domingo, 4 de outubro de 2020

Pensamento do Dia

 

Javier Cubero Torres

Máscara e quarentena não irão deter outra pandemia. Tomar cuidado com o carrinho de compras, sim

Esqueça governos, cientistas e médicos por um momento. A próxima pandemia está a caminho e é você quem pode evitá-la. Agora. Neste instante. Porque a onda se aproxima um pouco mais com cada metro que o ser humano ganha da natureza. “Se você retira alguns elementos de um ecossistema pode ser que não aconteça nada, mas quando retira muitos... Perde-se o equilíbrio e é mais difícil controlar as espécies que têm mais carga viral e patógenos”, afirma Andreu Escrivá, formado em Ciências Ambientais e doutor em Biodiversidade. Depois não coloque a culpa na China, em um morcego e no pangolim, isso é o caminho mais fácil.



O complicado é assumir que, sem seus habitats originais, animais como os ratos e os morcegos se adaptam a áreas degradadas mais próximas ao ser humano, e que o perigo de transmissão de novas doenças aumenta quando se estabelecem nessas regiões. É um processo documentado. Esteve, por exemplo, na origem do vírus do Nipah, mais mortal do que o ebola, sem cura e que aparece todos os anos. O patógeno saltou dos morcegos aos porcos e depois aos seres humanos, em 1998. “Invadimos seus hábitats e isso gera efeitos secundários”, disse ao jornal The New York Times Christian Walzer, diretor executivo da Wildlife Conservation Society.

Não é um caso exótico. Há muitos mais, e o número de doenças que potencialmente podem alimentar uma pandemia não parou de crescer nos últimos anos. Se em meados do século passado apareciam um ou dois a cada ano, nas três últimas décadas o número de surtos de doenças infecciosas detectados se multiplicou por três, de acordo com um estudo da Universidade Brown (Estados Unidos). Alguns dos vírus que os causaram são especialmente problemáticos por sua complexidade —como o H1N1, que leva genes de vírus humanos, um avícola e dois porcinos—, e doenças recentes como a Gripe A e a porcina foram um aviso claro de que o risco de transmissão em escala mundial era real. Fica óbvio que tudo isso não foi levado a sério.

Qualquer um diria que estamos surdos ao anúncio. E cegos ao fato de que a exploração maciça da natureza se voltou contra nós. Pode ser que agora entendamos a mensagem da comunidade científica de que há três ingredientes que fazem um coquetel perfeito para a atual pandemia, e que podem ser ainda mais importantes na próxima: a destruição de ecossistemas, a diminuição da biodiversidade e o comércio de animais selvagens. A isso se une a grande (e pouco ecológica) mobilidade do ser humano, que pode chegar a qualquer ponto do planeta em questão de horas.

Em teoria, os pequenos gestos são suficientes para deter uma grande pandemia. Na prática, realizá-los é muito difícil, para começar porque implica mudar a escala com a que medimos as ações, os gostos e as decisões de consumo. “É preciso cuidar do meio ambiente, mas não só o que nos rodeia, também o que está a milhares de quilômetros. Estamos em um contexto global que requer uma ação global”, diz o biólogo Jesús Olivero. Fala com otimismo: “Mudar o mundo parece utópico, mas não é”.

O que acontece é que é preciso conhecer bem as ferramentas que se tem para consegui-lo. Uma das mais potentes é o consumo, porque nossa forma de consumir é uma declaração política sobre que mundo queremos. Que doces tradicionais como uma rabanada e um cozido incluam óleo de palma, um dos alimentos que mais afetam o desmatamento em todo o mundo, é um bom exemplo da influência global dos pequenos atos cotidianos. “Escolhendo alternativas nos ajuda a evitar que isso ocorra”, diz Andreu Escrivá, que acaba de publicar o livro Y ahora yo qué hago: cómo evitar la culpa climática y pasar a la acción (E agora o que eu faço: como evitar a culpa climática e passar à ação). Também fala em optar pelo consumo de proximidade, seja de verduras, tomates e qualquer outro produto. Isso significaria, além disso, deixar de consumir carnes de fauna selvagem, alimentos exóticos que significam um aumento do risco de que as pessoas se exponham a vírus perigosos.

