segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Pensamento do Dia

 


Ando com vontade de construir um muro à prova de textões que são a derrota do iluminismo

“Não se deixe distrair. Não se deixe perturbar. Não fique paralisado, nem seja engolido pelo caos que o presidente Trump e seus aliados têm propositalmente criado com a quantidade e a velocidade das ordens executivas; pelo esforço em desmantelar o governo federal; pelos ataques performáticos aos imigrantes, às pessoas trans e ao próprio conceito de diversidade; pela exigência de que os demais países aceitem os Estados Unidos como seus senhores; e pela sensação vertiginosa de que a Casa Branca pode dizer ou fazer qualquer coisa a qualquer momento. O objetivo disso tudo é manter o país na defensiva para que o presidente Trump possa seguir adiante na sua busca pelo máximo poder executivo, e para que ninguém possa deter a agenda audaciosa, equivocada e frequentemente ilegal promovida pela sua administração. Pelo amor de Deus, não desligue.”

Esta foi a abertura do principal editorial do The New York Times do sábado passado. Se parece alarmista, é porque é mesmo; e ainda é pouco diante do que está acontecendo lá em cima.

Eu li e achei que era comigo. Eu sou essa pessoa que está farta, que não aguenta mais o ritmo e o caráter dos acontecimentos, que quer distância do mundo e quer se desligar de tudo — não só do governo Trump e de suas consequências, mas também, e sobretudo, do que acontece no Brasil, onde a cada segundo dia o governo faz alguma coisa para botar mais lenha na fogueira e onde o nível de ódio das redes sociais está chegando ao limite do insuportável.

Aliás: é curioso observar que o ódio, nas redes sociais, atende por hate.

O hate tem um ar de bom moço que o ódio não tem; o hate é chique, o hate permite que os haters possam manter uma distância conveniente do seu próprio veneno e não precisem encarar o fato desabonador de que são pessoas odiosas. Hate dá muito engajamento.

“Eu sou contra linchamento” escrevem os alecrins dourados — e tome hate hate hate, lincha lincha lincha. Essa semana sobrou até para uma xícara da Tania Bulhões, primeiro caso de porcelana cancelada de que tenho notícia.

O New York Times tem razão quando implora aos leitores que não desliguem, porque o mal vence habitualmente pelo cansaço; mas é difícil manter a guarda. Não há Rivotril que baste para quem quer pensar fora da caixa ou remar contra a maré num mundo em que apenas acompanhar o noticiário, em silêncio, já tem um custo emocional tão alto.

Ando com vontade de seguir o ideário do próprio Trump e de construir um muro de todo o tamanho. Não em concreto, óbvio, até porque a decoração da casa não comporta essas coisas, mas um bom muro metafórico à prova de notificações, tuítes, textões e vídeos virais de cinco segundos que são a derrota do iluminismo.

Ou talvez quem sabe a solução seja uma abordagem mais enxuta. Em vez de tentar acompanhar o caos, posso me disciplinar e tentar me dedicar a uma única treta por semana, como quem assina um serviço de streaming, mas só vê uma série de cada vez para não se perder. Uma desgraça por dia, sem maratonas. E, nos fins de semana, só programação leve — um escândalo político do outro lado do mundo, um barraco entre celebridades, uma treta gourmet envolvendo quibe de jaca ou pão de fermentação natural.

Cadê aquela xícara?
Cora Rónai

Se alguém não deve 'esquecer nem perdoar', são os palestinos

Uma imagem vale mais que mil palavras: Centenas de detentos e prisioneiros palestinos que foram soltos no sábado são vistos de joelhos, na prisão, vestindo camisetas brancas com uma Estrela de Davi azul e as palavras "não esqueceremos nem perdoaremos". Israel, portanto, os forçou a se tornarem bandeiras ambulantes do sionismo em sua forma mais desprezível. Na semana passada, foram pulseiras com uma mensagem semelhante: "O 'povo eterno' nunca esquece".

Gideão Levy

Em tempos de intolerância, a palavra não oficial é vista como ameaça

Sábado, 23 de junho de 1934. O telefone toca na casa do poeta Bóris Pasternak em Moscou. É a secretária de Josef Stálin, líder supremo da União Soviética pós-revolucionária. O camarada queria dar uma palavrinha. A histórica ligação registrada pela KGB durou cerca de três minutos, e as perguntas formuladas por Stálin vieram de chofre, sem introito:

— O que você acha de Mandelstam?

— O que se fala sobre a prisão dele nos círculos literários?

Stálin se referia à detenção, um mês antes, do também poeta Osip Mandelstam. Autor de um ácido poema contra o líder, Mandelstam o recitara privadamente para um grupo de 14 intelectuais amigos — entre eles, Pasternak. Este último admirava o colega modernista, porém considerava desnecessária e perigosa para todos a crítica a Stálin. Pego de surpresa, o autor de “Doutor Jivago” e posteriormente Nobel de Literatura (1958) conseguiu apenas articular uma resposta genérica sobre o estilo literário de cada um, resposta essa de que se arrependeria o resto da vida:

— Nós somos diferentes, Camarada Stalin. Ele é modernista, enquanto eu sou de outra tendência. Nada posso lhe dizer sobre Mandelstam — respondeu.

