em 1926), a Espanha (em 1936), sem falar da Alemanha (em 1933, o caso mais catastrófico de todos).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma segunda vaga se espraiou na Europa, na Ásia, na América Latina, pelo menos até 1962. Da Alemanha à Itália, da Áustria ao Japão, a democracia firmou-se nesses países até então relapsos.

A segunda contravaga terá começado em 1958 e durado até 1962. A América Latina foi a "loca infecta" dessa regressão, com o Brasil (1964), a Argentina (1966), o Equador (1972), o Chile e o Uruguai (1973) a serem tomados pelo autoritarismo.

Aquela manhã fria em Lisboa inaugurou a reversão da reversão. Para ficarmos uma vez na América Latina, a democracia retornou ao Equador (1979), ao Peru (1980), à Bolívia (1982) e ao Brasil (1985).

Por outras palavras: o pedigree internacional da Revolução dos Cravos é reconhecido e aplaudido. Sua influência benigna também. Mas nos momentos de festa há sempre vozes de desânimo que olham para a data e lamentam o que ela significa.

Alguns têm razões para isso: falo dos extremos, cada vez mais minoritários, que lamentam o fim da ditadura —ou, em alternativa, o fato de Portugal não ter inaugurado outra.

Mas eu não falo dos casos extremos. Falo até de moderados que persistem em projetar na democracia o que ela não pode comportar. Democracia é igualdade, para uns. É riqueza, para outros. É reconhecimento, justiça, fraternidade. Citando o título do filme, é tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Se a perfeição não foi atingida em cada um desses valores, a democracia falhou.

sociólogo Ralf Dahrendorf, ao confrontar-se com as revoluções de 1990 que libertaram o Leste Europeu do comunismo, já tinha detectado esse problema eterno. Se a revolução é o momento em que o povo faz amor com a história (obrigado, Sartre), há quem não tolere a rotina conjugal que se instala quando a febre passa. As expetativas extravagantes dão lugar ao desencanto quando a utopia teima em não chegar.

Mas a utopia nunca chega, afirmava Dahrendorf. Se a revolução enterra a ditadura e se a democracia enterra a revolução, permitindo a partir daí remover maus governos sem derramamento de sangue, ambas já terão cumprido o seu papel.

Tal como o 25 de Abril cumpriu o dele: o Estado Novo terminou em 1974, praticamente sem resistência, e ninguém suspira por ele, muito menos com a sua restauração. Além disso, se a democracia é o arranjo possível para remover governos através de eleições limpas e livres, convém procurar o que falta ao país noutros lugares, não nas urnas que sempre funcionaram sem engulhos.

Falta muito, admito, mesmo sabendo que o país de 2024 é irreconhecível aos olhos de 1974. Em qualquer indicador relevante —educação, saúde, bem-estar, proteção social, emancipação feminina etc.—, existe um abismo entre esses dois mundos.

Mas nem tudo é perfeito. O fraco crescimento econômico, os baixos salários, a dívida pública (beirando os 100% do PIB), a taxa elevada de pobreza e de desigualdade em comparação com os nossos parceiros europeus —tudo isso é motivo de desânimo. A fraca participação política e a erosão na confiança das instituições democráticas são a expressão disso.

Desânimo, no entanto, não significa desistência. Significativamente, o Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa realizou um estudo intitulado "50 anos de democracia em Portugal: mudanças e continuidades geracionais". O objetivo dos pesquisadores é permitir que sejam os portugueses a fazer um balanço do regime, sem os habituais mandarins que, repito, gostam de falar em seu nome.

Os resultados não me surpreendem. A esmagadora maioria (69%) tem uma opinião mais positiva que negativa da revolução; 24% ficam em cima do muro; 7% têm uma opinião mais negativa que positiva. Mas é entre os mais jovens, de 16 a 34 anos, que o 25 de Abril é acolhido com entusiasmo: 73% aplaudem a data (só 6% a recusam).

Moral da história?

Em 1975, chamados às urnas, os portugueses mostraram mais clarividência que as vanguardas terceiro-mundistas que os desejavam pastorear. Cinquenta anos depois, nada mudou: o gosto pela liberdade é um hábito que não se perde.

Nestas matérias, convém lembrar o verso da canção "Grândola Vila Morena", que pôs em marcha o fim da ditadura. "O povo é quem mais ordena"?

Precisamente.

