sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O desmonte em família

No início do processo de redemocratização, campanha das diretas, vi num mesmo palanque em Caruaru dois candidatos que se dispunham a combater a corrupção: Collor, caçador de marajás, e Lula, que traria ética para a política. Ambos perderam a batalha.

Não posso dizer que Bolsonaro vá pelo mesmo caminho, pois cada um tem um roteiro próprio para contradizer o seu discurso. O dele tem um caráter doméstico. Ele decidiu intervir no Coaf, na Receita Federal e na Polícia Federal (PF) porque sentiu ameaças à sua família.


Ele próprio revelou que o Fisco fez uma devassa nas finanças de seu irmão, candidato a prefeito em Miracatu, no Vale do Ribeira. Sua campanha presidencial foi investigada.

Flávio, filho de Bolsonaro, estava sendo investigado a partir de dados do Coaf. Toffoli suspendeu as investigações. O presidente aprovou.

E agora quer mudar três nomes da Receita no Rio e um delegado da PF. A Receita é apenas uma das pernas do esquema de combate à corrupção que funcionou na Lava Jato. Talvez seja a mais vulnerável. Tentei explicar isso a um fiscal, que, por sua vez, descrevia os mecanismos automatizados e anônimos que indicam a necessidade de investigar o contribuinte.

Não há grande lastro popular no apoio à Receita. De modo geral, as pessoas a temem, ou talvez a rejeitem inconscientemente. A Inconfidência Mineira e as lutas contra as taxações coloniais podem ter contribuído para isso. Nem todos se distanciam para vê-la em suas funções mais amplas, importantes para toda a sociedade.

A interferência no Porto de Itaguaí, por exemplo, interrompe um trabalho que dificultava a ação da milícia que domina a área. Pelo porto saem drogas e entram armas.

Bolsonaro não explicou a razão de sua interferência em Itaguaí. Mas deveria ser mais cuidadoso num tema que envolve a milícia diretamente. As investigações em torno do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro mostram que familiares de milicianos foram empregados ali. O próprio Fabrício Queiroz parecia ter vínculos com o grupo do Escritório do Crime, mas jamais apareceram para todos essas inter-relações gabinete-milícia.

O descaminho de Bolsonaro no trato com a autonomia dessas instituições se dá num momento singular. Outras famílias importantes, do Poder ao lado, a mulher do ministro Toffoli e a de Gilmar Mendes, também estavam incomodadas com os dados do Coaf. O lamentável vazamento no caso de Gilmar acabou contribuindo para criar uma aliança dentro do STF que inclui Alexandre de Moraes, com sua decisão de suspender investigações.

No Poder do outro lado, a Câmara aprovou um projeto de abuso de autoridade, de noite e com baixo quórum. É um tema em que se pode chegar a um acordo. Mas não deveria ser votado assim. Essa história de Rodrigo Maia decidir que havia quórum é muito subjetiva.

A Lei de Abuso de Autoridade, apesar de ainda estar indefinido o papel de Bolsonaro nela – pode vetar ou não –, também é parte de uma ofensiva que o topo dos três Poderes desenvolve contra o sistema de combate à corrupção. Ilusório pensar que as coisas voltarão a ser como antes da Lava Jato. Talvez a cúpula dos três Poderes perceba isso. O que parece estar em curso é uma espécie de freio de arrumação. O objetivo é apenas o de facilitar o movimento dos políticos e conter investigadores e juízes. Que nível de resultado sairá desse esforço ainda é uma incógnita.

Bolsonaro enfraquece Sergio Moro ao intervir na Polícia Federal. As mensagem vazadas da Lava Jato não tiveram efeito demolidor, mas foram um elemento de estímulo ao freio de arrumação.

De certa forma, todo esse movimento era previsível e a tensão, às vezes, se concentrava num só tema, como, por exemplo, a prisão após julgamento em segunda instância. O que é novidade, não tanto para mim, que vi outros projetos fracassarem, é o comportamento do governo que se diz contra a corrupção.

Para começar, o próprio partido de Bolsonaro, o PSL, aprovou o regime de urgência para a Lei de Abuso. Sinal de ambiguidade. O abuso de autoridade, em termos gerais, existe há décadas. Por que, então, aprovar a lei com tão pouca gente e discussão?

Juízes e procuradores sentem-se intimidados com o nível de abstração em que a lei foi redigida. Por que não negociar com eles?

O único tema que alguns governistas problematizaram foi o uso de algemas. Isso é importante no trato do crime comum, mas insignificante em termos de luta contra a corrupção. Eles não costumam fugir, muito menos reagir violentamente à prisão.

Os eventuais vetos que Bolsonaro apresentar à Lei de Abuso não atenuam o peso de sua investida sobre os órgãos de investigação. Não ficou clara a razão de ele pedir o afastamento do delegado da PF do Rio. A PF do Rio contribuiu para as investigações sobre a morte de Marielle Franco. Elas resultaram na prisão de milicianos.

