domingo, 31 de julho de 2022
Ditaduras moleculares
Como a imagem num holograma, que tem a informação do todo em cada uma de suas partes, pequenos relatos individuais não raramente expõem problemas de grande magnitude social. Assim é que um jovem universitário, morador de uma das grandes favelas cariocas, embora exultante pela oportunidade que lhe oferece o sistema público, me faz saber de seus percalços para cumprir tarefas. Há primeiro a distância e a precariedade do transporte.
Há, sim, as vantagens híbridas do online. E aí se revela outra ordem de dificuldades, pois a rede não funciona bem onde ele mora, e não há reclamação ou alternativa possíveis: o serviço é controlado por traficantes.
Aí está o núcleo da questão. Num complexo de milhares de habitantes, todos são obrigados a comprar ali mesmo botijão de gás, pão, imagem de televisão e internet. Alguns desses produtos podem sair mais caros do que em outro comércio. "Obrigação" não é nenhum eufemismo para a conveniência da proximidade: não há livre escolha fora do poder local. O Estado, com seus aparatos e sua retórica legalista, é apenas uma ficção sem interesse.
A realidade cotidiana de dois milhões de pessoas em partes diversas do território carioca, ocupado em mais de 50% por forças ilegalistas, é a de uma ditadura "molecular’, mais afeita à execução sumária do que à tortura.
A ostensiva ascensão territorial de bandidos numa cidade emblemática como o Rio de Janeiro é um fenômeno colateral à polarização entre o estatismo da ditadura militar e o liberalismo político subsequente, que aumenta a ambiguidade do papel do Estado.
É sintoma grave da falência do Estado moderno, entendido como o complexo institucional que faz funcionar o governo de uma sociedade territorialmente definida. Na disfuncionalidade desse conceito, inexiste qualquer ordem que possa ser considerada política, ou seja, constitutiva de cidadania e de vida democrática. E não se trata de questão apenas local, já que o modelo tráfico-miliciano está sendo replicado em outras regiões, a exemplo da Amazônia, com vínculos transnacionais. É interna a ameaça ao Estado-Nação brasileiro.
Tornou-se vã a retórica da democratização ante o barbarismo da extrema direita, que redefiniu pelo crime a ideia de "cesta básica": fuzil e pistola em vez de alimentos. Mas também salta aos olhos o desaparelhamento conceitual da esquerda para dar conta da profundidade dessa crise, pois o campo democrático jamais conseguiu formular uma política de segurança pública. No entanto, a restauração civil do país exige pensamento e ação compatíveis com as novas correlações de forças no território nacional.
Exige, para começar, combate ao fisiologismo autofágico e reconstrução da política.
Há, sim, as vantagens híbridas do online. E aí se revela outra ordem de dificuldades, pois a rede não funciona bem onde ele mora, e não há reclamação ou alternativa possíveis: o serviço é controlado por traficantes.
Aí está o núcleo da questão. Num complexo de milhares de habitantes, todos são obrigados a comprar ali mesmo botijão de gás, pão, imagem de televisão e internet. Alguns desses produtos podem sair mais caros do que em outro comércio. "Obrigação" não é nenhum eufemismo para a conveniência da proximidade: não há livre escolha fora do poder local. O Estado, com seus aparatos e sua retórica legalista, é apenas uma ficção sem interesse.
A realidade cotidiana de dois milhões de pessoas em partes diversas do território carioca, ocupado em mais de 50% por forças ilegalistas, é a de uma ditadura "molecular’, mais afeita à execução sumária do que à tortura.
A ostensiva ascensão territorial de bandidos numa cidade emblemática como o Rio de Janeiro é um fenômeno colateral à polarização entre o estatismo da ditadura militar e o liberalismo político subsequente, que aumenta a ambiguidade do papel do Estado.
