domingo, 27 de março de 2022

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro aposta em ufanismo nos 200 anos da Independência

O governo tem sido cobrado a apresentar um plano para celebrar o bicentenário da Independência. Talvez seja melhor deixar a ideia para lá. Uma campanha da Secretaria Especial da Cultura expõe a visão bolsonarista da efeméride. É uma visão caricata, apoiada em patriotadas e mistificações.

“A Independência do Brasil foi conquistada com um brado. Nossa liberdade, anunciada com uma exclamação”, derrama-se o site oficial. “Na bravura, que arde como brasa, se revigora o espírito patriótico que, um dia, apontando o céu, nos bradou a liberdade”, prossegue.

O portal também carrega nas tintas ao descrever Pedro I. O herdeiro da Coroa portuguesa emerge como um herói sem defeitos. “Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação”, exalta o texto chapa-branca.


O palavrório falsifica a história ao narrar uma Independência fictícia. A cena épica só existiu na imaginação de Pedro Américo, autor do quadro “Independência ou Morte”, de 1888. O pintor plagiou uma tela do francês Ernest Meissonier, que retratou Napoleão na batalha de Friedland. Segundo testemunhos da época, o brado tupiniquim não foi tão retumbante. O príncipe estava abatido por uma infecção intestinal, vestia roupas simples e se equilibrava sobre uma mula.

“A tentativa de construir um herói idealizado, com sua espada flamejante a libertar um povo, certamente não se destina a quem tenha algum conhecimento da História do Brasil”, critica a historiadora Isabel Lustosa. “O relato romantizado segue o roteiro da construção do mito do herói. Esses exageros não contribuem para entender o que foi a Independência”, acrescenta a autora do livro “D. Pedro I: um herói sem nenhum caráter”.

Entender as contradições da história não é o objetivo das cavalgaduras federais. Monarquistas, olavistas e generais de pijama preferem simplificar o passado em narrativas ufanistas. A fórmula já foi usada pela ditadura em 1972, quando a Independência fez 150 anos.

Os militares promoveram uma “gigantesca e bem-sucedida operação de apropriação do acontecimento histórico”, escreve a historiadora Heloisa Starling na última edição da revista Serrote. A propaganda exaltava o regime e estimulava o orgulho patriótico. Num lance espetaculoso, os restos mortais do imperador foram trazidos de Portugal e sepultados novamente no Museu do Ipiranga.

O governo Médici também recrutou artistas populares, como Roberto Carlos, para vender a história oficial. “É isso aí, bicho. Vai ter muita música, muita alegria. Porque vai ser a festa de paz e amor e todo brasileiro vai participar cantando a música de maior sucesso no país: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas”, cantarolou o Rei, em gravação resgatada pela professora da UFMG.

Bolsonaro conhece o potencial do Sete de Setembro para mobilizar o eleitorado conservador. No ano passado, usou a data para promover atos golpistas. Ao convocá-los, subiu num cavalo e prometeu liderar uma “nova Independência do Brasil”. Em 2022, o capitão tentará usar o bicentenário como arma de campanha. A efeméride será celebrada a 25 dias do primeiro turno. O ufanismo do portal do governo é uma amostra do que vem por aí.

Guerra na Ucrânia inverte papel da Rússia de 1942

Na primavera europeia de 1942, as tropas da Alemanha nazista já haviam atropelado a Ucrânia e a Bielorússia, então ainda pertencentes à esfera soviética, e avançavam cada vez mais URSS adentro. Para os generais do Alto-Comando de Josef Stálin, não parecia haver dúvida: a Wehrmacht de Adolf Hitler tentaria conquistar o maior troféu daquela frente continental — Moscou, capital do Império Soviético. Erraram feio. A meta dos alemães era sitiar, ocupar e destruir Stalingrado, centro industrial e polo armamentista do país, que ainda por cima portava o nome do inimigo comunista.