Outro dos gestos a se levar em consideração aponta diretamente à compra e venda de espécies exóticas, legal e ilegal. “Se há países que exportam espécies protegidas é porque há países que as compram”, afirma o professor Jesús Olivero, e frisa que o comércio regulamentado também é problemático. “Todos somos responsáveis por não ter animais de estimação exóticos”, diz. E não somente porque assim eliminamos oportunidades para que os novos vírus se expandam, também porque podem gerar pragas em seus novos entornos e romper o equilíbrio natural, com graves consequências. As caturritas e o periquito-de-colar, que invadiram numerosas cidades espanholas a partir, justamente, do comércio legal dessas espécies, ilustram como a natureza facilmente foge do controle.

“Chegou o momento em que devemos entender o que precisamos renunciar a favor de uma austeridade, mas não entendida erroneamente, e sim como valor ético”, acrescenta por sua vez Lucía Vázquez, especialista e formadora nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). E avisa que não é uma corrida “para ver quem é mais sustentável” e não se deve “demonizar quem não é”. Vázquez encoraja que qualquer pessoa se pergunte até que ponto está disposta a renunciar a usar o carro para qualquer deslocamento, a viajar de avião para passar um final de semana em Londres e deixar de consumir produtos que não são sustentáveis. “Não se trata de que tudo o que compramos seja ecológico e que toda nossa roupa seja feita de maneira sustentável. Isso é importante, mas também se trata de consumir menos”, afirma.

Outra maneira de melhorar o meio ambiente —e, ao mesmo tempo, colocar obstáculos à chegada de uma futura pandemia— é fazer uma compra diária mais sustentável, algo para o que costuma ser necessário ir a vários estabelecimentos em vez de um só supermercado. Isso requer tempo e isso é, exatamente, o que nunca temos. “Mas o confinamento deveria ter nos ajudado a pensar que é possível evitar as pressas constantes, a vontade de correr por tudo, de chegar rápido aos locais”.

Entre os pequenos gestos com os quais você pode ajudar a deter a próxima pandemia não estão somente hábitos de vida, tomar consciência de questões fundamentais como a responsabilidade que traz o direito ao voto também é importante. Nele reside o poder de escolher, por exemplo, que seja mais fácil e atrativo o uso da bicicleta, tornar mais acessíveis as viagens de trem —um dos meios de transporte mais ecológicos— e que outras ações que tornem nossa vida mais sustentável não tenham sempre que significar um sacrifício, seja econômico, social e de tempo. E é aí onde iniciativas como os ODS servem de roteiro e guia aos Governos, às prefeituras, às associações e às organizações dos entornos mais próximos. A luta global contra a próxima pandemia começa na ação local. Essa não deve ser freada.

Meio-Ambiente verde (oliva?)

A militarização da Amazônia parece ser a saída que o governo de Bolsonaro projeta para garantir nossa soberania na região, como se ela estivesse realmente ameaçada. Desde que o candidato à presidência dos democratas nos Estados Unidos, ex-vice-presidente Joe Biden, disse no debate com Trump, referindo-se às queimadas no Brasil, que vai procurar outros países para criar um fundo de preservação da Amazônia de U$ 20 bilhões, e que, se o desmatamento continuar, haverá "consequências econômicas significativas", o presidente Bolsonaro vem acirrando os ânimos nacionalistas dos militares.

Responde que “não estamos à venda” em sua live do Facebook, e considera a fala de Biden uma demonstração de que há interesses espúrios de outros países na Amazônia. Bolsonaro joga toda sua política externa na reeleição de Trump, vê nossa relação diplomática com os Estados Unidos como “plena”, e lamenta que Biden, que pode vir a ser eleito presidente dos Estados Unidos, “parece estar querendo romper o relacionamento com o Brasil por causa da Amazônia”.

Consequentemente, diz que o Brasil precisa de Forças Armadas "preparadas" para proteger a Amazônia caso algum país resolva fazer "uma besteira" contra o Brasil. “E nós temos que fazer o que? Dissuadi-los disso. E como você faz a dissuasão disso? Ter Forças Armadas preparadas. Mas nossas Forças Armadas foram sucateadas ao longo dos últimos 20 anos”, lamentou.