Bolsonaro alegou que a razão da mudança era a produtividade. Mas a PF do Rio também atua na Lava Jato, cuja produtividade talvez seja maior no momento do que em Curitiba ou São Paulo.

Como quase todas as intervenções esbarram em desconforto familiar ou repressão às milícias, elas significam um retrocesso na maneira como um presidente se comporta diante da autonomia das instituições. Ironicamente, um governo que se elegeu tendo como bandeira o combate à corrupção e com os ventos favoráveis da Lava Jato aniquila as possibilidades de outra operação eficaz no Brasil.

Quebrou uma das suas pernas, a fiscalização integrada das transações financeiras, enfim, perde o rumo do dinheiro, bloqueia o caminho real para investigar corrupção. E não é só Bolsonaro. Há mais presidentes envolvidos nisso, com destaque para o do STF, que proibiu o uso dos dados do Coaf.

Uma ação entre famílias.

Paisagem brasileira

Johann Moritz Rugendas (1830)

Amazônia em chamas

As queimadas na Amazônia ganharam a dimensão de “crise internacional”, principalmente por causa dos vídeos de incêndios florestais que circulam nas redes sociais e das imagens de satélites distribuídas pela Nasa sobre a degradação da floresta. Ontem, o presidente da França, Emmanuel Macron, pautou o assunto na reunião do G7, os sete países mais ricos do mundo. Os líderes de Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido se encontrarão no sábado, em Biarritz. “Nossa casa queima. Literalmente. A Amazônia, o pulmão de nosso planeta, que produz 20% de nosso oxigênio, arde em chamas. É uma crise internacional”, escreveu o líder francês.


As atitudes e declarações de Bolsonaro sobre o desmatamento, a cooperação internacional para preservar a Amazônia e a política desastrada do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, levaram o país a uma posição de isolamento internacional, agravada por circunstâncias específicas, como o cancelamento de uma audiência de Bolsonaro (para ir ao barbeiro) com o chanceler francês Jean-Yves Le Drian. A gravidade da crise decorre também do fato de que a maior fronteira da França é com o Brasil, por causa da Guiana, ou seja, uma parte da região amazônica é francesa.

A forma como Bolsonaro trata a questão ambiental e o problema da Amazônia é desastrosa e típica de quem não mede as consequências de suas ações. Além de uma tremenda subestimação da importância da agenda ambiental para o mundo. Essa é a explicação, por exemplo, para o fato de que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ao sair do Acordo do Clima, ficou completamente isolado. Macron é o principal defensor do Acordo de Paris.

É certa também uma reação dos países vizinhos, como o Peru, que ontem manifestou preocupação com os incêndios nas proximidades de sua fronteira com o Brasil. O presidente da Bolívia, Evo Morales, também está preocupado. Contratou uma aeronave-tanque do tipo Boeing 747, chamado Super Tanker, para combater focos de incêndio na região boliviana da floresta amazônica. O avião, que tem capacidade para transportar até 115 mil litros, entrou em operação ontem.

Enquanto isso, o governo brasileiro parece uma barata tonta com que está acontecendo. O desmantelamento da política ambiental e a desestruturação dos órgãos responsáveis pelo combate ao desmatamento e controle de queimadas agravaram tremendamente a situação. Ainda mais depois do corte das verbas destinadas pela Alemanha e pela Noruega ao Fundo da Amazônia, que financiava os investimentos dos estados da Amazônia em máquinas e equipamentos para esse trabalho.

O governo adota uma narrativa que não tem a menor chance de dar certo, porque despreza os indicadores e estudos científicos e insiste na politização da crise, ao passo que o desmatamento e os incêndios na Amazônia são fenômenos objetivos, ou seja, independem do observador e das bravatas dos ministros e do presidente da República. Além disso, a responsabilidade da gestão ambiental hoje é do atual governo, não adianta culpar os antecessores. Quem apaga o fogo são as brigadas contra incêndios, que não têm recursos e equipamentos suficientes para controlá-los. As Forças Armadas também não estão preparadas, mas terão de ser mobilizadas.

A situação tende a se tornar ainda mais crítica, no plano político, porque vem aí o Sínodo da Pan-Amazônia, convocado pelo Papa Francisco, evento que tem preocupado o governo e que, diante das circunstâncias, deve ganhar uma nova dimensão. Segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, um dos objetivos do encontro é conhecer “a riqueza do bioma, os saberes e a diversidade dos povos da Amazônia, especialmente dos povos Indígenas, suas lutas por uma ecologia integral, seus sonhos e esperanças”.