Seguiu-se um épico de ferocidade histórica. Cada cidadão russo da cidade recebeu um fuzil e a mesma ordem de número 227: “Nenhum passo atrás”. Quem se rendesse ao inimigo podia ser executado. Também o exército invasor foi inequívoco nos seus comunicados aos moradores de Stalingrado: civis do sexo masculino (440 mil habitantes à época) seriam fuzilados. As mulheres, deportadas para trabalhos forçados na Alemanha.


De início, a um custo de mais de 200 mil mortos (sim, 200 mil), os russos conseguiram rechaçar as primeiras investidas nazistas. Porém logo ficou claro o tamanho do desequilíbrio de forças. A saída encontrada pelo lendário marechal Georgy Jukov e seu colega Aleksandr Vasilevsky consistiu em transformar Stalingrado numa ratoeira. Ratoeira para os 300 mil soldados alemães e romenos que nela entrassem. Montaram um eficaz anel defensivo nas montanhas ao redor e foram fechando esse anel contra os invasores da cidade. Ao final de seis meses de combates, os russos tinham em mãos 100 mil exauridos prisioneiros de guerra. Os 70% restantes do 6º Exército hitleriano morreram de frio, fome ou em combate. Do lado vitorioso, o horror não foi menor — sobraram apenas 34 mil civis, dentre os 440 mil russos que viviam ali. São cultuados como heróis até hoje. A Batalha de Stalingrado mudou a maré da Segunda Guerra Mundial.

Passados quase 80 anos, assistimos ao desenrolar de um novo épico. Desta vez, o solo é ucraniano, e as tropas russas de Vladimir Putin desempenham o papel de invasor, não mais de defensor. No mais, o paralelo histórico e o denominador comum saltam aos olhos. Falta saber se o embate final nas ruas de Kiev se dará antes ou depois de um cessar-fogo, antes ou depois da destruição final do que resta de vida também em outras cidades fantasmas do país.

Manuais de guerra ensinam que travar batalhas urbanas tende a ser oneroso para a força militar invasora. Esse tipo de combate neutraliza boa parte das vantagens táticas que costumam favorecer o atacante. Sabidamente, tanques, blindados, mísseis e artilharia pesada de pouco servem em combates corpo a corpo, casa a casa, rua a rua. Para um exército defensivo, mesmo quando inferior em armamento ou soldadesca, a disposição de combater qualquer que seja o custo em vidas pode ser decisiva. Volodymyr Zelensky, pelo jeito, optou por essa estratégia para defender a sua Ucrânia. Do ponto de vista estritamente estratégico, argumenta o historiador Benjamin Carter Hett, do Graduate Center da City University de Nova York (Cuny), pode fazer sentido — mesmo que Putin bombardeie as cidades ucranianas até elas virarem ruína, as montanhas de destroços serão usadas de amparo para seus defensores.

Mas e do ponto de vista moral e humano, não há limite? Pelas contas mais recentes do Unicef, em apenas um mês de guerra, 4,3 milhões de crianças ucranianas estão refugiadas ou foram deslocadas — mais da metade da população infantil do país. O custo de uma infância roubada com tanta brutalidade é alto. Que tipo de sociedade brotará desse colapso civilizatório? Historiadores e aqueles que já vivenciaram guerras sabem que a desesperança maior vem no day after, não durante o sufoco. Enquanto há guerra, o ser humano foca no essencial — tentar sobreviver e esperançar pelo fim dos combates. Apenas quando a guerra acaba podemos nos dar ao luxo de perceber o horror passado e de ver do que fomos capazes. Só então começamos a julgar e a doer no mundo que sobrou.

Não será muito diferente no conflito atual, qualquer que seja o desfecho. É provável que o ucraniano Zelensky esteja seguindo ao pé da letra o ensinamento básico de Napoleão: nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro. E erros é o que não falta à estratégia militar de Vladimir Putin. Voltamos então a Stalingrado? Ou a algo pior? Misericórdia.
Dorrit Harazim

Por um tempo sem heróis

1.Três semanas depois, o crime continua e vai continuar até não se sabe quando – cada vez mais destruidor, violento, revoltante, porque se mantém toda a sua cruel desumanidade e se agravam as suas tremendas consequências. Consequências para a Ucrânia e o povo ucraniano, em primeiríssimo lugar, mas também para outros países e povos: para as relações entre eles, para as suas condições de vida e para as garantias da soberania nacional. E consequências para esse valor supremo que é a paz no mundo. Assim, de que mais poderei aqui falar?