É sintoma grave da falência do Estado moderno, entendido como o complexo institucional que faz funcionar o governo de uma sociedade territorialmente definida. Na disfuncionalidade desse conceito, inexiste qualquer ordem que possa ser considerada política, ou seja, constitutiva de cidadania e de vida democrática. E não se trata de questão apenas local, já que o modelo tráfico-miliciano está sendo replicado em outras regiões, a exemplo da Amazônia, com vínculos transnacionais. É interna a ameaça ao Estado-Nação brasileiro.
Tornou-se vã a retórica da democratização ante o barbarismo da extrema direita, que redefiniu pelo crime a ideia de "cesta básica": fuzil e pistola em vez de alimentos. Mas também salta aos olhos o desaparelhamento conceitual da esquerda para dar conta da profundidade dessa crise, pois o campo democrático jamais conseguiu formular uma política de segurança pública. No entanto, a restauração civil do país exige pensamento e ação compatíveis com as novas correlações de forças no território nacional.
Exige, para começar, combate ao fisiologismo autofágico e reconstrução da política.
Bolsonaro é blefe ou ameaça séria?
É voz corrente que Jair Bolsonaro tenta aliciar uma parte dos militares e das polícias estaduais para um golpe de Estado, mas desatinar é uma coisa, levar o desatino à prática é outra.
Tal desvario é levado a sério por muitas pessoas lúcidas, e antes isso, pois, como sabemos, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Comparar o Brasil de hoje com a Alemanha da primeira metade do século passado não faz muito sentido, mas vale a pena registrar que a revista Foreign Affairs, numa recente edição retrospectiva, mostrou que vários jornalistas de primeira grandeza ainda se recusavam a crer que Hitler fosse mesmo levar suas alucinações à prática quando seu regime totalitário já estava praticamente implantado.
No final de 1944, cerca de 100 mil opositores do nacional-socialismo, entre os quais comunistas, social-democratas e liberais, além de judeus e homossexuais, começavam a ser amontoados em campos de concentração. A pseudociência da “eugenia” começava a ser posta em prática mediante assassinatos e castração de indivíduos pertencentes a “raças inferiores”, como os ciganos. Contudo, em que pese aquele monstruoso precedente, não creio que Bolsonaro ponha em prática suas elucubrações golpistas, ou que permaneça sequer um mês no poder, caso o faça.
Embora mais vitriólico que a média dos populistas, ele é isto: um simples populista. Como todos dessa categoria, ele ostenta uma mescla de traços contraditórios. De um lado, um certo senso de realidade, que lhe permite espertamente atingir posições de poder; do outro, um apego a mitos, blefes e bravatas, que cedo ou tarde leva seus anseios à bancarrota. O que não ostentam, porque dele carecem, é ânimo para governar com seriedade. Todos nos lembramos de Jânio Quadros. Eleito presidente em 1960, ele renunciou oito meses depois acreditando no mito por ele mesmo criado de que “forças ocultas” o estariam impedindo de governar. Imaginou que o povo o carregaria nos ombros de volta ao palácio. Ficou a ver navios. Bolsonaro está cumprindo um roteiro semelhante. Se perder, como é provável, vai esgrimir a asnice da fraude eleitoral, sua versão das “forças ocultas” de Jânio Quadros.
O que não podemos é subestimar o estrago que políticos desse tipo podem causar ao País. Embora pessoalmente eu não creia que Bolsonaro vá muito longe, ou que consiga se manter na Presidência se de fato recorrer ao golpe, não podemos descartar a possibilidade de suas manias arrastarem o País para um buraco. Daí a conveniência de ponderarmos algumas das forças em tese capazes de protagonizar ações relevantes, de apoio ou resistência ao golpe anunciado. Refiro-me, em especial, (1) aos partidos políticos, (2) ao Congresso Nacional e (3) à opinião pública, incluindo nesta última a imprensa, instituições da chamada “sociedade civil” e, no limite, manifestações de massa.