— Só isso? Esse é o máximo de lealdade que você demonstra a um amigo? Você é um péssimo camarada, Camarada Pasternak — retorquiu Stálin antes de desligar.

O escritor ainda tentou se reconectar com o ditador para fazer reparos. Em vão. Stálin perdera interesse. Já sabia o que queria. Ademais, o número de telefone criado pela KGB para essa única chamada já não mais existia.

Esse é o tema do livro “Um ditador na linha” (Cia. das Letras, 2024), em que o autor albanês Ismail Kadaré analisa múltiplas versões do telefonema para refletir sobre a relação entre poder e política, totalitarismo e liberdade de expressão, ditador e poeta. Além da fonte primária — a gravação feita pela KGB —, existem outras 12 versões baseadas na memória do que intelectuais russos da época — como Anna Akhmátova, Ilya Ehrenburg e Isaiah Berlin — ouviram do próprio Pasternak.


Por que evocar esse episódio agora? Porque os tempos andam bicudos, e nunca é demais lembrar quanto o mundo atual precisa de um mínimo de retidão moral e intelectual de cada bípede capaz de pensar para além do próprio nariz. No auge da Segunda Guerra Mundial, o escritor americano John Steinbeck garantia a seu editor que todas as bondades e heroísmos do mundo haveriam de ressurgir, apenas para ser novamente derrotados. “Não é que o mal vá vencer”, escreveu ele. “Isso nunca acontecerá, o mal apenas não morre.”

Em tempos de intolerância galopante, a palavra não oficial (seja ela falada, escrita, cantada ou pensada) é vista como ameaça. E, uma vez farejada, é preciso higienizá-la, por subversiva. Levantamento recente do jornal The Washington Post detectou 662 exemplos de alteração no vocabulário de 14 agências federais sob Donald Trump, alterando a comunicação em 8 mil sites do governo. A palavra “diversidade” foi banida, não terá substituto, na esperança, talvez, de assim fazer desaparecer também a comunidade LGBT+, as diferenças de gênero, raça e cor. “Mudança climática” agora atende pelo nome de “resiliência climática”. “Direitos Humanos”, “aumento de desigualdades”, “promoção de justiça social” ou “violação de direitos civis” já estão na linha de tiro. O ideal imaginado de uma América grande, branca e macho?

Já se escreveu aqui que palavras são acontecimentos, elas fazem coisas, mudam coisas, transformam tanto quem as pronuncia como quem as ouve. Governos autoritários ao longo da História sempre procuraram encurtar o vocabulário oficial, simplificar ao máximo as palavras de ordem, os diktats, ucasses ou as ordens executivas de agora.

Em seu livro sobre a emergência de novos autocratas (“Autocracia, Inc.”), a jornalista Anne Applebaum cita um memorando interno do Partido Comunista Chinês intitulado “Sobre o estado atual da esfera ideológica”. O documento de 2013 listava os principais perigos a ser enfrentados pelo presidente Xi Jinping. No topo da lista vinha a “democracia constitucional ocidental”, seguida por “direitos humanos universais”, “independência da mídia”, “independência judicial” e “participação cívica”.

Passados 15 anos desde a circulação desse documento, a China de Xi Jinping já pode se concentrar noutras preocupações, pois, na toada atual, é o próprio Trump que parece estar empenhado em enterrar a democracia constitucional tal qual a conhecemos.

O amanhã dessa distopia em curso nos foi exibido dias atrás em cena no Salão Oval da Casa Branca. De pé e à vontade, envergando boné, capote preto e camiseta, estava a criatura Elon Musk, centro das atenções. Vez por outra ele levantava do chão sua indócil cria de 4 anos, cujo nome de batismo é X Æ A-12, para acomodá-lo nos ombros. Sentado e algo acabrunhado estava o 47º presidente dos Estados Unidos. Novos tempos.
Dorrit Harazim

Cápsula do tempo encontrada no planeta morto


Na primeira era, criamos deuses. Esculpimos-os em madeira; ainda havia madeira naquela época. Forjamos-os em metais brilhantes e os pintamos nas paredes dos templos. Eram deuses de muitos tipos, e deusas também. Às vezes eram cruéis e bebiam nosso sangue, mas também nos davam chuva e sol, ventos favoráveis, boas colheitas, animais férteis, muitos filhos. Um milhão de pássaros voavam sobre nós então, um milhão de peixes nadavam em nossos mares.

Nossos deuses tinham chifres em suas cabeças, ou luas, ou barbatanas, ou bicos de águia. Nós os chamávamos de Onipotentes, nós os chamávamos de Brilhante. Sabíamos que não éramos órfãos. Sentíamos o cheiro da terra e rolávamos nela; seus sucos corriam por nossos queixos.