2. As imagens que sem cessar nos chegam de cidades bombardeadas, bairros residenciais e edifícios atingidos, a arder ou em ruínas, famílias com falta de tudo ou já destroçadas, inumeráveis feridos, mortos até abandonados nas ruas, velhos, mulheres e crianças (crianças com um sorriso lindo ou um olhar de espanto) em fuga do invasor estrangeiro, em estado penoso, deixando a sua pátria, a sua terra, a sua casa – as imagens falam por si.

Não é só, não é tudo, há “outro(s) lado(s)”? Pode ser. Mas tais imagens evidenciam uma realidade terrível, com uma causa indesmentível. Face a elas, e a tudo o mais que se sabe, não há, não pode haver, justificações nem atenuantes para o que a Rússia de Putin está a perpetrar. Justificações ou atenuantes só podiam existir se a Rússia estivesse a responder a uma invasão semelhante, ou para evitar uma sua comprovada iminência, o que obviamente não é o caso.

3. Há muitas situações horríveis a ocorrer noutras latitudes? Claro que sim, embora do ponto de vista da paz e da segurança mundiais, incluindo de um eventual conflito nuclear, não se possam de nenhum modo comparar à invasão da Ucrânia. Além de, insisto, nenhum crime poder justificar outro crime. Se há, porém, como em geral há, dolosas ou culposas ações, circunstâncias, fatores antecedentes, a outros atribuíveis, que contribuíram para tais situações, no caso a agressão armada russa, devem ser estudados, analisados, ponderados. Mas para procedimentos e efeitos futuros, não para desculpar Putin e o seu regime autocrático.

Idealmente é assim. Realisticamente, porém, esses antecedentes têm de ser tomados em conta quando se “negoceia” o, por todos os motivos, indispensável cessar-fogo e o regresso dos invasores ao seu país, mantendo a Ucrânia a sua soberania nacional. Com, pelo menos, uma “limitação”, pois, de toda a evidência, a Ucrânia será forçada a renunciar a vir a integrar a Nato, como desejava e, como se vê, necessitava.

4. O povo ucraniano e o seu Presidente, Volodymyr Zelensky, têm demonstrado grande espírito de resistência e de coragem na defesa da sua pátria. Coragem física e moral. Mas Zelensky precisará de ainda muito mais coragem moral – de par com lucidez e visão políticas, sentido da medida e capacidade argumentativa – nas “negociações” para a paz. Porque, a haver um mínimo de justiça ou de decência, o máximo seria a Ucrânia admitir a dita renúncia à integração na Nato, e a Rússia pagar a “reconstrução” do país. Parece claro, porém, que a primeira concessão não chegará para satisfazer Putin, e a segunda pretensão seria puramente lírica.

Então, face à inevitabilidade, dado o seu imenso potencial bélico, de uma vitória militar russa, com maior destruição e sofrimento para a Ucrânia e os ucranianos, Zelensky, repito, precisa de ainda muito mais coragem moral para procurar e assumir um entendimento com outras “concessões”, preservando a dignidade nacional, do que para se bater de armas na mão e morrer…

5. Morrer, como tantos já morreram, em defesa da sua terra, numa luta desigual, depois de matarem muitos russos, na sua imensa maioria também “inocentes”, forçados a fazer uma guerra injusta e sem causa(s). Os que morrem são os heróis que Zelensky, compreensivelmente, não se tem cansado de glorificar e condecorar a título póstumo. O que me faz lembrar Brecht: “Pobre pátria que precisa de heróis…”

Pois é, ansiamos todos, e neste momento à frente de todos o povo da Ucrânia, por um tempo e um mundo em que não haja, não sejam necessários, “heróis” – mas apenas mulheres e homens… Humanos.
José Carlos Vasconcelos