O Sínodo é um encontro de bispos, que se realizará de 3 a 27 de outubro, em Roma, com atividades paralelas que mobilizarão o clero da região amazônica, lideranças indígenas e populares, ambientalistas e representantes de órgãos oficiais de nove países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. A Amazônia tem cerca de 34 milhões de habitantes, dos quais mais de 3 milhões são indígenas, pertencentes a mais de 390 grupos étnicos. Povos e culturas diferentes como afrodescendentes, camponeses, colonos, têm uma relação vital com a vegetação e as águas dos rios. Para o papa Francisco, o problema essencial “é como reconciliar o direito ao desenvolvimento, inclusive o social e cultural, com as caraterísticas próprias dos indígenas e dos seus territórios”.

Capitão faz por pressão o que não fez por opção

Com a Polícia Federal e as Forças Armadas à disposição, Jair Bolsonaro assistiu à proliferação das queimadas como se não tivesse nada a ver com as chamas. Conversou com a imprensa na frente do Alvorada um par de vezes. Postou-se diante dos "urubus", como se refere aos repórteres, de mãos abanando. Inconformado com os fatos, a fumaça e os indicadores que estilhaçam a imagem ambiental do país, o capitão buscou uma saída. Com seu linguajar caótico, apontou as ONGs como culpadas e os governadores como cúmplices. Não exibiu provas aos urubus céticos.


Em matéria de meio ambiente, Bolsonaro esbarra no óbvio, tropeça no óbvio. E passa adiante, sem suspeitar que o óbvio é o óbvio. Com isso, compromete duas das principais atribuições de um presidente: enxergar o buraco e dimensionar o seu tamanho. São tarefas indelegáveis. Mesmo que desejasse terceirizar suas obrigações, o capitão não encontraria mão-de-obra. Não há assessores ao seu redor, apenas áulicos e súditos. Submetidos ao cheiro de queimado, o chefe da Casa Civil Onyx Lorenzoni e o chanceler Ernesto Araújo limitaram-se a mimetizar o chefe.

O discurso do desmatamento é arma de europeus esquerdistas para impor barreiras a produtos brasileiros, insinuou Onyx. Inimigos do Brasil usam falsidades ambientais para nos atacar, ecoou Araújo. O fogo continuou se alastrando. Ganhou as manchetes dos principais órgãos de comunicação do planeta. Chegou às redes sociais de celebridades como Leonardo DiCaprio e Gisele Bündchen. Escalou o Twitter do presidente francês Emmanoel Macron, que utilizou a imagem de um incêndio antigo para sensibilizar os colegas do G-7.

Autoconvertido em alvo de manifestações dentro e fora do Brasil, Bolsonaro convocou reunião ministerial de emergência. Mandou publicar no Diário Oficial despacho ordenando aos ministros que tomem providências visando a "preservação e a defesa da Floresta Amazônica, patrimônio nacional". Nesta sexta-feira, o capitão reunirá os ministros em seu gabinete. Aparentemente, caiu-lhe a ficha. Percebeu que já não governava os fatos, era governado por eles. Agora, faz sob pressão o que deixou de fazer por obrigação.

Embora Bolsonaro comece a enxergar o óbvio, é improvável que abandone o estilo caótico. O presidente tem uma relação de amor com o caos. E é plenamente correspondido. Tornou-se prisioneiro de sua filosofia do sítio. Acredita que todos estão contra ele —dos urubus da imprensa a um hipotético globalismo tóxico dos líderes europeus. Esse tipo de turvamento mental pode impedir o presidente de exercer outras duas atribuições elementares: reconhecer que toda crise tem um custo. E calcular os prejuízos. A fatura inclui sanções comerciais ao agronegócio brasileiro. E empurra para cima do telhado o acordo Mecosul-União Europeia.

Se Bolsonaro fosse um presidente lógico, perguntaria a si mesmo: Que rumo vou seguir depois que a emergência ambiental for serenada? O mais provável é que a encrenca continue em estágio crítico, influenciando os rumos do governo. Para conseguir mudar de assunto, Bolsonaro teria de virar do avesso sua agenda ambiental. Mais: precisaria levar à face a imagem da serenidade. No momento, o capitão é a cara da crise. Aprendeu a fazer confusões. Mas ainda não revelou nenhum talento para desfazê-las.

País merece, e exige, respeito!

Um verdadeiro militar sabe que hierarquia significa respeitar quem está acima, mas também implica saber respeitar quem está abaixo.
Quem quer ser respeitado precisa mostrar que faz jus ao respeito. O Brasil, verdadeiramente, acima de tudo!
Janaina Paschoal (PSL-SP)

Planeta em chamas

A ativista adolescente Greta Thunberg costuma afirmar, na tentativa de acordar os adultos para a emergência climática: “Nossa casa está em chamas”. No momento, a sueca de 16 anos atravessa o oceano num barco à vela rumo à Conferência da ONU, em Nova York. O que Greta pode não ter imaginado, porém, é ainda mais assustador: fazendeiros e grileiros atearem fogo na floresta, deliberadamente, como manifesto político. É o que aconteceu na Amazônia, em 10 de agosto, segundo foi anunciado no jornal de Novo Progresso.