Os partidos políticos podem ser descartados, pela singela razão de que já não os temos. Sabemos todos que nossa estrutura partidária praticamente se liquefez na eleição de 2018. Naquele ano, 24 siglas conseguiram acesso à Câmara federal, a maior delas detendo cerca de 15% das cadeiras – cifras suficientes para assegurarmos por larga margem o título de campeão mundial da fragmentação partidária, que, aliás, nos pertence há muito tempo. Mas a fragmentação é apenas uma parte da história. Ferreamente controladas por oligarquias, tais organizações não se renovam, não desenvolvem perfis programáticos e, não por acaso, carecem por completo de confiabilidade.
Precisamente porque nossos partidos são o que são, o Congresso é um desconexo aglomerado de especialistas em trocas clientelistas de apoio por cargos no Executivo. Trocam qualquer coisa por qualquer coisa, como vimos poucas semanas atrás, quando o Senado, quase por unanimidade – ficando o senador José Serra como uma solitária exceção –, atropelou as mais comezinhas regras do jogo eleitoral a fim de turbinar com R$ 41 bilhões a campanha do sr. Bolsonaro. Quem quiser mapear a atual anatomia do Legislativo, forçosamente terá de começar pela entidade que o domina, o Centrão. Se Jair Bolsonaro tivesse êxito em seu propalado intento de golpear o regime democrático, ele faria exatamente o que já vem fazendo, ou seja, delegará a essa pitorescamente denominada figura a tarefa de acomodar seus acólitos na máquina do Estado e de mandar a fatura aos contribuintes.
Contudo, errará por larga margem quem supuser que Bolsonaro ou qualquer outro interessado em solapar as instituições atingirá seu objetivo nadando de braçadas. Salta aos olhos que a sociedade está despertando do estado abúlico em que afundou desde os tempos da sra. Dilma Rousseff, senão antes. Entidades importantes como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a Academia Paulista de Letras já começaram a soar o alerta. Muitas outras logo seguirão pelo mesmo caminho. Ou seja, podemos ser arrastados para um desastre, mas não por desatenção ou por algum grave erro de avaliação, como aconteceu na Alemanha.
Tal desvario é levado a sério por muitas pessoas lúcidas, e antes isso, pois, como sabemos, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. Comparar o Brasil de hoje com a Alemanha da primeira metade do século passado não faz muito sentido, mas vale a pena registrar que a revista Foreign Affairs, numa recente edição retrospectiva, mostrou que vários jornalistas de primeira grandeza ainda se recusavam a crer que Hitler fosse mesmo levar suas alucinações à prática quando seu regime totalitário já estava praticamente implantado.
No final de 1944, cerca de 100 mil opositores do nacional-socialismo, entre os quais comunistas, social-democratas e liberais, além de judeus e homossexuais, começavam a ser amontoados em campos de concentração. A pseudociência da “eugenia” começava a ser posta em prática mediante assassinatos e castração de indivíduos pertencentes a “raças inferiores”, como os ciganos. Contudo, em que pese aquele monstruoso precedente, não creio que Bolsonaro ponha em prática suas elucubrações golpistas, ou que permaneça sequer um mês no poder, caso o faça.
Embora mais vitriólico que a média dos populistas, ele é isto: um simples populista. Como todos dessa categoria, ele ostenta uma mescla de traços contraditórios. De um lado, um certo senso de realidade, que lhe permite espertamente atingir posições de poder; do outro, um apego a mitos, blefes e bravatas, que cedo ou tarde leva seus anseios à bancarrota. O que não ostentam, porque dele carecem, é ânimo para governar com seriedade. Todos nos lembramos de Jânio Quadros. Eleito presidente em 1960, ele renunciou oito meses depois acreditando no mito por ele mesmo criado de que “forças ocultas” o estariam impedindo de governar. Imaginou que o povo o carregaria nos ombros de volta ao palácio. Ficou a ver navios. Bolsonaro está cumprindo um roteiro semelhante. Se perder, como é provável, vai esgrimir a asnice da fraude eleitoral, sua versão das “forças ocultas” de Jânio Quadros.