Os militares e a política

A participação dos militares na política brasileira sempre foi objeto de críticas, estudos e justificativas. A verdade é que a República foi proclamada no Brasil como consequência de um golpe de estado contra o Imperador, que uniu o pessoal fardado aos produtores agrícolas muito contrariados com o fim da escravidão, ocorrida em 1888. As duas forças se uniram, derrubaram o Império e embarcaram D. Pedro II no navio em direção a Europa. O Imperador faleceu no hotel Bedford em Paris, em 1891, pobre, mas com os bolsos cheios de terra do Brasil. O símbolo da saudade de seu país.

O Brasil, depois do Império, foi entregue a dois marechais. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Além de questões objetivas, havia uma doutrina política em moda na época. Era o positivismo do francês Augusto Comte, que teve alunos brasileiros e chegou ao Brasil por intermédio de professores das escolas militares. O princípio básico apontava no sentido de criar um sistema chamado de ditadura republicana que criava um governo democrático, mas protegido contra eventuais rebeliões da massa. Era o temor de que se repetisse aqui eventos semelhantes aos da Revolução Francesa.

Os primeiros momentos da jovem República se constituíram em esforço para evitar o retorno da Monarquia, fortalecer o sistema e evitar a desagregação territorial do país. Militares tiveram forte presença neste período que vai até a posse do primeiro presidente civil, Prudente de Moraes. Mas os militares perceberam, também, que, do ponto de vista operacional, as forças armadas brasileiras eram mal equipadas, mal distribuídas no território nacional e com baixo nível de comando. No entanto, para modernizar o Exército era necessário modernizar o país. A partir desta compreensão, a política entrou nos quarteis.

A revolta dos 18 do Forte, em Copacabana, no 5 de julho de 1922 foi o primeiro sinal de que o vento começava a mudar. O segundo 5 de julho, o de 1924, ocorreu depois da tomada da cidade de São Paulo, do enfrentamento com tropas do governo federal e o início da marcha da coluna Miguel Costa, depois chamada de Coluna Prestes. A coluna saiu de São Paulo, foi a Foz do Iguaçu e dali iniciou um impressionante roteiro que levou seus integrantes até o extremo nordeste brasileiro. Mais de 20 mil quilômetros a pé. Os militares conheceram a realidade brasileira. Na volta, fugindo dos jagunços que os perseguiram, buscaram exílio na Bolívia e no Paraguai.

Os cadetes da coluna Prestes se tornaram oficiais e participaram ativamente do movimento militar de 1964. Antes, alguns deles, além de integrar do governo Vargas, trabalharam na Força Expedicionária Brasileira (25.834 homens) que lutou na Itália contra o exército nazista de Hitler. E assistiram em Nápoles a libertação de Roma, depois da queda dos fascistas, quando Mussolini foi pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina em Milão. A participação na guerra colocou os militares brasileiros ao lado do pensamento liberal norte-americano, que prevaleceu ao final do conflito. O comunismo também venceu com o Exército Vermelho de Stalin. No Brasil, o Partido Comunista foi fundado em 1922 em Niterói (RJ). Tempos depois, Prestes, um dos comandantes da coluna, se declarou comunista e se transferiu para Moscou.

O presidente Ernesto Geisel comandou a abertura lenta e gradual do regime político no Brasil. Seguiu as diretrizes de seu braço direito, general Golbery do Couto e Silva, que tinha por objetivo restaurar o estado de direito pleno no Brasil e retirar os militares da política. E conseguiu. Ele viveu o tempo do regime de 64 em que os oficiais se integraram a blocos de opinião dentro das forças armadas. O objetivo da abertura política foi mandar os militares de volta aos quarteis, restabelecer a hierarquia e a disciplina. Antes, o presidente Castello Branco extinguiu o posto de Marechal e estabeleceu uma série de medidas administrativas para reorganizar a carreira militar.

