quinta-feira, 25 de março de 2021

A corrupção escancarada pela Lava-Jato era evidente, e não há fato que altere isso

O ser humano em situação de Brasil não tem paz. O ser humano em situação de Brasil quer espairecer, quer tocar a vida, quer maratonar séries e acompanhar o Big Brother, quer contar gracinhas dos seus gatos e conversar abobrinhas, quer ser cronista de miudezas, mas a situação de Brasil se impõe sobre todo o resto.

Dá para ignorar a decisão da Segunda Turma do STF? Não, não dá. O ser humano em situação de Brasil precisa perder a tarde em frente à televisão assistindo a uma sessão do Supremo, coisa que nenhum ser humano em circunstâncias normais jamais precisaria fazer em qualquer outra parte do mundo, a menos que se especializasse em Direito e achasse tudo aquilo fascinante.


O ser humano em situação de Brasil é confrontado pelos dilemas criados pelo desenrolar tortuoso da Lava-Jato — que, ainda assim, foi uma das operações mais importantes já deslanchadas no país contra a corrupção.

O ser humano em situação de Brasil vê as bases da sua única esperança de Justiça contra os poderosos desmoronarem não porque eles sejam inocentes, mas porque elas estavam construídas sobre areia.

O ser humano em situação de Brasil prevê o dinheiro recuperado sendo devolvido aos ladrões, que em breve entrarão com novos processos e recursos pedindo indenizações milionárias — e provavelmente ganharão todas, sendo o Brasil Brasil.

O ser humano em situação de Brasil não encontra consolo na lei.

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A corrupção escancarada pela Lava-Jato era evidente, e não há fato que altere isso. Não há narrativa ideológica que explique o que foi revelado e os montantes recuperados; “sempre se roubou no Brasil” não é uma justificativa aceitável sob qualquer perspectiva.

Infelizmente as pessoas que mais precisariam cuidar para que a operação não entrasse pelo desvio e não fosse esmagada como está sendo não entenderam a grandeza do seu papel, e se corromperam elas também. Há várias formas de corrupção, e a maioria passa ao largo das grandes empreiteiras.

Um dos piores problemas do Brasil é que os seus heróis são tacanhos e não têm ambição. Penso constantemente naquele Sérgio, o Cabral, que era jovem, e que poderia ter chegado à presidência e ter feito tanto, mas preferiu comprar casas, joias e sapatos de sola vermelha. Eu ainda me lembro de como a cidade comemorou a sua prisão: valeram, as quinquilharias?

Que mentalidade.

Esse outro Sérgio, o Moro, poderia ter mudado os rumos da História e ter se tornado um exemplo para sempre, o valente juiz de província que confrontou as pessoas mais poderosas da República — mas acabou tropeçando na própria vaidade e num posto no governo.

Faltou-lhe inteligência para perceber que, na corrida longa, um cargo é muito pouco comparado a uma lenda.

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Enquanto isso, a pandemia corre descontrolada, o presidente mente na televisão, as panelas rugem, as vacinas não chegam, o país e o mundo desmancham pelas costuras.

Não dá para manter um mínimo de sanidade nesse ambiente.

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O ser humano em situação de Brasil vai para um canto, cobre a cabeça de cinzas e chora.

Pensamento do Dia

 


Golpismo a céu aberto

O presidente Jair Bolsonaro tem explicitado, de maneira clara e cristalina, a intenção de implodir a democracia brasileira. Esse é o sentido da frase “só Deus me tira da presidência” e da ameaça de “tomar medidas drásticas” porque “estão esticando a corda demais”. A cantilena autoritária o leva a tratar as Forças Armadas como “meu exército”, como se elas deixassem de ser instituições de Estado para se transformar em sua guarda pretoriana, leais não à Constituição, mas a ele.

O presidente segue o método de vociferar em uma direção e não desistir de seu intento até conseguir seu objetivo. Pode, no meio do percurso, fazer movimentos ziguezagueantes, com idas e vindas, mas sempre retorna ao rumo para alcançar sua meta. Deixa no ar que não titubearia em adotar medidas extraconstitucionais. Se Donald Trump enveredou por esse caminho na democracia mais consolidada do planeta por que Bolsonaro não iria seguir a mesma trilha?