O que não podemos é subestimar o estrago que políticos desse tipo podem causar ao País. Embora pessoalmente eu não creia que Bolsonaro vá muito longe, ou que consiga se manter na Presidência se de fato recorrer ao golpe, não podemos descartar a possibilidade de suas manias arrastarem o País para um buraco. Daí a conveniência de ponderarmos algumas das forças em tese capazes de protagonizar ações relevantes, de apoio ou resistência ao golpe anunciado. Refiro-me, em especial, (1) aos partidos políticos, (2) ao Congresso Nacional e (3) à opinião pública, incluindo nesta última a imprensa, instituições da chamada “sociedade civil” e, no limite, manifestações de massa.
Os partidos políticos podem ser descartados, pela singela razão de que já não os temos. Sabemos todos que nossa estrutura partidária praticamente se liquefez na eleição de 2018. Naquele ano, 24 siglas conseguiram acesso à Câmara federal, a maior delas detendo cerca de 15% das cadeiras – cifras suficientes para assegurarmos por larga margem o título de campeão mundial da fragmentação partidária, que, aliás, nos pertence há muito tempo. Mas a fragmentação é apenas uma parte da história. Ferreamente controladas por oligarquias, tais organizações não se renovam, não desenvolvem perfis programáticos e, não por acaso, carecem por completo de confiabilidade.
Precisamente porque nossos partidos são o que são, o Congresso é um desconexo aglomerado de especialistas em trocas clientelistas de apoio por cargos no Executivo. Trocam qualquer coisa por qualquer coisa, como vimos poucas semanas atrás, quando o Senado, quase por unanimidade – ficando o senador José Serra como uma solitária exceção –, atropelou as mais comezinhas regras do jogo eleitoral a fim de turbinar com R$ 41 bilhões a campanha do sr. Bolsonaro. Quem quiser mapear a atual anatomia do Legislativo, forçosamente terá de começar pela entidade que o domina, o Centrão. Se Jair Bolsonaro tivesse êxito em seu propalado intento de golpear o regime democrático, ele faria exatamente o que já vem fazendo, ou seja, delegará a essa pitorescamente denominada figura a tarefa de acomodar seus acólitos na máquina do Estado e de mandar a fatura aos contribuintes.
Contudo, errará por larga margem quem supuser que Bolsonaro ou qualquer outro interessado em solapar as instituições atingirá seu objetivo nadando de braçadas. Salta aos olhos que a sociedade está despertando do estado abúlico em que afundou desde os tempos da sra. Dilma Rousseff, senão antes. Entidades importantes como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e a Academia Paulista de Letras já começaram a soar o alerta. Muitas outras logo seguirão pelo mesmo caminho. Ou seja, podemos ser arrastados para um desastre, mas não por desatenção ou por algum grave erro de avaliação, como aconteceu na Alemanha.
Tem gente com fome
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu.
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuu.
Solano Trindade
A teoria do ponto X
“Precisamos de mais desigualdade, não menos”, disse o empresário Winston Ling, dias atrás. A frase deu o que falar e soa muito estranha em um país marcado pela miséria e pelo capitalismo de compadrio. O que imagino que ele tenha tentado dizer é que, em uma economia aberta de mercado, com forte proteção a direitos, a chance de ganhar mais funciona como um prêmio para o trabalho e a inovação. E mais: que o mercado não é um jogo de soma zero, mas um jogo cooperativo. Steve Jobs ficou bilionário porque inventou um computador pessoal, naquela garagem em Palo Alto, e foi capaz de melhorar a vida de milhões de pessoas. Elon Musk só aparece na capa da Forbes porque uma montanha de gente acha que melhora de vida comprando um Tesla ou ações de suas empresas. William Nordhaus, analisando avanços tecnológicos na segunda metade do século XX, estimou que o empresário inovador captura pouco mais de 2% do valor que gera na sociedade. Podemos resmungar por aí achando que tem uma bruxa má, tipo Robin Hood às avessas, distribuindo o dinheiro das pessoas a um punhado de bilionários inúteis. Mas não é assim, ao menos em um mercado aberto, que as coisas funcionam.