O presidente Bolsonaro caminha no sentido inverso. Ele pretende que os militares participem mais da política nacional. Ele se protege de um eventual impeachment com o pessoal de alto coturno a seu lado. Nos países desenvolvidos os civis mandam nos militares. Nas ditaduras e regimes de exceção ocorre o contrário. O Ministério da Defesa é um cargo civil. Na atual administração se transformou em posto militar. É nesta linha que o presidente Jair Bolsonaro vai tentar a sua reeleição. Acompanhado por um vice quatro estrelas, general Braga Neto. É caminhar na contramão da história do Brasil.
André Gustavo Stumpf

Brasil, entre o risco e o apagador

 


Os Putins brasileiros

Cândido Portinari
Há 30 dias, assistimos perplexos e horrorizados as imagens das consequências das bombas jogadas por Putin na Ucrânia. Choramos e nos indignamos com esta violência que destrói prédios, força migração, mata civis, inclusive crianças e mulheres. Nem todos, porém, lembramos da nossa Ucrânia silenciosa e permanente ao nosso redor.

Há décadas, milhões de brasileiros, sobretudo do Nordeste, são forçados a abandonarem suas casas, em busca de sobrevivência em outras partes. As casas não serão destruídas por bombas e mísseis, mas já eram tão degradadas que pareciam bombardeadas por dentro, durante a própria construção precária. Nossos migrantes são chamados de pau de arara, mas de fato são nossos ucranianos.

Vinte milhões destes ucranianos brasileiros sofrem hoje a violência da fome. Dormem sem comer, com a geladeira e armários vazios. E ainda sofrem a violência de acordarem sem ter o que comer, mas assistindo pela televisão programas de conversas ao redor de mesa farta de comida. Depois, com os olhos ávidos e os estômagos vazios, assistem programas de culinária e gastronomia, que ensinam como fazer comidas com suculentos filés e apetitosas sobremesas.

Nossa Ucrânia é violenta ao exportar comida e deixar nosso povo como fome, e ainda tripudiar ou ignorar quem passa fome assistindo a abundância e até o desperdício de comida transmitido pela televisão. Esta realidade é violenta contra as mães que têm seus filhos com fome, e sobre as crianças que não entendem o porque de serem excluídas. As crianças da outra Ucrânia pelo menos sabem que a culpa é da guerra, da Russia, de Putin. À violência da fome, soma-se a violência do espetáculo da culinária tão perto e tão longe de suas pobres casas, sem o risco de mísseis e explosões, para explicar porque são tão despossuídos.

Os ucranianos europeus são todos migrantes e despossuidos, a violência é sobre todos, os ucranianos brasileiros sabem que as bombas e as necessidades pesam apenas sobre alguns escolhidos para não sofrerem. Protegidos contra os putins brasileiros. A violência é dupla: pela pobreza que sofrem e pela percepção da riqueza ao lado. Os abrigoa de Kiev são trágicos, mas são democráticos. E são passageiros

Nossas crianças vivem em uma Ucrânia apartada, silenciosa e permanente, não menos malvada e com menos explicação. Em alguns bairros de algumas cidades, sem uma guerra que explique, nossas crianças são vítimas de balas perdidas, como se estivessem ao redor de Kiev.

Se conseguem chegar, suas escolas estão melhores do que as ucranianas destruídas por bombas. Mas as crianças da Ucrânia têm a esperança de que a guerra vai um dia terminar e elas voltarão a suas escolas bonitas, enquanto às nossas continuarão degradadas, semi-escolas, permanentemente. Não por bombas momentâneas enviadas por um autocrata estrangeiro irresponsável e perverso, mas pela perversa omissão histórica, como nossos governantes tratam as crianças pobres do Brasil. Temos uma Ucrânia brasileira e temos Putins brasileiros.

A guerra é aqui

Queria escrever sobre a luz de outono, que banha de dourado o mar e as montanhas. Cheguei de uma temporada fora do Brasil e o cenário, como sempre que aterrisso, me deixou extasiada. Fotografo da janela do avião como se fosse turista de primeira viagem e não carioca. Que cidade linda, longe da guerra na Ucrânia, ao contrário da Europa. Que bênção. 