Fazendeiros e grileiros do entorno da BR-163, uma das regiões de maior conflito na Amazônia brasileira, programaram o “Dia do Fogo”. Na data, queimaram áreas de pasto e em processo de desmatamento. Segundo uma das lideranças, entrevistada pelo jornal Folha do Progresso, setores do agronegócio se sentem “amparados pelas palavras de Jair Bolsonaro”, que estimula a abertura das áreas protegidas da floresta para exploração agropecuária e mineração. Disseram também que desejavam mostrar ao presidente do Brasil “que querem trabalhar e o único jeito é derrubando, e para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”.


Tudo indica que conseguiram. Anunciaram, pelo jornal, cinco dias antes. E cinco dias depois a Amazônia queimou — mais. Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, na data marcada Novo Progresso teve um número 300% maior de “queimadas”, com 124 focos de incêndio. No dia seguinte, o número saltou para 203. Em Altamira, as estatísticas mostraram uma realidade ainda mais assustadora: 743% de aumento, com 194 focos de incêndio. No domingo, chegaram a 237.

Enquanto Greta Thunberg navega para Nova York, sua frase se literaliza: há incêndios em diferentes partes do planeta, da Gran Canária, na Espanha, a Sibéria, na Rússia. A conexão com a crise climática pode ser mais ou menos direta. Na Europa, os focos apareceram depois do julho mais quente da história. No Ártico, os incêndios recordes criaram um ciclo vicioso: o fogo libera CO2 para a atmosfera e agrava o colapso climático. O trabalho dos bombeiros, em todas as partes, está sendo dificultado pelas ondas de calor e pela falta de umidade. Na América Latina, a Amazônia queima, assim como pedaços da Bolívia e do Paraguai.

As más notícias para superaquecer o planeta não param. Diante da explosão do desmatamento no Governo de Bolsonaro, Alemanha e Noruega suspenderam quase 300 milhões de reais destinados à proteção da Amazônia. Bolsonaro respondeu ao Governo alemão: “A Alemanha vai parar de comprar a Amazônia a prestações”. E, aos noruegueses: “Pega a grana e ajude a Angela Merkel a reflorestar a Alemanha".

Bolsonaro não é apenas estúpido — e muito mal educado. As declarações servem para acirrar a paranoia de seus seguidores: o antipresidente e seu clã defendem que a preocupação com a floresta é uma desculpa para tomar a Amazônia do Brasil. O curioso nacionalismo pregado por Bolsonaro amaldiçoa a Europa em nome da soberania e se curva até a cueca aparecer diante dos Estados Unidos de Donald Trump. Para setores do empresariado brasileiro, porém, a única boa notícia no atual governo foi o acordo entre União Europeia e Mercosul, costurado durante 20 anos pelos governos anteriores e hoje ameaçado pela escandalosa destruição da Amazônia. A Europa precisa decidir: se continuar comprando carne de desmatadores e produtos empapados de agrotóxicos, o agronegócio predatório vai continuar se sentindo à vontade para ampliar os dias de fogo, estimulado pelo perverso que hoje lidera o Brasil.

Pensamento do Dia


Nossas reformas

Dia desses li que nos últimos dez anos o Brasil perdoou nada menos que US$ 46,1 bilhões em juros e multas de dívidas tributárias. Em tempos de tantas reformas destinadas a salvar a Pátria poderíamos começar com essa.

O Banco Mundial divulgou, recentemente, uma pesquisa segundo a qual a poluição atmosférica – e só ela – causa perdas de US$ 4,9 bilhões à economia brasileira. O prejuízo viria das mortes prematuras, gastos com doenças e perda de produtividade. Eis aí, seguramente, uma outra reforma a ser urgentemente encetada – sugeriria que começasse pelo “pó preto” que causa doenças e mortes em Vitória há décadas.


Há também os acidentes de trânsito. Segundo o Ministério da Saúde custam ao Brasil US$ 0,6 bilhão a cada ano. Que tal reformarmos nossas vias? Taparmos nossos buracos? Construirmos ferrovias neste país tão grande? Utilizarmos mais nossos rios como hidrovias? Vai aí, sem dúvida, uma outra importante reforma – e com ela estaríamos estancando outra sangria, a da logística. Segundo a Confederação Nacional da Indústria nossa economia perde US$ 7,8 bilhões a cada ano pela falta de um sistema de transporte de cargas racional.

Não nos esqueçamos da corrupção, cujo impacto estimado na economia do Brasil alcança US$ 21,5 bilhões a cada ano, ou inacreditáveis 2,3% do PIB – dados de 2013. Acabar com esta roubalheira é possível – basta reformar o nosso mundo das leis.