A escalada da pregação antidemocrática é consequência do aprofundamento do seu isolamento em decorrência de ter perdido a narrativa da pandemia. O coronavírus, como era previsível, reduziu a pó sua estratégia de negar a dura realidade que o Brasil enfrenta. O chão começa a faltar a seus pés.

Não sem razão fez pronunciamento à nação no horário nobre desta 3ª feira. O tom pretensamente contido e ponderado não disfarçou a distorção dos fatos e a omissão de informações.

O mundo da produção e os agentes econômicos começam a lhe dar as costas. Reflexo disso são os movimentos que surgiram nos últimos dias.

Um manifesto com 1.500 assinaturas de empresários, banqueiros e economistas, alguns dos quais ex-presidentes do Banco Central, é a maior evidência de que parte substantiva do PIB brasileiro repudia sua política negacionista e exige a adoção de outra, pautada na ciência e focada na vacinação em massa.

Outras duas iniciativas mostram que importantes formadores de opinião estão procurando alternativas às preconizadas pelo presidente. Empresários liderados por Luiza Trajano, proprietária do Magazine Luiza (Magalu) vão ao Congresso para viabilizar a adoção da renda-básica e a aprovação das reformas estruturantes. Nessa 2ª feira outro grupo composto pela fina-flor do PIB se reuniu com os presidentes do Senado e da Câmara Federal. Estes empresários e banqueiros se dispõem a assumir protagonismo na aquisição de vacinas, de novos leitos de UTIs e na oferta de insumos médicos.

Em condições normais de temperatura e pressão seria natural que batessem à porta do Executivo e não do Parlamento, como vem acontecendo. Não apenas empresários, mas governadores e prefeitos também veem no Poder Legislativo a possibilidade de responder ao vácuo de poder gerado pelo presidente. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e sobretudo do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), têm sido o ponto de equilíbrio e de ponderação em um momento em que a união nacional é condição básica para o Brasil vencer a guerra contra a pandemia.

Em um regime presidencialista esse papel cabe ao Poder Executivo, mas a vocação de Bolsonaro de disseminar dissensos e sua obstinação pela anti-ciência vem gerando uma dualidade de poder. Lira e Pacheco dão sinais de descrença da capacidade do chefe da nação liderar o país no momento mais trágico de nossa história.

Mas eles não têm a caneta e muitos menos o poder de nomear e demitir. E continuam nas mãos do governo, o que gera uma contradição entre o poder real e o poder formal, no tocante à pandemia.

Dualidade de poder é por si mesmo um fator de instabilidade e rupturas. Ela não pode existir por períodos mais longos. O risco é Bolsonaro tentar resolvê-la ao modo de “medidas drásticas”, como Estado de Sítio, que ele tanto tem falado nos últimos dias.

O presidente está acuado ainda por outros dois fatores. De um lado, a fase de lua de mel com o Centrão chegou ao fim e, por outro, o centro e a esquerda começam a estabelecer pontes entre si com vistas a uma atuação articulada. Não é possível ainda especular se o namoro se limitará apenas ao enfrentamento ao negacionismo ou se terá desdobramentos em um horizonte de médio prazo. Mas desde já é mais um fator que indica o isolamento de Bolsonaro.

Sim, as instituições brasileiras têm demonstrado resiliência e bloqueado o golpismo pregado pelo presidente. Certamente, se ele tentar decretar Estado de Sítio, o Congresso o rejeitará, assim como rejeitou em outubro de 1963, quando o então presidente João Goulart baixou a medida. Goulart aceitou a decisão soberana do Parlamento. Bolsonaro faria o mesmo, na hipótese de ter um pedido rejeitado?

Também não é crível que o alto comando das Forças Armadas embarque numa aventura. Ao contrário, já se percebe o profundo incômodo na cadeia de comando com a distorção do papel das instituições militares. Mas, constantemente, Bolsonaro tem feito proselitismo político nos quartéis. Seu discurso encontra guarida na baixa oficialidade. Está aí o germe de um conflito entre a cadeia de comando e sua base. No passado esse conflito levou a quebra da disciplina e a anarquia. Podemos ter o tenentismo revivido.

O presidente tem atuado no limite da legalidade. A dúvida é se ele ultrapassará esse limite, estimulando seus brigadistas a realizar atos de provocação que justifiquem a decretação do Estado de Sítio com o argumento da “convulsão social”. Não seria a primeira vez na história. Para invadir a Polônia, Hitler simulou um ataque polonês a um posto de comando alemão na fronteira dos dois países.