A realidade do asfalto logo se impôs. A conta do supermercado foi o dobro de dois meses atrás. O número de pessoas – de crianças pequenas a idosos – que me pediu dinheiro na rua, para comer e sobreviver, também dobrou. Ainda não enchi o tanque do carro. Mas o Rio de Janeiro é lindo, não? Essa sensação de leveza durou até assistir ao "Bom Dia Rio" para me atualizar. Eu me senti bombardeada. 

Dois homens presos por manter mulheres em cárcere privado em Niterói, em troca de falsa promessa de atuar em filme. Uma delas chora ao descrever a rotina de escravidão doméstica e abusos sexuais. Na Zona Norte, mulher é encontrada morta a facadas em casa. Mãe de três filhos, gerente de Recursos Humanos, 43 anos, ia ser avó. O suspeito é o namorado, foragido. Família espera justiça divina – a dos homens anda em falta. 

Vigia de posto de saúde é morto com tiro de fuzil em operação policial em Belford Roxo. Em Del Castilho, imagens de câmera mostram assassinato a tiros de inspetor da Polícia Civil em seu carro. Operação policial contra tráfico e roubo de carro em São Gonçalo revela barricadas de entulho, galões e cimento armado erguidas por bandidos nas ruas. Operação da PM começa cedo na Ilha do Governador, perto do aeroporto internacional. No bairro de Santa Teresa, dois policiais baleados no ataque à base da UPP.


Quando os crimes contra a vida acabam, passamos aos crimes contra a cidadania. Idosos sentados nos degraus dos ônibus. Estudantes atrasados na escola por falta de ônibus. Pra não dizer que não falei de flores, uma bailarina com inflamação grave no coração após Covid se recupera e estreia no Municipal. E, no fecho, um bom-dia com a deslumbrante vista do mirante do Leblon.

Passamos ao "Bom Dia Brasil". Tem a guerra lá longe na Ucrânia. E a corrupção em Brasília, no Ministério da Educação: o criminoso desvio de verba pública para pastores amigos de Bolsonaro. Oremos. Também tem a deputada negra acossada pelo racismo e ameaçada de morte após perder a escolta. 

Tráfico internacional de cocaína, com 17 mandados de prisão no Paraná, Santa Catarina e São Paulo. Mergulhadores ocultavam a droga em compartimentos submersos de navio. Contrabando de urânio e ouro no Norte, com oito presos pela Polícia Federal. 

Jornalista há 48 anos, sei que uma de nossas funções, talvez a mais nobre e arriscada, é denunciar e cobrar – além de entreter, informar e provocar o debate. Mas até quando vai durar a guerra do Brasil? Em 2009, numa edição especial da revista Época, sobre os desafios e oportunidades na década seguinte, listei pedidos. Dois urgentes: “acabem com a impunidade e com a guerra civil”.

Deve ser bom ser jornalista no Brasil. Há sempre alguma denúncia, muitos escândalos e crimes. Esse foi o comentário irônico de um amigo que mora em Paris. Respondi: não, não é bom. Dá uma tremenda impotência perceber que escândalos e crimes caem no vazio. A overdose de violência não faz bem à saúde e me faz refletir sobre o jornalismo.

Quem sabe, escrevi há 13 anos, eu possa ser em 2020 uma colunista leve, que recomende livros, filmes e exposições. Não aconteceu. Quem sabe em 2030. 

Os sons da fome

Rolos de arame farpado encerravam os parques , as colinas de mimosas, as praias. Muros de blocos de cimento aramado impediam o acesso ao mar. Nos promontórios onde , outrora, Ethel gostava de observar a sucessão das vagas, antes de ir mergulhar entre os rochedos, avistou, um dia, soldados que cimentavam uma espécie de plataforma para um canhão que girava sobre carris. As janelas do grande seminário tinham sido entaipadas, os padres de sotaina substituídos por soldados e convalescentes. Um pouco por toda a parte tinham crescido muros, redes de camuflagem cobriam os telhados. Os olivais tinham sido minados. Um painel escrito em duas línguas ameaçava os transeuntes exibindo uma caveira. A partir das dezoito horas, começava o recolher obrigatório. numa tarde em que Ethel se atrasou, subia a pé as escadas do prédio quando um tiro cavou um orifício no olho-de-boi do quinto andar e a bala foi espetar-se na parede. A partir daí, sempre que descia as escadas, Ethel não conseguia deixar de introduzir o dedo no orifício para tocar na ponta metálica que não a matara por um triz.