Uma outra reforma simples seria a do tabaco. Acredite: só ele nos causa um prejuízo de US$ 14,9 bilhões a cada ano, ao elevar nossas despesas com saúde pública e reduzir a produtividade de nossa força de trabalho.

Termino esta pequena relação com o pagamento dos juros da dívida pública – algo em torno de US$ 86 bilhões a cada ano. Eis aí algo que justificaria o uso imediato de alguma riqueza nacional, dessas atualmente exploradas a preço de banana, para voltarmos a poder dispor de quase metade do nosso orçamento.

Somei tudo. Cheguei a US$ 181,8 bilhões falando apenas de aspectos básicos demais. Uma ação imediata e firme sobre estes aspectos – e só eles – já daria um vigoroso impulso à economia e principalmente ao ânimo dos brasileiros. E eis aí algo que uma verdadeira mobilização nacional poderia conseguir, salvando as gerações seguintes e talvez a própria identidade nacional. Acorda, Brasil!

Somos a primeira pessoa do plural

Zbigniew Pronaszko
Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.

Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.

Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.

Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.

Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.

Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.
José Luís Peixoto

"Bolsonaro ignora o meio ambiente e o que a ciência diz'

Nos anos 1970, o cientista brasileiro Eneas Salati demonstrou que a Amazônia produzia metade da sua própria chuva. Antes disso, o dogma era que a vegetação é simplesmente consequência do clima e não tem qualquer influência sobre ele. O que Salati foi capaz de demonstrar, numa pesquisa que quebrou paradigmas, é que, quando a umidade vem do Atlântico tropical, numa massa de ar em direção ao oeste, e derrama sua chuva perto da costa atlântica, até 75% dessa umidade volta para a atmosfera por meio da evaporação ou transpiração através das folhas. Você pode ver isso acontecendo com a umidade saindo do topo da floresta, após uma tempestade. Assim, tudo está disponível para se tornar chuva mais para o oeste. A conclusão foi que a umidade se recicla cinco ou seis vezes até chegar à parede alta dos Andes. A massa de ar sobe, esfria e libera uma enorme quantidade de chuva, que abastece os 20% de água doce do mundo, que é o sistema fluvial do Amazonas. Essa foi a base de tudo.


Desde o início, havia a pergunta óbvia de quanto desmatamento poderia causar a degradação desse ciclo. Porque quando a chuva cai, e quando não há floresta, ela escorre e não fica disponível para reciclagem. Carlos conseguiu alguém para fazer um modelo relacionado a pergunta há uns dez ou 15 anos. E a conclusão foi que provavelmente cerca de 40% a 50% [de desmatamento degradaria o ciclo natural de chuvas de modo irreversível]. Isso é muito longe de onde as coisas estavam na época e até mesmo de onde estamos agora. Mas outras coisas têm acontecido. O uso extensivo do fogo, que seca a floresta ao redor, não só destrói o que queimou, como penetra e seca a floresta. Assim, no ano seguinte, ela está mais vulnerável ao fogo. Outra coisa, é claro, é a crescente presença da mudança climática. A discussão que Carlos e eu tivemos e que levou ao artigo na Science Advances é que os fatores estão agindo juntos numa espécie de energia negativa. E quando você olha para essas secas históricas, é muito difícil não concluir que essas são as primeiras oscilações do que poderia se rum ponto de inflexão na região amazônica. 
Thomas Lovejoy, conselheiro ambiental dos ex-presidentes americanos Ronald Reagan, Bill Clinton e George W. Bush e ex-conselheiro-chefe do Banco Mundial para biodiversidade, estuda a Amazônia desde 1965

'Aux armes, citoyens, formez vos bataillons'

Com uma clareza dificilmente vista, estamos assistindo a mais um país europeu, dessa vez a França, por intermédio do seu presidente Macron, realizar ataques diretos à soberania brasileira, que inclui, objetivamente, ameaças de emprego do poder militar
General Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército brasileiro

O que ameça Bolsonaro

Admitir de público, quem dentro do governo o faria? Se o fizesse poderia piorar a situação. Mas de outra coisa não se falava, ontem à tarde, em gabinetes próximos ao do presidente Jair Bolsonaro e em outros em ministérios ligados diretamente ao assunto.

Acumulam-se evidências, indicações e sinais de que a economia não decolará tão certo, antes pelo contrário. O que mais preocupa no momento: a fuga de investimentos estrangeiros da Bolsa de Valores (B3) estimada em quase 20 bilhões de reais de janeiro até a semana passada; no mercado à vista, no mesmo período, foram R$ 9,6 bilhões;


A Rússia começou a produzir soja em larga escala e a China, em guerra comercial com os Estados Unidos, a comprá-la; isso significa que comprará menos do Brasil.

O crescimento do PIB brasileiro no próximo trimestre será abaixo do esperado; e a projeção de crescimento para o trimestre seguinte não é nada boa.