Não há espaço para a ingenuidade. Não dá para ignorar que Bolsonaro conspira, a céu aberto, contra o Estado de Direito Democrático.

Hubert Alquéres

Golpismo e destruição

Com o Brasil à beira de atingir 300 mil mortos oficiais por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro achou por bem se refestelar com seus apoiadores, à frente do Alvorada, no dia de seu aniversário. Fosse só isso, seria indecoroso, mas não ultrapassaria os limites do que a democracia admite. Contudo, houve mais. Novamente o chefe do governo federal investiu contra seus pares nos Estados, acusando-os de serem tiranetes e emendando: “Podem ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.”

Ou seja, o presidente da República sugeriu que contra a “tirania” de governadores e prefeitos - que apenas exercem suas competências constitucionais no combate à pandemia - pode usar o poder armado dos militares por ele chefiados e, ainda, mobilizar suas tropas civis - formadas por aqueles que ajuda a armar. Não é novidade. Na famigerada reunião ministerial tornada pública por decisão do ex-ministro do STF, Celso de Mello, Bolsonaro deixou claro que armava as pessoas para que pudessem se insurgir contra governadores e prefeitos cujas ações divergem das que preconiza.

Ainda na festa de aniversário, o presidente disse: “Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”.


O que é “esticar a corda” nesse caso? É não lhe obedecer? É seguir políticas distintas daquelas por ele preferidas, optando pelo que preconizam autoridades sanitárias e científicas mundo afora? Por que isso seria “esticar a corda” e não apenas atuar como governos subnacionais autônomos numa federação? Ou ainda, na realidade, não é ele quem estica a corda, desrespeitando a autonomia política dos entes federados?

Bolsonaro é incapaz de reconhecer como legítima qualquer ação que não lhe seja subserviente - e isso, mesmo quando promovida por quem não lhe deve obediência alguma. Diante disso, como fazem os populistas autoritários (com o perdão da redundância), recorre ao “seu povo” - composto apenas por aqueles que o apoiam e seguem. Ao dizer que esse povo particular compõe, junto com as “suas” Forças Armadas, um corpo de combate em prol da sua noção também particular de democracia ¬- que contempla apenas esse povo particular -, Bolsonaro ameaça com um golpe de Estado. Não há como interpretar diferentemente, considerando a forma como trata atores políticos que a ele se opõem ou simplesmente não se curvam.

Alguém poderia replicar que Bolsonaro apenas diz que fará “qualquer coisa... que está na nossa Constituição” (o presidente tem fixação por pronomes possessivos). O problema é que a leitura constitucional bolsonarista também é muito particular. Não fosse, ele reconheceria as competências de Estados e municípios, o papel do governo federal como coordenador (mas não comandante) de políticas intergovernamentais e a decisão do STF relativa a isto - que não lhe desobrigou de nada, pelo contrário. Portanto, quando Bolsonaro invoca a Constituição é preciso ter clara a forma como a interpreta. E, assim como em todos os outros casos, ele a vê como mero instrumento de seus objetivos e desejos particulares.

Fossem apenas palavras ao vento, seria grave, mas não tão perigoso. O problema é que o presidente toma providências concretas. Ao aboletar milhares de militares em cargos comissionados, com suas respectivas gratificações, Bolsonaro aparelha o Estado e coopta o segmento armado da burocracia pública. Ao dar a esse mesmo grupo benesses corporativas, como o singular aumento previsto no orçamento, reforça essa cooptação. Por esses meios, busca de fato tornar “suas” as Forças Armadas.

Já com as normas sobre armas baixadas pelo Executivo, o presidente municia grupos na sociedade com os quais tem vínculos antigos e que lhe apoiam - notadamente os Clubes de Atiradores e Caçadores (CACs). Ao transferir a tais organizações privadas até mesmo a prerrogativa eminentemente estatal de certificar quem está ou não apto a se armar, Bolsonaro facilita a criação de potenciais tropas de assalto privadas. É esse “povo” que compõe seu exército, ao lado dos verde oliva - como ele mesmo disse. Portanto, as diatribes bolsonarescas não são meras palavras ao vento; elas têm lastro na construção de uma aliança armada e apostam na violência como solução para os impasses políticos em que a liderança de Bolsonaro enreda o país.

