quinta-feira, 24 de março de 2022

Bolsolão para principiantes

A palavra já existe há mais de um ano, mas ainda não tinha pegado. Volta agora com tudo: Bolsolão. O último —até este momento— escândalo de corrupção do governo Bolsonaro consagrará o termo, primo-irmão de dois anteriores que já constam dos dicionários, o mensalão e o petrolão. Neste momento, o Bolsolão está sendo protagonizado por dois ou três vigaristas amigos do presidente, acusados de desviar o dinheiro da merenda e das bolsas de estudos para fins outros. Mas o elenco promete aumentar —ou você acha que o único ministério que Bolsonaro reduziu a balcão de negócios é o da Educação?


À primeira vista, o Bolsolão é o esquema de sempre: farta distribuição do dinheiro público, dentro ou fora do Orçamento, ao alcance ou não do TCU, para compra de apoio político; cobrança de propina, às vezes ao peso de 1 kg de ouro; importação de produtos a preços hiperfaturados, como as vacinas sob Pazuello; prática imoral de lobby; obras sem licitação; vista grossa na fiscalização; e outros negócios de ocasião a cargo de gabinetes paralelos, abertos a pessoas estranhas ao serviço, mas íntimas do Planalto. A diferença é que, neste governo, uma parte das tramoias é feita em nome de Deus. A outra está à sombra dos órgãos de controle da União, todos na mão de Bolsonaro.

O Bolsolão já parece de tal monta que o célebre esquema da rachadinha, de pai para filho desde a primeira eleição de Bolsonaro para vereador em 1989, ainda será um dia chamada de Bolsolinho.

Há séculos na praça, estou habituado a ver o Brasil ser roubado, assaltado, defraudado, esbulhado e espoliado por espertos de todas as cores políticas. Mas nunca por gente de tão baixo nível quanto os que cercam Bolsonaro. Vamos torcer apenas para que, diante do que eles podem estar se preparando para nos roubar, antes queiram apenas o dinheiro.

Enquanto isso, bem-vindo, Bolsolão, ao Dicionário Brasileiro da Corrupção.

A confusão que favorece a tirania

Num artigo publicado no dia 11 de março no The Washington Post, a colunista Margaret Sullivan expôs com clareza singular uma das táticas mais insidiosas dos líderes autoritários. Especialista em mídia e imprensa, temas de suas colunas no Post, a jornalista demonstra que, para autocratas como Vladimir Putin, há algo de mais valioso do que fazer com que as pessoas acreditem neles: este algo de mais valioso é fazer com que as pessoas não acreditem em mais nada e em mais ninguém. Resumida assim, a fórmula parece um contrassenso. Como, afinal de contas, um tirano pode arregimentar apoio popular, se não faz por merecer a confiança irrestrita das multidões?

Antes de responder, lembremos que nós, aqui no Brasil, conhecemos de perto esse tipo de mando. Neste ponto, vamos nos afastar da linha de argumentação de Margaret Sullivan. Olhemos para o nosso país e vamos entender o contrassenso. Não temos aqui, nos trópicos, um sósia perfeito de Vladimir Putin, mas é inegável que anda nestas terras um personagem que almeja virar Putin quando crescer. Pois então: como é que esses sujeitos agregam seguidores?


Agora a resposta é fácil. Eles não ganham corações selvagens e mentes turvas porque se apresentem como cidadãos confiáveis, íntegros e de boafé. Definitivamente, não é assim que eles se apresentam. Eles mentem, e não precisam esconder que mentem. Eles mentem, todo mundo sabe que eles mentem, mas, como suas mentiras – às vezes cínicas, às vezes perversas – ostentam um potencial destruidor, é com eles mesmos que as falanges ressentidas cerram fileiras.

Líderes como Putin (e seus imitadores) não precisam ser dignos de crédito irrestrito. Eles não precisam construir laços baseados na verdade e na honradez da palavra – basta que se mostrem brutais o suficiente para destruir todas as instituições do saber e do conhecimento que florescem na democracia (como a universidade, a ciência, a justiça, as artes e a imprensa), pois, como não se cansam de repetir – e nisso seus adoradores acreditam fervorosamente –, essas instituições não passam de um amontoado de mentiras. Mentindo em nome de combater a mentira, eles arrebanham seus fiéis.

Para os tiranos, a prioridade não é conquistar a credulidade dos incautos, mas fazer com que o maior número de incautos não deposite mais um pingo de confiança em nenhuma instituição da democracia. Vieram para destruir. Seus apelos mais inflamados repousam não em projetos afirmativos, positivos, construtivos, mas na promessa de devastar qualquer resistência que encontrarem pela frente. É verdade que esses apelos costumam vir camuflados em retóricas aparentemente edificantes em torno de entidades mágicas como a “Pátria”, a “Grande Rússia”, “Deus”, “família” ou qualquer Shangri-lá que simbolize idílio ou virtude (sua fantasia de futuro é sempre a restauração de uma glória mística e militar que teria existido no passado), mas, no fundo, o que leva as sociedades a se entregarem a estes demagogos da força bruta é a paixão por dizimar o que, na democracia, tem parte com a verdade.

Voltemos, agora, à jornalista Margaret Sullivan. Ela nos lembra que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) já havia nos alertado, numa entrevista concedida há cinco décadas, para este truque maligno dos líderes autoritários. Em seu artigo A nova tática de controle da Rússia é aquela que Hannah Arendt apontou há cerca de 50 anos, ela recupera uma frase mais do que luminosa da pensadora alemã: “Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas sim que ninguém mais acredite em nada”.