 João Pereira Coutinho 

Pensamento do Dia

 


Agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira

Não passa um dia sem que a agitação extremista antidemocrática deixe de comparecer à pauta da nossa paciência, como entrelinha invasora das informações e debates sobre os acontecimentos significativos da vida cotidiana das pessoas comuns. Os resíduos do golpe de Estado de 1964 ainda conspiram contra a democracia e os direitos sociais. Indicam-no evidências, como as de 8 de janeiro de 2023, de tratamento do povo brasileiro como um povo carneiril.

De tanto repetir-se, a agitação subversiva contra as instituições se naturaliza pela teimosia de sua reiteração. A sociedade brasileira vai ficando sem alternativas para situar o que de fato é relevante e o que é irrelevante na vida do país. Sobretudo o que é intencionalmente produzido para deturpar e minimizar o nosso penoso retorno à ordem.

Os mais desprovidos de discernimento e mais vulneráveis à manipulação ideológica e autoritária vão sendo induzidos a aceitar a banalização de nossa identidade de povo que a duras penas se formou numa história social de adversidades e desafios.

A ação antidemocrática basicamente nos indica um consistente ativismo para desmobilizar a vigilância crítica dos partidários da democracia e dos que se recusam a ser tratados como tolos e politicamente imaturos.


Agitadores e suspeitos de autoria e promoção da baderna, no entanto, têm sido contidos pela vitalidade das instituições e do protagonismo cívico dos defensores da Constituição e das leis. Os cansativos atores do circo da ilegalidade querem convencer os expectadores, no entanto, de que são vítimas de uma ditadura de esquerda.

A temida democracia que, ao enquadrá-los na lei, estaria se opondo ao anarcoliberalismo e à liberdade de alguns de tramarem contra o direito de todos. Associaram-se a agitadores internacionais que defendem como legitimamente democrática a difusão de valores negativos e princípios reacionários, antissociais e nazistas, caso da proclamação do direito ao ódio.

Estão em peregrinação por diferentes cantos do mundo para denunciar o governo brasileiro como uma ditadura de esquerda que lhes tolhe o direito de expressar, defender e praticar sua opção supostamente conservadora pelo ódio, pela tirania, pelo autoritarismo e pela morte, como se viu no modo criminoso e irresponsável de lidar com a pandemia.

Na verdade, nem os bolsonaristas, nem os seus simpatizantes e cúmplices, civis, religiosos e militares, são conservadores. Eles não têm o menor conhecimento do que é isso. São reacionários de forte inclinação fascista, despistados, vítimas não das instituições, mas de si mesmos e dos seus mentores e manipuladores.

O Brasil já conheceu, no Império, a grande tradição conservadora, no equilibrado balanço de gestão política alternativa do país pelos conservadores e liberais. Os liberais propondo inovações políticas e sociais e os conservadores realizando-as no marco do consenso negociado, como observou Euclides da Cunha na aguda compreensão que desenvolveu a respeito da realidade brasileira.

Entre nós esse balanço se expressou na ação política e econômica de grandes figuras como a de Antonio da Silva Prado, de família de grandes empresários originada no século XVIII. Ele foi o grande arquiteto da abolição da escravatura, cujo humanismo convergia com o de Joaquim Nabuco, quem melhor viu a extensão dos danos antissociais da escravidão relacionados com seus danos econômicos. Os fundamentos do atraso brasileiro, que residualmente persistem em anomalias como a onda autoritária do presente e o anticapitalismo da direita.

Um dos episódios desse delírio foi o da manifestação de bilionário sul-africano, empresário, dono de conhecida rede social, que, contrariado na sua insólita economia da manipulação das necessidades ideológicas dos toscos e irresponsáveis, prometeu desobedecer as ações e normas emanadas do TSE e do ministro Alexandre de Moraes. Com o reforço do presidente argentino, que, na falta de problemas em seu país, dispôs-se a colaborar com o empresário sul-africano no “conflito” com o STF.

O embaralhamento de temas irrelevantes com temas fundamentais da cidadania tem permitido aqui sobrerrepresentação de agitadores no Congresso. Base política de ações contra a ordem convencionada na Constituição de 1988. Como a dos que foram, sem êxito, à Câmara dos Deputados dos EUA pleitear medidas contra o Brasil por ser o nosso país suposta ditadura de esquerda. À custa do dinheiro público, esses grupos estão na Europa pleiteando o seu reconhecimento como vítimas dessa ditadura.