Quando as sirenes ressoavam sobre todos os telhados da cidade, era preciso descer à cave com uma vela acesa, até ao fim do sinal de alerta. Nos primeiros tempos, Justine conseguira arrastar o marido, mas este, depois começou a afundar-se na poltrona, agarrando-se aos braços. « Vão, se quiserem, por mim, prefiro morrer ao ar livre a ser enterrado como um rato»


Não se morria debaixo das bombas dos Ingleses e dos Americanos. Mas morria-se aos poucos, sem comer, sem respirar, sem liberdade, sem poder sonhar. O mar resumia-se a um traço azul, ao longe, entre as palmeiras , por cima dos telhados vermelhos. Ethel passava horas a contemplá-lo da janela do quarto dos pais, como se esperasse alguma coisa. O calabre inclinado de uma grua emergia dos telhados dos hangares, imóvel, inútil. Os barcos haviam naufragado à entrada do porto, já nada podia entrar nem sair. O farol já não se acendia à noite. Nas bancas do mercado, não havia nada, quase nada. As mesmas sombras continuavam a circular em redor dos vencedores , mas agora as cascas e as raízes também se vendiam. Nos jardins, os gatos vadios devoravam-se uns aos outros. Os pombos haviam desaparecido, e as armadilhas que Justine dispunha nas goteiras só serviam para apanhar ratos.


Certa manhã, no mês de Maio, ouviu um barulho desconhecido. A terra tremia, os vidros das janelas , os copos em cima das mesas. Sem perder tempo a vestir-se , correu para a janela. Afastou a cortina. Pela estrada, ao longo do rio, avançava uma coluna , faróis acesos. Camiões, viaturas blindadas, motas, seguidas de tanques. Cobertos de poeira, ar de insectos em marcha para um novo território. Avançavam lentamente, apertados uns contra os outros. Passaram em frente da casa, subiam para norte, em direcção às montanhas. Ethel permanecia imóvel, quase sem respirar. Atrás dos camiões, os tanques abalavam a terra com o barulho das lagartas. As torres blindadas dos canhões apontavam para a frente. Pareciam brinquedos inúteis.


O barulho acordou Justine. Aproximou-se da janela em camisa de noite, braços ligeiramente afastados do corpo, pés descalços encolhidos nas lajes frias. Ethel proferiu, num sopro: "Eles vão-se embora." Não estava muito certa de quem seriam «eles», mesmo depois de, atrás dos tanques , terem aparecido os camiões de caixa destapada onde se encontravam os soldados, e o barulho dos motores se ter tornado ainda mais preocupante. Justine puxava pelo braço de Ethel. "Vem!" Sussurrava como se os soldados nos camiões pudessem ouvi-la. Mas Ethel resistia. Queria vê-los todos, até ao último. Homens envergando sobretudos pesados, apertados uns contra outros, na sua maioria sem capacete, ar extenuado de fadiga. Nem um ergueu a cabeça para observar as janelas. Talvez tivessem medo. Aquela imagem de vazio penetrou no espírito de Ethel , expulsou todas as recordações anteriores. Mais tarde , virá a saber que os homens que avistou da janela da cozinha, em Roquebillière, eram os restos do exército de África do marechal Rommel, a caminho do Norte, na esperança de alcançar a Alemanha pelos Alpes. Ficará a saber que o chefe não ia na coluna, já regressara a Berlim de avião, deixando as tropas abandonadas num território hostil. Tentará imaginar que teriam sentido aqueles homens , na plataforma dos camiões, quando se dirigiam para a barreira crescente das montanhas, com a vibração das lagartas dos tanques que os ensurdecia, no maior dos silêncios, sem chefe, sem ordens, para transpor a pé as montanhas de neve do Boréon, perseguidos pelos lobos.
J.M.G. Le Clézio, "A Música da Fome"

Empregos mal pagos e produtos ruins para os brasileiros?