Há uma penca de coisas a esclarecer nesse tema. A primeira delas é a tradicional confusão entre desigualdade e pobreza. Uma das críticas que Ling recebeu veio de um deputado socialista. “Tem brasileiro na fila do osso”, disse ele, “e vem empresário bolsonarista dizer que precisamos de mais desigualdade.” O deputado acertou e errou ao mesmo tempo. Ele atira na desigualdade, mas acerta na pobreza. O que dá um sentido ético a sua crítica é o fato de que as pessoas estão “na fila do osso”. Se a frase fosse “o brasileiro sem poder ir pra Disney e o empresário…”, soaria não mais do que uma piada. É a tese clássica de Harry Frankfurt, o filósofo de Princeton: o que nos move eticamente não é a diferença entre a classe média e os mais ricos, e muito menos entre os ricos e muito ricos. É a pobreza. O ponto é que falar de pobreza é meio chato, e pouca gente parece de fato preocupada com o problema. Bacana é xingar os “super-ricos”, os banqueiros e “faria limers”, em que pese sempre desconfio que esse discurso também seja meio que de mentirinha.
No período que vai do final da Guerra Fria aos dias atuais, assistiu-se a um trade-off. A desigualdade cresceu, mas 1,1 bilhão de pessoas saíram da miséria, globalmente, segundo o Banco Mundial. Na América Latina, a extrema pobreza foi reduzida à metade, e a desigualdade, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,54 para 0,47, entre o início dos anos 90 e a segunda metade da década passada. De modo geral, assistimos ao que o economista Richard Baldwin chamou de “grande convergência”, isto é, o processo em que, pela primeira vez na história moderna, a riqueza agregada dos países em desenvolvimento ultrapassou a dos países avançados. Tudo em razão da transferência maciça de investimentos, negócios e empregos dos países centrais para países periféricos. Isso penalizou indústrias obsoletas e destruiu empregos na classe média trabalhadora de países avançados. Muita gente chiou com o fechamento de fábricas da Nike e de grandes montadoras nos Estados Unidos. Donald Trump fez seu proselitismo falando sobre isso. O interessante é observar o que fizeram os países que pegaram o bonde da redução drástica da pobreza nesse período. Sua receita foi simples: abertura econômica, regras de mercado, investimento em tecnologia e educação. A abertura chinesa é um exemplo disso. Em pouco mais de três décadas, o país conseguiu reduzir a pobreza extrema em 90%. E é inteiramente inútil perguntar se as pessoas escolheriam viver na China “igualitária” da era Mao ou na China atual, com seus 600 bilionários na lista da Forbes.
Um equívoco comum no debate sobre a desigualdade é concentrar seu foco no aspecto renda. Com isso se perde um fato notável de nossa época, que é a contínua aproximação dos padrões de vida. O economista Nicholas Eberstadt mostra como a expectativa de vida média, no plano global, mais do que dobrou ao longo do século XX, e a desigualdade nesse âmbito caiu cerca de dois terços. O mesmo aconteceu com a educação. No imediato pós-guerra até os dias atuais, a população adulta sem escolaridade caiu de 50% para 15%. De novo, temos o trade-off. A disparidade de renda aumenta, em algumas regiões, mas o acesso a bens básicos, como a educação, se universaliza. O mesmo se dá com bens de consumo básicos. Nos anos 30, no Brasil, custava sessenta salários mínimos para comprar uma geladeira. Hoje você compra uma boa geladeira por dois salários, e o IBGE nos mostra que 95% das casas no país já têm a sua.
Outro tema fascinante nesse debate é o que gosto de chamar de “teoria do ponto X”. A ideia é a de que a desigualdade, a partir de um certo ponto, é destrutiva para a sociedade e para a democracia. Piketty foi um divulgador dessa tese. “A desigualdade”, diz ele, “a partir de um certo ponto” é injusta e compromete valores democráticos. A pergunta óbvia a fazer é: que ponto exatamente seria esse? Qual o padrão “correto” de “concentração” da riqueza no top 1%? Quem teria a prerrogativa de decidir essas coisas? O Congresso? Seria uma “escolha da sociedade”, como escuto vez ou outra, de gente bacana fazendo de conta que não são os políticos, em Brasília, que decidem essas coisas.