Em paralelo a essa construção de um poder paralelo, ocorre também uma desconstrução. Desde o começo, a Presidência de Bolsonaro tem obrado para desmontar instituições, políticas públicas longamente consolidadas, espaços de participação democrática e noções de convivência política e social. A devastação ambiental, a radicalização política, o ataque violento e intimidatório a críticos e à imprensa não alinhada, bem como as mortes evitáveis produzidas pelo descalabro sanitário, tudo é resultado de iniciativas governamentais claras - não são ocorrências fortuitas.

Esse desmonte favorece o cenário de caos, em que o recurso a soluções extremas e ilegais se torna mais propício. O ambiente anômico esboçado pela greve dos caminhoneiros, em 2018, tornou mais plausível o discurso extremista do então candidato, Jair Bolsonaro. O colapso sanitário e econômico que agora se produz, por empenho do próprio governo que o deveria mitigar, novamente abre espaço para aventuras.

O contrapeso vem do fato de que a Bolsonaro se opõem, cada vez mais fortemente, atores de peso no concerto político, como governadores, empresários, órgãos de imprensa e lideranças internacionais - que se dão conta da ameaça por ele representada e do estrago que promove. Esses atores têm dois desafios pela frente: primeiro, deter a escalada autoritária e destruidora do presidente da República, talvez o apeando do cargo; segundo, preparar-se para um logo e penoso processo de reconstrução nacional, que será inescapável diante da destruição humana, ambiental, institucional social e econômica produzida pelo bolsonarismo.

O presidente busca um álibi

Trezentos mil mortos são uma derrota coletiva tão avassaladora que o país não sabe mais medir, não tem palavras para qualificar. Existe apenas esse luto sobre nós, dia após dia. O que o presidente Bolsonaro fez ontem foi pouco, tarde e enganoso. Ele busca um álibi. Tenta montar uma rota de fuga e chamou quem pode lhe dar cobertura. Convidou apenas os governadores que lhe são próximos. Não convidou o Butantan e a Fiocruz. Os presidentes da Câmara e do Senado podem estar sinceramente envolvidos na missão, o novo ministro pode melhorar o clima no governo, mas a verdade é que o presidente jamais vai liderar um bom plano de coordenação da crise. Porque ele não quer e não sabe.

A reunião de ontem no Planalto foi excludente. Bolsonaro escolheu a dedo os coadjuvantes do seu teatro. Não estava sendo sincero quando disse: “a vida em primeiro lugar”. E isso é possível garantir com base em todas declarações feitas durante um ano inteiro.


A ideia de união contra a crise não tem coerência mínima com o que o presidente fala e faz. Para citar apenas três atos dos últimos dias. Ele encontrou com um grupo de pessoas aglomeradas em frente ao Alvorada, para festejar seu aniversário. Distribuiu fatias de bolo e ameaças de golpe. Um dia depois, declarou que ninguém o havia convencido de que estava errado. Dias antes, havia entrado no Supremo com uma ação contra três governadores, propósito no qual fracassou.

A mudança do presidente é uma encenação. O novo chefe da Secom, o almirante Flávio Rocha, deu outra orientação para a desastrosa comunicação do presidente. Ter um militar, e da ativa, nesse posto é sinal de que as Forças Armadas aceitam se afundar mais um pouco nesse pântano que é o governo Bolsonaro. O primeiro ato dessa gestão foi a oferta sortida de mentiras em horário nobre. O pronunciamento de terça-feira é de fazer corar Pinóquio. “Somos incansáveis na luta contra o coronavírus”, disse o presidente. O mesmo do “e dai?”, do “vai comprar vacina na casa da sua mãe”, o que acusou a imprensa de “histeria" e promoveu incontáveis aglomerações. Bolsonaro nunca lutou contra o coronavírus. Ele agrediu os gestores públicos que o fizeram.

Ontem, era para mostrar que quer combater a pandemia, mas ele não resistiu. “Tratamos também da possibilidade do tratamento precoce, isso fica a cargo do ministro da Saúde, que respeita o direito e o dever do médico off label de tratar os infectados”. Deixando de lado a má construção da frase, o que fica claro é que tratou todos os presentes fora da bula. Não eram líderes de outros poderes. Eram figurantes aceitando o presidente prescrever o oposto do que recomendou, na terça, a Associação Médica Brasileira. Aliás, como demorou a AMB.