Na Bahia, lá onde, ainda um ano e meio atrás, uma grande fábrica funcionava a pleno vapor, a natureza vai agora recuperando seu terreno. Em Camaçari, a maior unidade da Ford no Brasil empregava 5 mil funcionários. Durante cerca de 20 anos, centenas de ônibus a ligavam com Salvador; entre ela e o porto industrial de Aratu, uma frota de caminhões circulava noite e dia com automóveis prontos e peças de abastecimento.

No começo de 2021, no entanto, tudo isso acabou: a Ford fechou a fábrica. Hoje algumas das vias de acesso às antigas dependências já estão cobertas de vegetação. Nada indica que no futuro algo volte a ser produzido ali, não há interesse pelas instalações.


Em todo o Brasil ocorre como em Camaçari: o país perde sua indústria a grande velocidade, num processo que se acelerou com a estagnação econômica em 2014, e se agravou com a pandemia de covid-19. Um indício disso é a queda de produtividade na economia.

Uma análise recém-publicada do instituto FGV Ibre mostra que entre 2014 e 2019 a produtividade brasileira minguou ainda mais rápido do que já vinha ocorrendo nas décadas anteriores. Tanto em relação à hora de trabalho quanto ao volume de mão-de-obra, o rendimento diminui de ano a ano.

Em 2021 essa tendência se acelerou ainda mais. Nas economias bem-sucedidas de todo o mundo, os lucros crescem com a aplicação de pesquisa e tecnologia na indústria: no Brasil, eles encolhem.

A perspectiva histórica demonstra essa tendência de modo especialmente crasso: a participação da agregação de valor industrial no produto interno bruto (PIB) nacional caiu um terço desde 1980, de 34% para 11%. Nessas cerca de quatro décadas, a indústria cresceu sempre em ritmo significativamente mais lento do que a economia como um todo.

O Brasil importa cada vez mais produtos industrializados para satisfazer a demanda local. O país pode se permitir isso, já que as exportações agrárias prosperam: os excedentes do agronegócio financiam os déficits da balança de bens industriais.

Muitos sequer tomam conhecimento dessa dinâmica. Somente com a pandemia ficou subitamente claro que o Brasil estava mal equipado para produzir vacinas próprias. Se, ainda 40 anos atrás, ele fabricava a metade dos fármacos utilizados pela população, hoje são apenas 5%.

Entre os motivos dessa desindustrialização está o fato de os governos protegerem a indústria nacional com tarifas e imposições alfandegárias. Além disso, a burocracia e o sistema fiscal fazem as empresas estrangeiras desistirem de investir no país – tendência que os fracos prognósticos de crescimento ainda agravam. O real desvalorizado reduz as importações de maquinaria e tecnologia.

Para o Brasil, isso significa que sua indústria oferecerá postos cada vez menos especializados; pesquisa e desenvolvimento regridem; aumenta a lacuna entre os empregos bons e mais exigentes do setor, e a massa dos postos mal pagos e muitas vezes informais. Ao mesmo tempo, os produtos de manufatura nacional se tornam cada vez piores, mais velhos e caros, em comparação com os do mercado mundial.

Essa tendência de desindustrialização se manifesta por todo o mundo. Porém no Brasil só lentamente se percebe quão profundas são as mudanças que ela acarreta para a sociedade e a política.

Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump conquistou votos em especial onde a população perdera seus empregos em fábricas obsoletas. Um fenômeno parecido deverá ocorrer no Brasil: escutando-se as declarações dos prováveis candidatos a presidente para 2022, há razão para temer que o processo de desindustrialização e simultâneo isolamento do mercado mundial vá se acelerar ainda mais no país.