O estranho é que no Fórum Econômico Mundial, ao encontrar-se com o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, Bolsonaro disse que gostaria de “explorar a Amazônia com os Estados Unidos”. Mesmo que seja apenas uma bravata, essa convocação à defesa da Amazônia entusiasma os militares, e boa parte dos seguidores bolsonaristas mais radicais.

A idéia de juntar o ICMBio ao Ibama, por exemplo, está sendo vista pelos ambientalistas como uma tentativa de militarizar a preservação do meio-ambiente, que já está dominada por militares no Ibama. Há também pressões vindas dos setores produtivos para a mudança da política ambiental do governo, pois a ação do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles está se tornando tóxica para os exportadores.

O agronegócio já está sofrendo as conseqüências de uma política ambiental que desafia o mundo ocidental, e pode provocar prejuízos à marca Brasil, que sempre teve um peso importante no mercado mundial. Os agricultores estão gastando mais dinheiro do próprio bolso para fazer o rastreamento dos seus produtos, para poder provar que não são oriundos de áreas desmatadas.

A nomeação do vice-presidente Hamilton Mourão para presidir o Conselho da Amazônia foi um primeiro passo para dar mais credibilidade às ações do governo na região, mas, embora tenha mais bom senso que Salles, o vice-presidente precisa ter sob sua jurisdição órgãos que hoje estão no ministério do Meio-Ambiente.

Por isso voltou a ser cogitada a fusão do ministério do Meio-Ambiente com a Agricultura, uma idéia que o presidente Bolsonaro teve no início de seu governo, ao montar o novo ministério. Na ocasião, e com razão, pareceu ser uma manobra para rebaixar o Meio-Ambiente em favor do agronegócio. Agora, ao contrário, seria uma ação para proteger o agronegócio das críticas internacionais à política ambiental do governo Bolsonaro.

A proposta é que o vice-presidente Hamilton Mourão assuma toda a coordenação da política ambiental, e que a Agricultura absorva funções burocráticas do Meio-Ambiente. Mourão teria assim sob sua orientação o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que ele já criticou, a ponto de apoiar um movimento do Ministério da Defesa para comprar um satélite que faria a mesma função de monitoramento de queimadas e desmatamentos que o sistema do Inpe já faz.

A ideia foi abandonada, mas Mourão, assumindo a política ambiental, terá o sistema de satélites já existente à sua disposição. Tudo isso pode ser feito, e melhorará a imagem do país no exterior, se demonstrarmos que estamos realmente combatendo as queimadas e o desmatamento, e não apenas entregando aos militares uma hipotética defesa da região, sem alterar o negacionismo do governo.

Um meio-ambiente verde, e não verde-oliva.

Quem é o líder da economia?

O presidente Jair Bolsonaro provavelmente não leu Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre; talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, nos tempos de academia militar, por causa da campanha de Canudos, o maior vexame do Exército brasileiro. Mas isso em nada o impede de ter capturado boa parcela do eleitorado do Nordeste, onde obtém crescente apoio popular. Esse parece ser o terreno eleitoral no qual sua reeleição pode ser decidida. Com competência, Bolsonaro está abduzindo o eleitorado nordestino do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Casa Grande & Senzala foi publicado no Rio de Janeiro, em 1933. História, sociologia, antropologia cultural, gastronomia, direito, sociolinguística, curiosidades, medicina e uma boa dose de intimidades da vida privada colonial, inclusive sexual, fazem da obra um clássico da chamada literatura brasiliana. Freyre, um aristocrata pernambucano, ainda provoca muitas polêmicas. A principal é o tratamento dado ao português colonizador e à escravidão. Para uns, mascarou o racismo; para outros, resgatou a autoestima do brasileiro.

Freyre compreendeu a miscigenação como um dos elementos de construção da identidade nacional. É muito criticado por isso. Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial), Raymundo Faoro (patrimonialismo) e Roberto DaMatta (o jeitinho brasileiro) também são acusados de generalizações exageradas e da absolutização de seus conceitos. Todos construíram um “tipo ideal”, uma abordagem de viés weberiano que os autores marxistas geralmente condenam. Entretanto, seria impossível compreender o Brasil contemporâneo sem a ajuda desses autores, até porque a crítica a eles veio muito depois, com a maioridade acadêmica das universidades brasileiras.