É perfeitamente plausível que se decida, inclusive no plano constitucional, que as pessoas em situação de vulnerabilidade terão direito a um mínimo social. É o que fazem, no Brasil, o BPC, que garante um salário mínimo a pessoas vulneráveis com mais de 65 anos, e o Auxílio Brasil. Coisa inteiramente diferente é acreditar na sabedoria do mundo político para regular a distribuição da renda na grande sociedade. É aí que aparece a bruxa má. Mesmo dispondo da maior carga tributária da América Latina, foi de 0,26% do PIB a taxa de investimento direto do governo federal no ano passado. Um estudo do Banco Mundial mostrou que 75% do gasto social, no Brasil, é “pró-ricos”, em regra capturado pela burocracia pública. De fato, temos um Robin Hood às avessas circulando por aí, e seria interessante prestar um pouco mais de atenção em como ele funciona.
Em 1800, pouco mais de 80% da humanidade vivia na miséria. Isso caiu a 44% no fim dos anos 80, mostra David Rosnick, e nas três décadas seguintes tudo se acelerou, com uma redução para perto de 10% da população global. A história desse sucesso está aí, a nossa disposição, para aprender: abertura econômica, regras de mercado, direitos iguais, proteção à propriedade, aposta na tecnologia e na educação. Um pacote que Daron Acemoglu e James Robinson chamaram de “instituições inclusivas’. Tudo distante das teorias do “ponto X”, e tudo ao contrário do que a infinita conversa-fiada ideológica pregou, e continua pregando, durante todos esses anos. Já devíamos estar vacinados, mas infelizmente não estamos, e é aí que reside, no fim das contas, nosso maior desafio.
Há uma penca de coisas a esclarecer nesse tema. A primeira delas é a tradicional confusão entre desigualdade e pobreza. Uma das críticas que Ling recebeu veio de um deputado socialista. “Tem brasileiro na fila do osso”, disse ele, “e vem empresário bolsonarista dizer que precisamos de mais desigualdade.” O deputado acertou e errou ao mesmo tempo. Ele atira na desigualdade, mas acerta na pobreza. O que dá um sentido ético a sua crítica é o fato de que as pessoas estão “na fila do osso”. Se a frase fosse “o brasileiro sem poder ir pra Disney e o empresário…”, soaria não mais do que uma piada. É a tese clássica de Harry Frankfurt, o filósofo de Princeton: o que nos move eticamente não é a diferença entre a classe média e os mais ricos, e muito menos entre os ricos e muito ricos. É a pobreza. O ponto é que falar de pobreza é meio chato, e pouca gente parece de fato preocupada com o problema. Bacana é xingar os “super-ricos”, os banqueiros e “faria limers”, em que pese sempre desconfio que esse discurso também seja meio que de mentirinha.
No período que vai do final da Guerra Fria aos dias atuais, assistiu-se a um trade-off. A desigualdade cresceu, mas 1,1 bilhão de pessoas saíram da miséria, globalmente, segundo o Banco Mundial. Na América Latina, a extrema pobreza foi reduzida à metade, e a desigualdade, medida pelo índice de Gini, caiu de 0,54 para 0,47, entre o início dos anos 90 e a segunda metade da década passada. De modo geral, assistimos ao que o economista Richard Baldwin chamou de “grande convergência”, isto é, o processo em que, pela primeira vez na história moderna, a riqueza agregada dos países em desenvolvimento ultrapassou a dos países avançados. Tudo em razão da transferência maciça de investimentos, negócios e empregos dos países centrais para países periféricos. Isso penalizou indústrias obsoletas e destruiu empregos na classe média trabalhadora de países avançados. Muita gente chiou com o fechamento de fábricas da Nike e de grandes montadoras nos Estados Unidos. Donald Trump fez seu proselitismo falando sobre isso. O interessante é observar o que fizeram os países que pegaram o bonde da redução drástica da pobreza nesse período. Sua receita foi simples: abertura econômica, regras de mercado, investimento em tecnologia e educação. A abertura chinesa é um exemplo disso. Em pouco mais de três décadas, o país conseguiu reduzir a pobreza extrema em 90%. E é inteiramente inútil perguntar se as pessoas escolheriam viver na China “igualitária” da era Mao ou na China atual, com seus 600 bilionários na lista da Forbes.