Tratamento precoce, como se sabe, é o codinome do charlatanismo, do kit de ineficácia comprovada. O médico Marcelo Queiroga, na primeira entrevista que concedeu como ministro, ajudou a aliviar o ambiente pesado. Só de não haver mais aquela fala sincopada de general dando bronca em recrutas já tornou melhor o clima na entrevista coletiva. Mesmo assim, ele continua tentando se equilibrar entre duas canoas. Se ficar com a ciência, vai ter conflito com o presidente, se continuar fazendo concessões ao presidente, estará em conflito com seu diploma de médico. E ele tem feito concessões. Ontem, criticou o lockdown, apesar de admitir que a crise, desta vez, pegou o país como um todo. “Quem quer lockdown?”, perguntou. A Fiocruz, por exemplo, órgão científico do Ministério da Saúde, recomenda que o país pare por 14 dias. No fim da entrevista, ficou claro que Queiroga não fora informado de mudanças na forma de registro dos óbitos.

A atual defesa da vacinação é diferente de tudo o que Bolsonaro falou contra as vacinas, como comprovam os muitos vídeos com suas falas grosseiras. Mesmo se dermos ao presidente o imerecido benefício da dúvida, é preciso lembrá-lo de que a falta de vacina neste momento se deve exclusivamente a ele e aos erros do seu governo. O Instituto Butantan teve que brigar para produzir as vacinas que hoje encontram os braços dos brasileiros. A Fiocruz teve que superar crises diplomáticas criadas pelo governo. Bolsonaro quer mudar a cena do crime e buscar um álibi que esconda um ano de erros fatais. Erros que nos trouxeram até aqui. Aos 300 mil mortos.

Saudades do Brasil

Houve um tempo em que sair com a camisa amarela pelas principais capitais do mundo atraía olhares de simpatia. E em que era quase certo conquistar um sorriso na primeira conversa, depois de responder à velha pergunta, ‘where are you from’?

O Brasil, ao longo dos anos, conquistou um cantinho no coração de muita gente espalhada pelo mundo. Seja pelo futebol, pela natureza, pela música, pela diversidade, pela democracia. Um país complexo e desigual, mas definitivamente atraente. Era confortável ser brasileiro no exterior.

Os sentimentos agora parecem confusos. Como se houvesse dificuldade em reconhecer aquele que, mesmo distante, parecia tão atraente. A imagem do país perdeu nitidez. O “novo Brasil”, da propaganda oficial, ainda causa estranhamento.

Os primeiros sinais da mudança, aos olhos do resto do mundo, vieram da Amazônia. A destruição gradual da floresta não chegava a ser uma novidade. Mas ela se ampliou tanto nos dois últimos anos que captou de imediato a atenção internacional.

Imagens de florestas em chamas foram distribuídas a todo o planeta, no momento em que cresce o debate sobre o aquecimento global. O dióxido de carbono que subia aos céus da Amazônia, com audiência global, contaminou a imagem do país logo no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro.

A postura do novo governo diante das queimadas contribuiu para aumentar o nível de preocupação com a destruição em andamento. De um lado, um ministro do Meio Ambiente que defendia “passar a boiada” de flexibilização da legislação de defesa ambiental. De outro, o recurso ao discurso de defesa – inclusive militar – da soberania brasileira na região.

Até então o Brasil havia adquirido uma reputação global de preservação ambiental. Havia se tornado presença obrigatória em todos os mais importantes debates globais sobre sustentabilidade e o futuro do planeta. Talvez fosse a única área em que o país havia se tornado um ator de primeira linha.

Pois a rápida expansão das queimadas colocou em dúvida as credenciais do Brasil. A primeira consequência da divulgação das imagens da Amazônia em chamas foi a suspensão, por tempo indeterminado, do acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia.

Pesou, é claro, a tendência protecionista do presidente francês Emmanuel Macron, interessado nos votos de produtores que se sentem ameaçados com a concorrência de produtos sul-americanos.

Mas a resistência do governo francês explica apenas parcialmente a suspensão do acordo. A exigência de produtos amigáveis ao meio ambiente é uma tendência crescente e inexorável dos próprios consumidores europeus. Uma tendência que, naturalmente, exercerá influência sobre os líderes do Velho Continente.

A segunda onda de estranhamento em relação ao Brasil ocorreu depois da divulgação do tamanho do estrago causado no país pela pandemia da Covid 19. Pouco a pouco o Brasil foi se transformando no epicentro da pandemia global.