Freyre fala dos índios, dos portugueses e dos escravos africanos, com considerações que alguns consideram até pornográficas. Ao descrever hábitos sexuais, faz comentários machistas e até homofóbicos. Ao analisar a formação do patriarcado brasileiro, no período colonial, opõe católicos e hereges, jesuítas e fazendeiros, bandeirantes e senhores de engenho, paulistas e emboabas, pernambucanos e mascates, bacharéis e analfabetos, senhores e escravos. Mostra que a escravidão e o latifúndio fortaleceram a sociedade patriarcal onde o homem branco – o dono da Casa-Grande – era o proprietário de terras, escravos, até mesmo de seus parentes, no sentido que ele governava gado e gente. Desta maneira, criou-se uma sociedade sempre dependente de um senhor poderoso e incapaz de governar a si mesma.


Chegamos ao xis da questão. A política no Nordeste não é pior nem melhor do que a de outras regiões do país em matéria de clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo (o Rio de Janeiro, de cuja elite parte o maior preconceito, que o diga), mas tem a forte característica de ser dominada por um patriarcado que manteve costumes culturais e políticos tecidos no Brasil colonial. Os seis mandatos de deputado federal e suas relações com políticos do baixo clero, a partir do momento em que se aliou ao Centrão, possibilitaram a Bolsonaro a realização de alianças estratégicas no Nordeste, no leito das conexões históricas entre o poder centralizado da União e as oligarquias regionais que historicamente lhe deram sustentação, a essência da velha “política de conciliação” que herdamos do Império.

Vem daí a força que políticos nordestinos do Centrão, como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o deputado Arthur Lira (PP-AL) demonstram na queda de braços com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre o financiamento do programa social Renda Cidadã. E a facilidade com que Bolsonaro construiu as pontes para se conectar com o eleitorado nordestino, que o derrotara na eleição de 2018, alicerçadas no auxílio emergencial aprovado pelo Congresso durante a pandemia e cimentadas por sua narrativa de cunho religioso, que agora incorporou a exaltação à figura do Padre Cícero, símbolo do messianismo católico brasileiro, que sempre foi um instrumento de construção da hegemonia conservadora no Nordeste.

“Viver é muito perigoso, seu moço”, ainda mais em tempos de pandemia. Não sei se Guedes leu Casa Grande & Senzala, o que o ajudaria entender um pouco mais os seus desafetos políticos da Praça dos Três Poderes. Mas, como mineiro ilustrado, deve ter lido Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Desculpem-me a comparação, para sobreviver no cargo, Guedes precisa puxar a faca e se impor como líder da política econômica do governo, como faria o jagunço Riobaldo. O universo do sertão é um espaço ambíguo, de limites indefiníveis, desafiador e de difícil travessia. Cruzar o deserto do Sussuarão é como desafiar a caatinga. O espaço empírico se relaciona com a subjetividade humana. Riobaldo explica: “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo”. Como o jagunço nas Veredas-Mortas, Guedes está num espaço de estranhamento, a Esplanada dos Ministérios, simbolicamente, entre a ordem e a desordem, a precisão e a imprecisão, o Bem e o Mal. Está perdendo a liderança do bando, isto é, da política econômica, para os políticos do Nordeste, que prometem votos a Bolsonaro em troca de R$ 300, porque não consegue oferecer trabalho aos desempregados nem segurança aos investidores. Simples assim.

O beco tem saída

‘Nada de puxadinhos’, zangou-se o ministro, o mesmo que leu oito livros — no original — sobre os processos de reorganização da economia mundial. “Precisamos de um programa social robusto, consistente e financiado.” Foi fácil encontrar acordo quanto aos dois primeiros adjetivos, mesmo porque, no governo, é unânime a opinião de que o país precisa de programas sociais “robustos e consistentes”. Nem tanto para aliviar a miséria dos que têm fome ou para mitigar o desespero dos desempregados. Nem tanto para estimular o consumo da sociedade ou o dinamismo da economia, mas porque um programa “robusto e consistente” é essencial para a reeleição do salvador da pátria, que precisa salvar-se a si mesmo para continuar posando como salvador de todos. Calou-se o coro dos que denunciavam o Bolsa Família como um programa demagógico e populista, feito sob medida para preguiçosos e para dar votos a seu criador. Entretanto o bicho está pegando quanto à terceira palavra do enunciado do douto ministro: como financiá-lo?