Enquanto isso... Cerca de 50 milhões de brasileiros, segundo cálculos do professor José Pastore, estão desempregados e na informalidade sem nenhum tipo de proteção social. É nitroglicerina pura.

"Está interferindo? Ora, eu fui [eleito] presidente para interferir mesmo, se é isso que eles querem. Se é para ser um banana ou um poste dentro da Presidência, tô fora.” 

Imagem do Dia

Mar de Aral (Uzbequistão.) se foi em 2018

Bolsonaro, nosso homem cordial

O governo Bolsonaro tem sido marcado pela ambivalência. No terreno econômico, vem inegavelmente conduzindo um programa de modernização. Exemplos óbvios são a reforma da Previdência e a MP da Liberdade Econômica, mas há uma extensa agenda a frente.

Reforma tributária, abertura econômica, acordo com a União Europeia, o programa de concessões e privatizações e a autonomia do Banco Central.

O elemento modernizador não se restringe à economia. É uma evidente ruptura com a tradição de clientela da política brasileira a forma de montagem do governo, ainda na transição, sem o recurso ao toma-lá-dá-cá que danificou nossa democracia, em tempos recentes. Pouco importa, nesse raciocínio, se tudo isso fez parte de um plano ou foi obra do improviso.

A consequência é evidente: há um Congresso funcionando com mais autonomia, ainda que com maior custo na tomada de decisões.

Ainda recentemente escutei de um executivo do governo, após uma votação renhida, no Congresso: “Agora é preciso convencer deputado”. Achei boa essa ideia. Deputado está ali para isso mesmo, para convencer e ser convencido, ao invés de votar em função da cota de ministérios do partido. 

O ponto é que há um elemento arcaico neste governo, e Bolsonaro, ele mesmo, parece funcionar como seu protagonista. Não me refiro aqui a seu estilo polarizador, seus elogios ao regime militar, ao humor de gosto discutível, aos bate-bocas com jornalistas e coisas do gênero.

Tudo isso era conhecido já antes das eleições e não há por que ninguém fingir muita surpresa com isso. Bolsonaro passou a campanha inteira elogiando o coronel Brilhante Ustra, e mesmo assim recebeu seus quase 58 milhões de votos.

Também não me refiro a políticas públicas. O professor Carlos Pereira enfatizou corretamente a necessidade de distinguir, para quem quer fazer boa análise política, o que são divergências sobre políticas públicas e o que é retrocesso institucional. Isto faz parte do aprendizado democrático. Não é porque alguém discorda de algum item da política ambiental ou educacional do governo que nossa democracia foi pelo brejo.

Este tipo de raciocínio, muito comum no ambiente contaminado das redes sociais, diz mais sobre o caráter autoritário de quem faz a crítica do que do governo que é criticado.

O elemento arcaico, que vai ganhando corpo no governo, reside na atitude do presidente diante das agências e instituições de Estado. Os casos são conhecidos. A evidente ingerência nos comandos da Policia Federal, no Rio de Janeiro, e na cúpula da Receita Federal; a ideia sem cabimento de nomear o filho para a embaixada em Washington, o veto à lista tríplice para a direção das agências reguladoras, na nova legislação aprovada pelo Congresso, e a reiterada crítica à política de financiamento a filmes, que segundo o presidente não deveriam atentar contra a moralidade dominante no país.

Bolsonaro diz que intervém nos órgãos de Estado porque pode. Porque tem poder, em última instância. É verdade. Ele pode, nos limites da lei, mas não deve. É verdade que o presidente é superior hierárquico ao ministro da Justiça, a quem se subordina o superintendente da Polícia Federal, que por sua vez está acima dos superintendentes regionais. Em última instância ele pode cortar todo este caminho. Mas não deve.

A República é feita disso. De contenção e respeito a esferas de poder. Bolsonaro diz que não quer ser um presidente banana. A expressão é boa. Diria que, em uma república, o presidente precisa se comportar, liturgicamente, como um banana, se isso significar respeitar a autonomia de agências reguladoras e conter seus próprios ímpetos voluntaristas. Tudo que o poder permite, mas a prudência não recomenda.

Bolsonaro vai se revelando, gradativamente, como um político tradicional. Um político do varejo, preocupado com pequenas coisas que podiam fazer sentido a um deputado de nicho, não a um presidente.

Nem o homem de ruptura, na visão de seus entusiastas, nem o fascista, nas alegorias da oposição de sempre.