A rápida expansão do vírus poderia, em outros momentos, ter apenas despertado manifestações de solidariedade em relação ao país. De fato, ocorreram essas manifestações. O que prevaleceu, porém, foi a percepção de que a multiplicação de mortes teve relação direta com a política adotada pelo governo central brasileiro diante da pandemia.

Bolsonaro conquistou manchetes de jornais em todo o mundo ao anunciar que não tomaria a vacina, ao recusar o uso de máscaras de proteção contra o vírus e ao reunir multidões de apoiadores com promessas de que manteria a economia em pleno funcionamento apesar das recomendações científicas de adoção de medidas de distanciamento social.

Também se tornaram notícias em todo o mundo as decisões do governo brasileiro de recusar ofertas de compra de vacinas, como a da Pfizer, e de negar entendimento – depois adotado – para a compra de vacinas do Instituto Butantan, por causa da origem chinesa da tecnologia usada em sua fabricação.

Os erros na condução de política de combate à pandemia foram tantos que a multiplicação do número de mortos acabou fechando fronteiras a brasileiros. Mesmo os que já estavam fora do país encontraram problemas. Não foram poucos os casos de brasileiros que se sentiram discriminados em outros países apenas por virem do país que se tornou epicentro da pandemia.

A terceira onda, mais recente, nasce a partir da percepção de que Bolsonaro pode colocar em risco a própria manutenção da democracia no Brasil. Democracia que tanto ajudou a nutrir o soft power brasileiro e que foi duramente reconquistada, após duas décadas do regime militar que o presidente tanto admira.

A percepção externa desse risco está ligada a declarações ambíguas do próprio Bolsonaro, que repetidas vezes menciona a expressão “estado de sítio” e que há poucos dias questionou se o país estaria pronto para “medidas duras” que ele poderia vir a adotar.

Ele também já alertou, após a invasão do Congresso dos Estados Unidos por fanáticos simpatizantes do ex-presidente Donald Trump, que alguma coisa “muito pior” poderia vir a ocorrer no Brasil, se não for adotado o voto impresso nas eleições de 2022 e o resultado for colocado em dúvida.

Bolsonaro gosta de falar de liberdade. Diz frequentemente, por exemplo, que os governadores que adotam medidas de distanciamento social, para combater a pandemia, estão limitando a liberdade de ir e vir dos cidadãos de seus estados.

Seu chanceler, Ernesto Araújo, segue o exemplo. O ministro falou de liberdade ao defender-se de acusações de que sua política externa teria feito do Brasil um pária internacional, especialmente depois da derrota de Trump.</p>

“O Brasil hoje fala de liberdade através do mundo”, disse Araújo a uma turma de novos diplomatas no Instituto Rio Branco. “Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos este pária”, desafiou.

Araújo poderia explicar seu conceito de liberdade, por exemplo, ao youtuber Felipe Neto, processado pelo governo, com base na antiga Lei de Segurança Nacional, por haver chamado de genocida o presidente Bolsonaro, em virtude de sua má gestão da pandemia.

Poderia conversar também sobre o tema com o sociólogo Tiago Costa Rodrigues e o microempresário Roberval Ferreira de Jesus, que espalharam outdoors em Palmas dizendo que o presidente “não vale um pequi roído”.

Ou ainda bater um papo sobre liberdade de expressão com o ex-governador Ciro Gomes, igualmente atingido por chamar Bolsonaro de genocida. Todos processados com base na Lei de Segurança Nacional, em vigor desde o regime militar.

Nada disso comove os mais fiéis seguidores do presidente, que continuam indo às ruas e à porta do Palácio da Alvorada em defesa do governo e, muitas vezes, de uma intervenção militar que cale de uma vez a oposição.

Esses fiéis seguidores saíram em passeata pelas avenidas de Brasília, no último fim de semana, em comemoração ao aniversário de Bolsonaro. Todos vestidos de verde e amarelo e carregando bandeiras nacionais.

Mais uma vez, imagens como essas soam intrigantes para quem observa o Brasil. Desde que o país se tornou uma potência no futebol, as bandeiras verdes e amarelas que se espalharam por estádios de todo o mundo sempre estiveram acompanhadas de sorrisos, música, alegria e descontração. Agora estão nas mãos de extremistas que desdenham medidas de distanciamento e flertam com a volta do autoritarismo.

Saudades do Brasil.