Há meses políticos e especialistas quebram a cabeça. O famoso teto de gastos do Estado tornou-se um mantra, é intocável. Aventou-se o recurso óbvio, por tradicional, de avançar sobre os salários dos funcionários públicos, que viria embalado numa pomposa reforma administrativa. Não colou. Por prudência, foi recusado. Propuseram-se então outras fórmulas de transferir recursos dos menos pobres para os mais pobres: que tal congelar o aumento do salário mínimo por alguns anos? Ou subtrair algum do seguro-desemprego? Ou sacar de outros programas sociais? Rejeitadas, por indignas. Por que não sugar fundos destinados à pesquisa científica, onde sobram as verbas, embora estejam sempre reclamando? A ideia sequer foi considerada.

Um verdadeiro impasse.

Surgiu agora uma nova opção, já abandonada: não pagar dívidas validadas pela Justiça, os precatórios, e dar uma boa garfada na educação básica, a velha história do mau-caráter que tira o doce da boca das crianças. Estas não chegaram a reclamar, por desorganizadas. O mercado, porém, este espectro que ronda a sociedade, que ninguém vê, mas está em toda parte, e se faz ouvir, protestou. Autorizar o governo a praticar um calote, seja ele qual for, seria um mau precedente, capaz de induzi-lo a outros, perigosos, como não pagar os juros da dívida pública, este abundoso úbere, de gordos mamilos, em que mamam estas gentes operosas e austeras que emprestam dinheiro ao Estado.

Enquanto os sábios analisam alternativas, a sociedade despenca num buraco sem fundo.

A PNAD contínua flagrou 13,1 milhões de desempregados, equivalentes a 13,8% da população (serão 15% até o fim do ano, segundo estimativas). Somadas aos 5,7 milhões de subocupados, os que trabalham menos do que desejariam, e aos 13,9 milhões de desalentados, que desistiram, embora disponíveis, temos um total de 32,9 milhões de brasileiros penando na angústia e no desespero, incluídos na sociedade, contudo excluídos de suas atividades produtivas, da possibilidade de um trabalho digno e de gozar os prazeres só permitidos aos que podem pagar.

Nem tudo, porém, são espinhos nesta terra alcatifada de flores. A revista “Forbes” anuncia que, neste ano de trevas para as grandes maiorias, os bilionários brasileiros cresceram a uma taxa de 16%. Temos agora 238 bilionários, acumulando uma fortuna de 1,6 trilhão de reais. No campeonato da desigualdade de renda, figuramos no pelotão de frente, acompanhados por algumas outras potências, como Guatemala, República Centro-Africana e Botsuana. O 1% mais rico concentra uma riqueza equivalente aos trocados de metade da população. Como diz um ditado libanês, é gente que tem dinheiro para tomar sorvete no inferno.

Não estaria aí uma solução para sair deste beco? Fazer os muito ricos financiarem os programas sociais com o seus patacos? Eles não gostariam, é claro, mas poderiam ser consolados com uma frase de Sêneca: magna servitus est magna fortuna, uma grande fortuna é uma grande servidão.

Brasil, salvação só no Divino

 


Strip-tease ideológico

A proposta de Renda Cidadã do governo Bolsonaro mostra a confusão ideológica que caracteriza a política brasileira nestes tempos.

Para começar, o governo mais direitista que o Brasil já teve, adota para seu programa o mesmo nome do partido que até poucos anos atrás era o Partido Comunista Brasileiro – PCB – agora Cidadania. As palavras perderam significado; um governo de direita e um partido de esquerda adotam o mesmo nome para seu principal programa ou para o partido em si.

Uma prova da falta de personalidade e caráter dos dois extremos na política nacional, é o fato de que PT e Bolsonaro têm a mesma proposta, seja com o nome de Bolsa Família ou de Renda Cidadã. Nome igual ao defendido por um dos políticos símbolos da esquerda, Eduardo Suplicy, que desde sempre defendeu a Renda Básica da Cidadania. Fica possível imaginar que em 2022 o debate entre PT e Bolsonaro terá os dois defendendo a mesma proposta, se diferenciando apenas pelo nome do programa e pelo tamanho do público a ser beneficiado. Se a PEC do Teto resistir até lá, poderão discordar sobre a fonte de financiamento. Sem a PEC do Teto, nem mesmo esta discordância dominará o debate.