Atuam como agentes estrangeiros infiltrados na democracia brasileira, para defender um liberalismo superficial e interesseiro, contrário ao nosso direito de povo livre e soberano.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil

Não é preciso ser um Voltaire para definir a História como o estudo de todos os crimes do mundo — a começar pelas guerras. Numa segunda categoria desses crimes, mais silenciosos, mas igualmente ruinosos, está deixar passar oportunidades capazes de mudar a História para melhor. Nesta semana, sob instrução do democrata Joe Biden, 46º presidente dos Estados Unidos, seu vice-embaixador junto à ONU desempenhou o melancólico papel de vetar a admissão da Palestina como membro pleno das Nações Unidas. Apesar de esperado, o veto solitário (Grã-Bretanha e Suíça se abstiveram, os outros 12 integrantes do Conselho de Segurança aprovaram a moção) pode ser considerado uma dessas oportunidades perdidas.


Caso não tivesse sofrido veto, a resolução passaria à votação na Assembleia Geral, com aprovação certamente maior que o mínimo necessário de dois terços dos 193 países. Hoje, 140 das nações da ONU já reconhecem a Palestina como Estado. Um acolhimento pleno com direito a voto e assento rotativo no Conselho de Segurança representaria um upgrade simbólico e político (mas não legal, claro) para o país que ainda não é país. Continuará, assim, sendo “não membro com status de observador”. Autoproclamado Estado independente desde 1988, apesar de não ter soberania sobre seus territórios ocupados até hoje por Israel, a Palestina, de que a Faixa de Gaza faz parte, continua a ser este imenso encontro marcado e sempre adiado do mundo democrático com a História.

Ao justificar o veto dos Estados Unidos, o vice-embaixador Robert Wood cometeu contorcionismos verbais para explicar que o veto contra a admissão do Estado Palestino na ONU não refletia oposição ao Estado Palestino. Difícil de entender. Soube-se também que, para evitar ser a única voz dissonante da votação, os americanos se empenharam em tentar aliciar outros integrantes do colegiado. Cópias de memorandos do Departamento de Estado obtidas pelo site The Intercept atestam a pressão exercida sobre o Equador para que convencesse os embaixadores de Japão, Coreia do Sul e Malta (país que preside os trabalhos do Conselho neste mês) a se alinhar aos Estados Unidos. Não deu certo.

Como pano de fundo, havia a emergência de uma guerra entre Israel e seu inimigo existencial, o Irã. As duas fortalezas militares jamais haviam se confrontado mano a mano, preferindo acertar suas contas por meio de atentados terroristas, ataques cibernéticos, assassinatos e agentes intermediários. Na madrugada do sábado anterior, porém, a chuvarada de mais de 300 drones e mísseis iranianos que incandesceu o céu de Jerusalém e se espraiou por todo o território israelense alterara essa realidade... Ainda assim, foi uma resposta anunciada com antecedência aos atores-chave da região e calibrada para poder ser interceptada por Israel e seus aliados. Todos puderam se dar por satisfeitos e declarar vitória. Seis dias depois, o inevitável revide israelense revelou-se ainda mais contido, mais cirúrgico — um ataque de drones atingiu a base militar de Isfahan na sexta-feira, sem que a instalação nuclear iraniana ali fincada fosse atingida. Atendeu à pressão de seu principal aliado, os Estados Unidos, e de coadjuvantes, tanto europeus como árabes, para baixar a pressão.

Fica a pergunta: em troca de que os radicais do governo Netanyahu aceitaram comedimento contra o Irã? A moeda de troca talvez seja Rafah. Na próxima terça-feira, terão transcorrido 200 dias desde a chacina terrorista do Hamas contra civis israelenses. A retaliação desencadeada pelas Forças de Defesa de Israel — eliminação radical do Hamas, mesmo que ao custo da asfixia da vida civil na Faixa de Gaza — ainda não está completa. Falta limpar Rafah, a cidade-refúgio do Sul onde mais de 1 milhão de palestinos desenraizados do Norte se somam aos famintos locais e onde o emaranhado de túneis usados pelos terroristas ainda não foi implodido. Em 200 dias de operação terra-arrasada, 133 reféns israelenses (vivos ou mortos) continuam em mãos do Hamas devido ao estancamento das negociações por um cessar-fogo. Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, a contenção contra o Irã pode ter valido a pena se conseguir convencer Biden da necessidade de estrangular Rafah — condicional à remoção prévia daquela multidão sem rumo. Difícil.

Tudo o que tange a Palestina é historicamente difícil. O próprio New York Times, jornalão de referência para boa parte do mundo, atualiza constantemente as orientações sobre os termos a ser usados por jornalistas do matutino que cobrem o conflito. Segundo um memorando interno obtido por Jeremy Scahill, cofundador do Intercept, é recomendada a restrição ao uso de termos como “genocídio” e “limpeza étnica”; a denominação “territórios ocupados”, em referência às terras palestinas da Cisjordânia, Gaza e parte de Jerusalém, deve ser evitada. “Palavras como matança, massacre, carnificina muitas vezes contêm mais emoção do que informação. Pensem muito antes de usá-las como sendo suas”, sugere também o memorando. Difícil.