O que vai surgindo é uma expressão muito comum do nosso velho patrimonialismo. Da “cordialidade”, no sentido dado por Sérgio Buarque de Holanda, em que as relações familiares parecem servir de modelo à coisa pública e em que o privado, seja ele feito de gosto ou interesse, se confunde perigosamente com o que é público, e assim deveria permanecer.
Fernando Schüler

A volta dos que não foram

Presidente ninguém muda. Ele é político e sabe o que fazer. Quem gosta, gosta, quem não gosta pode pedir para ir embora
Tereza Cristina, ministra da Agricultura

Ele não pode mesmo ser um banana. Mas virou um abacaxi

Que fruta deveria ser Bolsonaro? Um bom presidente da República deveria fazer bem à saúde do Brasil. Saúde interna e externa. Claro que um presidente tem de interferir. Ora essa. Bolsonaro não é um banana. Seria uma comparação injusta com a fruta. Bananas têm polpa macia e doce. São versáteis. Baixam a pressão arterial, ajudam a combater o estresse, a depressão e a diarreia intestinal, não verbal. Não, Bolsonaro nada tem a ver com bananas, mesmo que sejam verdes e amarelas. Chegou a parecer banana-nanica num passado nem tão remoto. Pensa que virou ouro.

Afinal, Bolsonaro não foi eleito para mudar tudo o que está aí? Prometia melhorar os órgãos públicos e a imagem do Poder, sem aparelhamento, sem nepotismo, sem toma-lá-dá-cá. Com equilíbrio emocional e mental, sem viés, o país atrairia parceiros, “noivos e noivas”, sem dar a entender que quer mandar em deus e o mundo. A qualquer rusga ou suspeita de traição, não pegaria a arma sob o travesseiro para abater o cônjuge. Ou melhor, o ‘conge’, no novo dicionário amoroso do Planalto, grande contribuição de Sergio Moro, hoje frutinha escondida na salada de ministros, que disfarçam ou emudecem para não apodrecer na geladeira.

Esse é um artigo dedicado à nutrição, como você pode ver. À mesa com Jair. Busco receitas tropicais de bananas sem agrotóxico. Tá difícil. Pode ser um purê de banana-da-terra. Ih, terra não, porque está queimando por crime das ONGs e dos nortistas coniventes. Banana queimada tem sabor horrível. Esse texto é sobre frutas, nada de carne vermelha. O fritador de hambúrguer quase foi cortado do master chef do Planalto nesta semana. Mas Eduardo peitou a insegurança súbita do pai diante da votação secreta do Senado para a embaixada. Insiste em voltar para os EUA pela porta da frente e armado, porque “não existe diplomacia sem armas”.

Aqui vai uma dica para o presidente e para a Michelle, que precisa se ocupar da mesa do marido em vez de anunciar as lingeries que ganhou de presente. Consultei minha nutricionista para saber quais frutas ajudam no equilíbrio emocional, saúde mental e controle da ansiedade. Vale para Bolsonaro e todos os que estão sob seu jugo, porque afinal quem manda é ele e anda desenfreado como um cavalo selvagem.

“Banana, kiwi e abacate”, disse a nutricionista. Banana é a principal. “São frutas ricas em L-triptofano, hormônio que sintetiza a serotonina, o hormônio do prazer, que diminui a ansiedade”. Uma boa. Presidente, por que o senhor não vira banana transgênica? Foi desenvolvida pela Austrália. É uma “banana dourada”. Para o senhor, que adora condecorações e medalhas, é o tipo perfeito. Esqueça o prefixo “trans”, sei que o senhor é alérgico.

O que não dá, presidente, é o senhor ter virado um abacaxi. Para todos. Para a Polícia Federal, a Receita, o Coaf, Inpe, Inep, Enem, Ibama, Fiocruz, BNDES, Ancine, Itamaraty. Para seus ministros e aliados. Para os militares. Para a Lava-Jato. Para o Norte e Nordeste. Para os vizinhos e o mundo. Um abacaxi abusador de autoridade, exterminador da cordialidade. Se não estivesse acima da lei, o senhor seria processado por todas as ofensas, provocações e acusações sem prova contra pessoas físicas e jurídicas. Um abacaxi que leva ao paroxismo uma propriedade das frutas cítricas: a acidez. Não é recomendado a um país que sofre de azia.

Para você, leitor subnutrido de esperança, descobri uma fruta exótica, a pitaya, que vem do México. Ela “ajuda a eliminar os radicais livres”. Hoje, o maior radical livre está no Poder Executivo. Preciso incluir a pitaya nas compras do mês.

Fumaça das queimadas é um alerta de que toda manipulação tem seu limite


A manipulação de informação por parte de um poder é tão antiga quanto a humanidade. Historiadores apontam que embates já existiram entre os responsáveis por escolher quais versículos, quais cartas entre apóstolos e quais trechos da passagem de Jesus que deveriam ser editado num livro que ganharia o nome de Bíblia. Mais de 2.000 anos depois, pouco mudou e a história está repleta de episódios em que governos tentam organizar os fatos a seu favor, a demitir aqueles que optam pelos dados científicos e, se necessário, cortar o financiamento de estudos sobre “verdades inconvenientes”.