A adoção do Bolsa Família pelo governo conservador de Bolsonaro é uma prova do conservadorismo, positivamente generoso, dos governos do PT, sem realizar reformas estruturais para reduzir a concentração de renda, construir equidade educacional, enfrentar a persistência da pobreza. Apesar de que o Lula e o PT certamente têm sensibilidade e empatia com os pobres, o que não se percebe no Bolsonaro e sua equipe, os dois propõem a mesma visão assistencial, não estrutural para beneficiar conjunturalmente parcelas pobres.

O debate em 2022 deve se limitar aos temas dos costumes, de defesa das liberdades civis e dos direitos de minorias, além da proteção ambiental, É possível que ambos defendam o fim da PEC do Teto, para fazer mais fácil o financiamento do programa comum, Com o Teto, Bolsonaro poderá propor tirar da educação, o PT buscará outra fonte, mas nada indica que qualquer deles vai propor eliminar privilégios, reduzir subsídios e acabar com ineficiências do Estado. Ou poderão se unir na defesa da velha proposta de grupos radicais da esquerda, que propõem a suspensão de pagamento da dívida, e o governo Bolsonaro também defendeu no que se refere ãs dívidas com precatório.

A Renda Cidadã desnudou as propostas da esquerda e da direita, e mostrou que em sua nudez elas ficaram ideologicamente muito parecidas. Pena que a identidade ideológica descaracteriza a ideia da antiga Bolsa Escola, que tinha o propósito de transformador ao condicionar a renda com a educação.
Cristovam Buarque

O crime que envergonha

"Croatas e muçulmanos" Peter Howson 

O estupro é o único crime em que a vítima é quem sente vergonha 
Ana Paula Araújo, autora de "Abuso: a cultura do estupro no Brasil"

Bolsonaro e a elite rastaquera

Entre tantos desastres do governo Jair Bolsonaro, um deles deve ser louvado. Permitiu que o ultra-reacionarismo de frações da elite brasileira aflorasse. O que ficou durante as últimas três décadas relativamente escondido, no fundo do palco, nos 21 meses de Bolsonaro na presidência foi paulatinamente assumindo o protagonismo e ocupando o primeiro plano do que, no Brasil, se chama de política. O ódio, a violência, a arrogância, a ignorância, a prepotência, se transformaram em qualidades indispensáveis para o exercício de funções públicas e louvadas como uma forma original, nova, de conduzir a res publica. O decoro virou objeto de museu. No Brasil da barbárie, o chique é falar palavrões, desprezar a cultura, reduzir os complexos problemas nacionais a frases marcadas pelo senso comum, ignorar o passado e desprezar as tradições nacionais e o povo brasileiro.



O obtuso que ocupa a chefia do Executivo federal é o seu representante. Mais ainda: é a sua mais perfeita tradução. Governa o Brasil como se ainda fosse um deputado do baixo clero e com relações perigosíssimas com o mundo da marginalidade. O presidente despreza a ciência, pois é mais fácil ser negacionista sobre qualquer tema. Tem enorme dificuldade de exercer a função presidencial, suas atribuições e responsabilidades. Transformou o Palácio do Planalto numa extensão do seu antigo (e patético) gabinete da Câmara dos Deputados — por onde passou por 28 anos sem deixar nenhuma contribuição ao país. Nunca entendeu a função do Estado. Repete ladainhas pseudo-liberais sem ter a mínima ideia dos seus significados. Stuart Mill, para ele, caso um dia cometesse o desatino da leitura, seria certamente tachado de comunista. Para esconder a ignorância usa da violência e dos instrumentos do aparelho de Estado. Apesar de desprezar a Constituição, a todo o momento faz uso da Carta Magna para coagir adversários políticos e preparar, se necessário, um golpe de Estado. Tem nos nazistas bons professores. Basta recordar a utilização que fizeram da Constituição de Weimar para chegar ao poder e, posteriormente, destruí-la e impor a ditadura.

A sociedade civil, até o momento, não conseguiu reagir à altura. Há também uma enorme carência de lideranças políticas. Hoje, o importante é, a qualquer preço, agradar o parvo que ocupa a cadeira que um dia foi de Juscelino Kubitschek. Mas — e isto vale uma tese — o mandrião prefere ter um círculo íntimo, uma caterva, da sua confiança, desprezando os rastaqueras que tudo fazem para agradá-lo. E la nave va.