É por isso que a indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não se envergonha de espalhar falácias e fraudes. Ela não constrói credibilidade em ponto algum, não precisa disso, apenas semeia o descrédito generalizado. As fake news servem exatamente para incinerar as vias de acesso à verdade factual. O próprio conceito de verdade dos fatos vai se perdendo. As correntes de apoio ao presidente da República não falam em fatos, mas apenas em “narrativas”. Para elas, a verdade dos fatos não existe, só o que existe são versões. No credo das milícias virtuais, não há mais diferença entre juízo de fato e juízo de valor (entre fatos e opiniões). No lugar do pensamento objetivo e do debate racional, quem entra em cena é o fanatismo. Assim, a indústria da desinformação consegue, pouco a pouco, fazer com que, nas palavras de Hannah Arendt, “ninguém mais acredite em nada”.

Pronto: aí está o canteiro ideal para que modelos de inspiração fascista venham a florescer. “Com um povo assim”, dizia a filósofa (conforme lemos no artigo de Margaret Sullivan), “você pode, então, fazer o que quiser”. Se o povo se convencer de que todo enunciado que tinha o estatuto de verdade factual se reduz a impostura e manipulação, aclamará o primeiro maluco facínora que prometer atear fogo em tudo.

Logo, os pregadores das tiranias só precisam produzir confusão e mais confusão. O resto virá como consequência.

Refazendo a Amazônia

Cinco milhões e duzentos mil hectares da Amazônia, que se regeneraram depois de desmatados, não competem com a agricultura. Podem, portanto, ser destinados à restauração. Essa é a conclusão da nova pesquisa do Imazon, dentro da série de estudos Amazônia 2030. A descoberta dos pesquisadores é um passo adiante do estudo recentemente divulgado, mostrando que 7,2 milhões de hectares estão em processo avançado de regeneração. Com as políticas certas, esse renascimento ajudará o Brasil a cumprir as metas do Acordo de Paris e permitirá a muitos produtores resolverem seu passivo ambiental.

— O grande potencial da Amazônia para a restauração é a partir da vegetação nativa. E isso por quê? Porque as sementes estão sendo dispersadas, animais estão circulando entre fragmentos, isso cria um ambiente muito favorável. Em algumas áreas, claro, será necessária intervenção — explicou o engenheiro agrônomo e pesquisador do Imazon Paulo Amaral.


A boa notícia é essa capacidade de regeneração que a floresta ainda tem, apesar de já ter perdido 81,3 milhões de hectares, 20% de sua cobertura ao longo da história. Os pesquisadores seguiram um roteiro trabalhoso para achar essas áreas na floresta:

— Temos o banco de dados de todas as partes que eram florestas e não são mais. Aí pegamos essas áreas abertas e a partir de algorítimos e imagens de satélites identificamos o que havia sido ocupado por agricultura, conseguimos separar também o que era plantio de eucalipto e chegamos nessas áreas.

Foram ao todo 13 milhões de hectares — 13 mil km2 de floresta — que se refizeram depois do desmatamento. Mas os pesquisadores separaram as que tinham sido desmatadas em um prazo de até cinco anos, considerando que o produtor pode voltar a elas para plantar. Com seis anos e até 30 anos de abandono foram identificados 7,2 milhões de hectares.

— Aí separamos as áreas que tinham aptidão agrícola das que não tinham. São dois milhões de hectares que enfrentarão a pressão da produção agrícola. Por fim, chegamos a esses 5,2 milhões de hectares regenerados há mais de seis anos e sem pressão agrícola. Isso representa uma grande chance para o produtor, porque não há o custo de oportunidade, ou seja, o produtor não estará deixando de plantar ou criar gado porque a terra não é adequada para isso — explica a economista Jayne Guimarães, consultora do Imazon.

E a falta de aptidão que eles dizem é serem grandes declives, ou então Área de Preservação Permanente, como a beira dos rios, que não podem mesmo ser desmatadas. Depois de todas essas análises, os autores do estudo, além dos dois entrevistados, a pesquisadora Andréia Pinto e o consultor Rodney Salomão, foram conferir in loco.

— Fomos a campo para ver se aquilo que estávamos identificando nas imagens correspondia ao verificado no local. Confirmamos. Em muitos casos encontramos produtores que estavam com passivos ambientais, por terem desmatado mais do que podiam ou terem suprimido área de APP e vimos que eles, em muitos casos, já zeraram o passivo — diz Amaral.

Se tudo for mantido assim, o Brasil, que se comprometeu no Acordo de Paris a reflorestar, até 2030, 12 milhões de hectares sendo 8,6 milhões na Amazônia, poderá cumprir a meta facilmente. Mas antes terá que implementar uma série de políticas públicas que os pesquisadores recomendam.

Sugerem que haja um sistema de monitoramento de vegetação secundária. Que o governo retome o processo de validação do cadastro ambiental rural, que está parado. E retome os programas de regularização ambiental. Uma parte dessa regeneração ocorreu em terra pública não destinada, onde há os maiores ataques de grileiros, porque são públicas, mas não são Unidades de Conservação, tipo parque ou floresta nacional. É preciso definir a destinação dessas terras. Por fim, é necessário também definir o pagamento por serviços ambientais, principalmente para os outros dois milhões de hectares que têm aptidão agrícola e que ficam em áreas privadas.

Em 2017, o governo Temer lançou a Política Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Proveg). “Além disso, o Código Florestal determina a restauração de áreas de floresta que foram suprimidas ilegalmente”, diz o estudo. O que os pesquisadores do Imazon mostram é que é possível cumprir essas metas. A Amazônia fez a maior parte do trabalho, renasceu depois de desmatada. Cabe ao Brasil fazer o resto.