Nos anos 80, o mundo se deparou com a ousadia de europeus que insistiram que a explosão de Chernobyl não representava uma ameaça. Afinal, a nuvem pararia nas fronteiras e, claro, respeitaria a soberania nacional. Trinta anos depois, doenças entre as pessoas atingidas pela irradiação derreteram aquela versão criminosa.


No ano passado, ao caminhar antes da abertura da Copa do Mundo pelas redondezas do estádio de Moscou, me deparei com um monumento em homenagem a torcedores. Aquela arena guardava um dos segredos mais terríveis da história do futebol e que, em plena era soviética, jamais foi revelada. O local foi inicialmente sede do British River Yacht Club. Mas, em 1917, com a revolução russa, o campo foi tomado pelo governo e transformado em um campo para abrigar o esporte preferido da classe operária: o futebol.

Nos anos 50, o Estádio Lenin seria erguido, com mais de 100 mil lugares. Mas foi em outubro de 1982 que a tragédia ocorreria. Num jogo válido pela Copa Uefa, o Spartak receberia os holandeses do FC Haarlem. O inverno já começava a dar seus primeiros sinais e, naquela noite fria, o fato de o jogo ter atraído apenas 15.000 pessoas levou as autoridades a tomar a decisão de apenas abrir um trecho pequeno da arquibancada. O restante ficaria coberta de neve e de gelo.

O jogo caminhava para o seu final com o placar de um a zero, o que dava a classificação para o Spartak. Antes do apito final, como em qualquer parte do mundo, uma parcela dos torcedores russos começou a se dirigir para fora do estádio, em direção ao metrô. Mas, já nos acréscimos, o time de Moscou faria um segundo gol. E, também como em qualquer parte do mundo, os torcedores que estavam fora tentaram voltar para as arquibancadas. O problema é que se depararam com uma ala violenta dos torcedores do Spartak, que estavam também de saída e os impediu de continuar até os assentos.

Presos no túnel, impossibilitados de voltar ou avançar, na escuridão e com um piso escorregadio com o gelo que jamais fora limpo, aqueles torcedores acabariam esmagados pela massa. A informação, porém, seria censurada. Moscou vivia os últimos dias de Leonid Brezhnev e uma crise econômica profunda. A cultura da censura, portanto, se impôs. Quatro meses depois, um processo totalmente sigiloso foi realizado. E, mesmo assim, o administrador do estádio receberia uma pena de somente um ano e meio de trabalhos forçados. Nem o julgamento e nem o caso jamais seriam publicados na imprensa local.

A polícia chegou a alertar aos familiares que seriam presos se contassem o que havia ocorrido. Num enterro realizado às pressas, os parentes tiveram menos de um hora para se despedir das vítimas. Foi apenas no apagar das luzes do regime soviético, em 1989, que as primeiras notícias começaram a ser divulgadas em Moscou. Sete anos depois da tragédia, o que os russos descobriram foi uma tragédia de ampla escala. Oficialmente, 66 pessoas morreram. Mas algumas testemunhas chegam a apontar que o número real poderia atingir a marca de centenas. A verdade era sufocante.

Mais recentemente, quando um jovem em Pequim foi confrontado com a foto emblemática do massacre de Tiananmen — a do manifestante enfrentando os tanques — o chinês se surpreendeu e admitiu que nunca tinha visto aquela imagem. Por 30 anos, o regime comunista tentou de todas as formas a manter aquela imagem censurada de seu próprio povo.

No dia 11 de março de 2004, a capital espanhola foi atingida por atentado terrorista, matando 192 pessoas e ferindo cerca de 1.700. Às vésperas de uma eleição, o Governo deu ordens para que a narrativa apresentada fosse de um ataque do grupo separatista ETA. Uma mentira oficial que se perpetuou por 56 horas. Mas quando a verdade surgiu, os eleitores puniram o Governo nas urnas.

A longa biografia da censura e manipulação ganhou nesta semana mais um capítulo. E foi no Brasil. Em 2019, quando circula pelo mundo fotos nos principais jornais sobre a escuridão que se fez numa das maiores cidades do planeta, não adianta qualificar o fato de “sensacionalismo”, na esperança de que a vulgaridade intelectual vença. Tampouco adianta culpar termômetros colocados em locais “errados”, denunciar um complô marxista e nem cantar o hino nacional sobre troncos mortos.

O Governo, sem provas e como nos momentos mais primários da busca por uma nova narrativa, optou por encontrar culpados entre as ONGs. Apenas para ser alvo de uma imensa reação de desprezo internacional. Como em um trailer de um filme futurista, a fumaça das queimadas que se espalhou mais parecia ser um alerta de que toda manipulação tem seu limite. E que um Governo democrático tem obrigações perante seus cidadãos. A escuridão veio com um recado claro: a verdade sufoca.