Um equívoco comum no debate sobre a desigualdade é concentrar seu foco no aspecto renda. Com isso se perde um fato notável de nossa época, que é a contínua aproximação dos padrões de vida. O economista Nicholas Eberstadt mostra como a expectativa de vida média, no plano global, mais do que dobrou ao longo do século XX, e a desigualdade nesse âmbito caiu cerca de dois terços. O mesmo aconteceu com a educação. No imediato pós-guerra até os dias atuais, a população adulta sem escolaridade caiu de 50% para 15%. De novo, temos o trade-off. A disparidade de renda aumenta, em algumas regiões, mas o acesso a bens básicos, como a educação, se universaliza. O mesmo se dá com bens de consumo básicos. Nos anos 30, no Brasil, custava sessenta salários mínimos para comprar uma geladeira. Hoje você compra uma boa geladeira por dois salários, e o IBGE nos mostra que 95% das casas no país já têm a sua.
Outro tema fascinante nesse debate é o que gosto de chamar de “teoria do ponto X”. A ideia é a de que a desigualdade, a partir de um certo ponto, é destrutiva para a sociedade e para a democracia. Piketty foi um divulgador dessa tese. “A desigualdade”, diz ele, “a partir de um certo ponto” é injusta e compromete valores democráticos. A pergunta óbvia a fazer é: que ponto exatamente seria esse? Qual o padrão “correto” de “concentração” da riqueza no top 1%? Quem teria a prerrogativa de decidir essas coisas? O Congresso? Seria uma “escolha da sociedade”, como escuto vez ou outra, de gente bacana fazendo de conta que não são os políticos, em Brasília, que decidem essas coisas.
É perfeitamente plausível que se decida, inclusive no plano constitucional, que as pessoas em situação de vulnerabilidade terão direito a um mínimo social. É o que fazem, no Brasil, o BPC, que garante um salário mínimo a pessoas vulneráveis com mais de 65 anos, e o Auxílio Brasil. Coisa inteiramente diferente é acreditar na sabedoria do mundo político para regular a distribuição da renda na grande sociedade. É aí que aparece a bruxa má. Mesmo dispondo da maior carga tributária da América Latina, foi de 0,26% do PIB a taxa de investimento direto do governo federal no ano passado. Um estudo do Banco Mundial mostrou que 75% do gasto social, no Brasil, é “pró-ricos”, em regra capturado pela burocracia pública. De fato, temos um Robin Hood às avessas circulando por aí, e seria interessante prestar um pouco mais de atenção em como ele funciona.
Em 1800, pouco mais de 80% da humanidade vivia na miséria. Isso caiu a 44% no fim dos anos 80, mostra David Rosnick, e nas três décadas seguintes tudo se acelerou, com uma redução para perto de 10% da população global. A história desse sucesso está aí, a nossa disposição, para aprender: abertura econômica, regras de mercado, direitos iguais, proteção à propriedade, aposta na tecnologia e na educação. Um pacote que Daron Acemoglu e James Robinson chamaram de “instituições inclusivas’. Tudo distante das teorias do “ponto X”, e tudo ao contrário do que a infinita conversa-fiada ideológica pregou, e continua pregando, durante todos esses anos. Já devíamos estar vacinados, mas infelizmente não estamos, e é aí que reside, no fim das contas, nosso maior desafio.
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