Barco à deriva

Os europeus enriquecem com as riquezas da África. Para isso, precisam que o continente se mantenha pobre, dividido e mal governado. Depois, os africanos migram para a Europa, fugindo da miséria. Triste mundo. A Humanidade é um barco à deriva
José Eduardo Agualusa

O espectro da guerra civil: Para onde a polarização exacerbada pode nos levar

Uma pesquisa do instituto YouGov para a revista britânica The Economist em 2022 mostrou que 14% dos americanos consideram “muito provável” e 29% consideram “um pouco provável” que os Estados Unidos enfrentem uma guerra civil na próxima década. Sessenta e seis por cento dos entrevistados acreditam que, depois do 6 de janeiro de 2021 (quando houve a invasão do Congresso americano), o país ficou ainda “mais dividido”, e 65% creem que a violência política “aumentou”. No Brasil, a situação não é muito diferente.

Levantamento do instituto Quaest, publicado aqui no GLOBO, mostrou, na véspera das eleições de 2022, que 12% dos brasileiros consideravam “muito justificado” e 9% “um pouco justificado” o uso de violência se o outro lado vencesse as eleições. Três meses e meio depois, tivemos o 8 de Janeiro. É num futuro próximo, derivado dessas tensões políticas, que se passa o novo filme de Alex Garland, “Guerra civil”, que entrou em cartaz neste fim de semana.

O filme é uma distopia realista sobre os Estados Unidos destruídos por uma guerra civil sangrenta. Um grupo de quatro jornalistas que trabalham para a agência Reuters e o jornal The New York Times viaja de carro de Nova York à capital Washington para tentar entrevistar o presidente antes que forças rebeldes cerquem a cidade e tomem o poder. Numa espécie de roadmovie de terror, os quatro passam por estradas tomadas por carros abandonados, um estádio convertido em centro de acolhimento, um posto de gasolina controlado por justiceiros e cidades ocupadas por guerrilheiros e milicianos.

O filme filia-se a uma tradição de perturbadores filmes antiguerra, como “Apocalypse now” (1979), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Guerra ao terror” (2008). Da diretora Kathryn Bigelow, de “Guerra ao terror”, incorpora uma estética ultrarrealista, próxima à de um documentário, que provoca calafrios ao ser encenada em locações conhecidas nos Estados Unidos. De Francis Ford Coppola, Garland faz uma citação direta numa das cenas finais de batalha, que remete à famosa cena da dança dos helicópteros de “Apocalypse now”. Ao produzir essas cenas ultrarrealistas de batalha que nos relembram a crueza da guerra, Garland quer fazer um alerta: a consequência lógica do aprofundamento da polarização política é a violência, a guerra civil fratricida entre compatriotas que não mais se aceitam.

Essa mensagem política do filme, porém, tem sido muito debatida. Garland optou por embaralhar as referências políticas em seus Estados Unidos distópicos. O presidente do filme está no terceiro mandato (quando a Constituição só autoriza dois), e descobrimos que fechou o FBI e bombardeou civis, mas não sabemos se é republicano ou democrata. Contra ele, forma-se uma coalizão de dois estados que também têm orientação política desconhecida reunindo Texas e Califórnia, hoje marcados pela orientação política oposta — a Califórnia de esquerda e o Texas de direita. Diálogos esparsos dos personagens não dão pistas dos motivos da divisão política, e ela não parece ser a fratura que divide hoje republicanos conservadores e democratas progressistas. Nas cenas de batalha, nunca sabemos bem com que lado os agentes armados estão colaborando. É como se o filme nos dissesse que isso não importa.

Em entrevistas, Garland tem defendido sua abordagem que impede o público de se reconhecer e se alinhar com um dos lados da disputa. Críticos do filme têm chamado o resultado de “bobo” e “superficial” ao evitar enfrentar os temas reais que nos dividem. A resenha no jornal The Wall Street Journal chamou o filme de “carnificina sem causa”. Outra, na revista The New Yorker, afirma que Garland “se perdeu numa névoa não partidária”.

Garland, porém, evitou perder espectadores discutindo as causas do conflito e preferiu, ao contrário, mostrar aos dois lados para onde a polarização exacerbada pode nos levar. Seu filme não é uma reflexão sobre os temas dos nossos conflitos políticos, é uma reflexão sobre a maneira como levamos esses conflitos. É um filme que nos lembra que a violência — consequência lógica da polarização crescente — é a própria falência do espírito humano.