2. Na segunda era, criamos o dinheiro. Esse dinheiro também era feito de metais brilhantes. Tinha duas faces: de um lado, uma cabeça decepada, a de um rei ou outra pessoa notável, do outro lado, algo mais, algo que nos daria conforto: um pássaro, um peixe, um animal peludo. Isso era tudo o que restava de nossos antigos deuses. O dinheiro era pequeno, e cada um de nós carregava um pouco dele todos os dias, o mais próximo possível da pele. Não podíamos comer esse dinheiro, usá-lo ou queimá-lo para nos aquecer; mas como que por mágica, ele podia ser transformado em tais coisas. O dinheiro era misterioso, e o admirávamos. Se você tivesse o suficiente, diziam, você seria capaz de voar.
Margaret Atwood

Dois em cada três israelitas abraçam a limpeza étnica. Pelo menos. Que fará a Europa?

Trump tirou a limpeza étnica do armário mal chegou à Casa Branca, e Israel está com ele. Não só Netanyahu, os seus avatares de extrema-direita e o espectro partidário em geral, mas também dois terços ou mais dos israelitas. É o que dizem as sondagens depois de o Presidente dos EUA anunciar uma “Riviera do Médio Oriente”, com a remoção dos palestinos de Gaza para sempre.

Na pesquisa do Canal 12 da TV israelita, 69% dos cidadãos apoiam o plano (apenas 18% se opõem a ele, 13% estão indecisos). Na pesquisa do Canal 13, o apoio é de 72%. Na pesquisa do Canal 14, sobe para 76%. Não há notícia de políticos israelitas se oporem. Até entre opositores do governo, o “plano” de Trump foi descrito como “interessante” ou “fora da caixa”. Esbarrei no título de um deputado (do Likud de Netanyahu) que seria contra realojar os palestinos no Egito e na Jordânia. Corri a ler: era contra realojar os palestinos… tão perto. Claro que entre a Groelândia e Elon Musk o céu não é o limite, vi até um cartoon com o foguetão a postos. Mas ainda nenhuma sondagem sobre Marte. Uma pesquisa do Jewish People Policy Institute pouco anterior à das TVs mostrou que 7 em cada 10 judeus israelitas querem “os árabes de Gaza realojados noutro país”. Aqui na Terra. Ainda.


Nos 80 anos da libertação de Auschwitz, o Estado fundado pelos sobreviventes do Holocausto apoia assim, largamente, a remoção de 2,3 milhões de palestinos. Chamando-lhe “emigração voluntária” ou “encorajamento à emigração”. Tal como chama “árabes” aos palestinos. Quando não “terroristas” ou “animais”.

Entretanto, nos EUA, 350 rabinos, intelectuais, artistas judeus compraram um anúncio de alto a baixo no New York Times de 13 de fevereiro: “Trump apelou à remoção de todos os palestinos de Gaza”, dizem em cima. Por baixo, uma caixa preta com grandes letras brancas a bold: “Judeus dizem NÃO à limpeza étnica!” E seis colunas de nomes (incluindo Naomi Klein, Tony Kushner, Joaquin Phoenix, Judith Butler). “O sonho de Hitler de tornar a Alemanha ‘Judenrein’, ‘limpa de judeus’ levou ao massacre do nosso povo”, resumiu o rabino Toba Spitzer. “Sabemos tão bem como qualquer pessoa a violência a que este tipo de fantasias leva.”

Onde está o anúncio equivalente em Israel? Onde estão os rabinos, os intelectuais, os artistas? E os médicos, os professores, os estudantes, os jovens, na sua grande maioria? Os letrados de Israel na mesma semana em que seis polícias de Jerusalém que não falavam inglês nem árabe fizeram um raide em duas lojas da Educational Bookshop, a mais amada livraria de Jerusalém Oriental Ocupada, onde, tal como milhares de leitores de todo o mundo, comprei incontáveis livros. E não só os polícias confiscaram mais de 100 livros em árabe ou inglês apenas porque tinham algum sinal da Palestina, como prenderam os irmãos livreiros Ahmed e Mahmoud Muna e fizeram-nos penar duas noites numa cadeia suja, apesar de uma multidão ter acorrido em protesto, incluindo diplomatas, e os israelitas (incluindo alguns na imprensa) que se tornaram menos do que uma minoria: a excepção.

Ali, aos pés das muralhas de Jerusalém, esse raide de domingo foi literalmente a polícia do Povo do Livro a atacar livros, vários espezinhados pelo chão. O que se segue? As brigadas do Fahrenheit 451? Fogueiras? Onde está o povo que durante séculos confiou nos livros o futuro, lendo-os, escrevendo-os? Que confiou neles para não morrer.

Eu tinha visto, não muito antes, o vídeo de uma biblioteca pública em Gaza destruída pelas bombas. Livros que se retiravam como pedaços de estuque, irreconhecíveis. Trazidos pouco a pouco por Mosab Abu Toha, um poeta que saiu de Gaza há meses e tem sido a (rara) voz palestina nas páginas da New Yorker, além dos poemas que publicou. Uma confiança na poesia, dita e escrita, e nos livros em geral, que vem das mais antigas tradições árabes e acompanha os palestinos como nunca desde a Nakba de 1948. Desde que isso se tornou parte da resistência: uma forma de estar vivo que não acaba.
Alexandra Lucas Coelho