O governo é isso aí

De um governo se espera que governe, ou seja, que dê uma direção à administração, com planos bem definidos e disposição de negociar com o Congresso sua implementação. Do atual governo, contudo, a conclusão, perto da metade do mandato de Jair Bolsonaro, é que seria esperar demais que ele se dedicasse à faina.

É tão evidente que o governo Bolsonaro não consegue articular nenhuma política concreta, apenas lampejos e arroubos desconexos, que mesmo a crítica a esse incrível estado de coisas perdeu o sentido. Pois a crítica presume, da parte do crítico, a expectativa de que o criticado venha a se emendar e passe a fazer o que deve ser feito. E isso não vai acontecer, pois o governo Bolsonaro é essencialmente isso aí.

Há ilhas de excelência em meio a esse mar de profunda mediocridade, claro. Quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, diz num encontro com investidores que os juros vão imediatamente subir se o teto de gastos for desrespeitado, colocando o Brasil no caminho da insolvência fiscal, indica que há gente de muito bom senso em posições estratégicas no governo. Vai na mesma linha o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, que afirmou recentemente que “aumentar despesa gera um resultado socialmente ruim, destrói empregos”, enfatizando o que deveria ser óbvio.

Outros setores que têm atuado razoavelmente bem no governo a despeito da mixórdia bolsonarista são a Agricultura e a Infraestrutura. No primeiro caso, a ministra Tereza Cristina vem dando duro para reparar os danos causados à imagem do País e ao agronegócio brasileiro em razão da atitude beligerante de Bolsonaro e da ala lunática do governo em relação ao meio ambiente. No segundo, o ministro Tarcísio de Freitas se dispõe a trabalhar com o que tem e elabora projetos de acordo com a realidade, algo raríssimo na administração bolsonarista.



Infelizmente, contudo, esses bons exemplos não são suficientes para desfazer a sensação generalizada de que o governo é irremediavelmente desorientado, resultado da inaptidão de Bolsonaro para o exercício da Presidência. Não é outra a razão do vexame do tal “Renda Cidadã”, ou “Renda Brasil”, ou seja lá que nome venha a ter o programa social que Bolsonaro quer usar no palanque. O incrível fiasco envolveu o primeiríssimo time do governo, do “superministro” Paulo Guedes ao líder na Câmara, deputado Ricardo Barros, passando pelo presidente da República em pessoa. Se já era difícil acreditar no que dizem os próceres do governo, agora é praticamente impossível.

O único projeto de Bolsonaro que vai de vento em popa é o eleitoral. O presidente vem aos poucos abandonando os bolsonaristas fanáticos, que só têm a lealdade cega a lhe oferecer, e decidiu entregar o governo de vez ao Centrão, em troca da permanência no poder e da viabilização de sua reeleição.

Se é isso, como parece ser, então é ocioso cobrar do governo que, enfim, governe. Por essa razão, mais do que nunca, a sociedade brasileira, especialmente sua elite – intelectual, empresarial e integrante dos Poderes Judiciário e Legislativo, além de governadores e prefeitos País afora –, deve se mobilizar para impedir que o País se renda à apatia.

Cada um deve se empenhar para fazer o que estiver a seu alcance, e que não dependa do desgoverno federal, para dar aos brasileiros em geral a sensação de que há um rumo, e que esse rumo não é o do precipício. Há sinais promissores: empresas têm demonstrado genuína preocupação com o meio ambiente e com a abertura de oportunidades para quem é historicamente marginalizado; o Congresso vem exibindo inegável perfil reformista, encaminhando discussões cruciais para o futuro do País; e muitos governadores e prefeitos têm trabalhado duro para enfrentar a pandemia, recorrendo à ciência em vez da mistificação bolsonarista.

Portanto, há saída. Se é esse o presidente que temos, o País deve então buscar soluções bem longe do Palácio do Planalto – o que talvez seja uma oportunidade de ouro para desenvolver no Brasil o sentido cívico, de participação ativa na vida política e de envolvimento efetivo com o futuro de todos.
Editorial - Estado de São Paulo