terça-feira, 28 de setembro de 2021
Antítese de Bolsonaro, primeira-ministra cita Bob Marley e chacoalha a ONU
Se Jair Bolsonaro causou constrangimento e indignação em sua participação na ONU, coube a uma mulher despontar como a antítese do presidente negacionista. Num discurso no mesmo púlpito que foi usado pelo brasileiro, a primeira-ministra de Barbados abandonou o texto que havia sido preparado por seu serviço diplomático e chacoalhou a Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Mia Amor Mottley subiu ao pódio, na sexta-feira, determinada a dizer o que líderes queriam evitar escutar. E imediatamente foi elevada a uma espécie de celebridade diplomática, com comentários de que, finalmente, o mundo tinha uma líder.
Quando seu microfone foi ligado em Nova Iorque, ela foi clara: não iria repetir discursos. E lançou: “quantas vezes mais teremos então uma situação em que dizemos a mesma coisa repetidas vezes, para não chegarmos a nada?”. “Meus amigos, não podemos mais fazer isso”.
No lugar de um discurso robótico, ela evocou Bob Marley: “Who will get up and stand up?”. Em um português claro: “Quem se levantará?”.
“As palavras de Robert Nesta Marley. Quem se levantará e defenderá os direitos de nosso povo?”, questionou.
Ela também alertou: não tomaria muito o tempo daqueles que a escutavam, na mesma sala ocupada por Bolsonaro. Mas sua voz ecoou para além daquelas paredes. No lugar de certezas, ela levou perguntas impertinentes.
“Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram durante esta terrível pandemia? São milhões. Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram por causa da crise climática?”, questionou.
“Quantas mais variantes do covid-19 devem chegar, quantas mais, antes que um plano de ação mundial de vacinação seja implementado”? disse Mottley. “Quantas mais mortes devem ocorrer antes que 1,7 bilhão de vacinas em excesso na posse dos países avançados do mundo sejam compartilhadas com aqueles que simplesmente não têm acesso?”
“Temos os meios para dar a cada criança deste planeta um comprimido. E temos os meios para dar a cada adulto uma vacina”. E temos os meios para investir na proteção dos mais vulneráveis em nosso planeta contra uma mudança no clima. Mas optamos por não fazê-lo”, disse a primeira-ministra. “Não é porque não temos o suficiente, é porque não temos a vontade de distribuir o que temos”.
A primeira-ministra ainda atacou líderes que usam da mentira como instrumento de poder. Segundo ela, se o mundo ataca as plataformas para garantir o pagamento de impostos, é inconcebível que não se toque na questão da fake news.
A primeira-ministra também alertou para a falta de ação no campo ambiental. “Quantos mais aumentos globais de temperatura devem ocorrer antes de acabarmos com a queima de combustíveis fósseis? E quanto mais o nível do mar deve subir em pequenos estados insulares antes que aqueles que lucraram com o armazenamento de gases de efeito estufa contribuam para as perdas e danos que ocasionaram, em vez de nos pedir que excluamos o espaço fiscal que temos para o desenvolvimento para curar os danos causados pela ganância de outros”?
Ela ainda completou: “se conseguirmos encontrar a vontade de enviar pessoas à lua e resolver a calvície masculina, poderemos resolver problemas simples como deixar nosso povo comer a preços acessíveis”.
Mia Amor Mottley subiu ao pódio, na sexta-feira, determinada a dizer o que líderes queriam evitar escutar. E imediatamente foi elevada a uma espécie de celebridade diplomática, com comentários de que, finalmente, o mundo tinha uma líder.
Quando seu microfone foi ligado em Nova Iorque, ela foi clara: não iria repetir discursos. E lançou: “quantas vezes mais teremos então uma situação em que dizemos a mesma coisa repetidas vezes, para não chegarmos a nada?”. “Meus amigos, não podemos mais fazer isso”.
No lugar de um discurso robótico, ela evocou Bob Marley: “Who will get up and stand up?”. Em um português claro: “Quem se levantará?”.
“As palavras de Robert Nesta Marley. Quem se levantará e defenderá os direitos de nosso povo?”, questionou.
Ela também alertou: não tomaria muito o tempo daqueles que a escutavam, na mesma sala ocupada por Bolsonaro. Mas sua voz ecoou para além daquelas paredes. No lugar de certezas, ela levou perguntas impertinentes.
“Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram durante esta terrível pandemia? São milhões. Quem se levantará em nome de todos aqueles que morreram por causa da crise climática?”, questionou.
“Quantas mais variantes do covid-19 devem chegar, quantas mais, antes que um plano de ação mundial de vacinação seja implementado”? disse Mottley. “Quantas mais mortes devem ocorrer antes que 1,7 bilhão de vacinas em excesso na posse dos países avançados do mundo sejam compartilhadas com aqueles que simplesmente não têm acesso?”
“Temos os meios para dar a cada criança deste planeta um comprimido. E temos os meios para dar a cada adulto uma vacina”. E temos os meios para investir na proteção dos mais vulneráveis em nosso planeta contra uma mudança no clima. Mas optamos por não fazê-lo”, disse a primeira-ministra. “Não é porque não temos o suficiente, é porque não temos a vontade de distribuir o que temos”.
A primeira-ministra ainda atacou líderes que usam da mentira como instrumento de poder. Segundo ela, se o mundo ataca as plataformas para garantir o pagamento de impostos, é inconcebível que não se toque na questão da fake news.
A primeira-ministra também alertou para a falta de ação no campo ambiental. “Quantos mais aumentos globais de temperatura devem ocorrer antes de acabarmos com a queima de combustíveis fósseis? E quanto mais o nível do mar deve subir em pequenos estados insulares antes que aqueles que lucraram com o armazenamento de gases de efeito estufa contribuam para as perdas e danos que ocasionaram, em vez de nos pedir que excluamos o espaço fiscal que temos para o desenvolvimento para curar os danos causados pela ganância de outros”?
Ela ainda completou: “se conseguirmos encontrar a vontade de enviar pessoas à lua e resolver a calvície masculina, poderemos resolver problemas simples como deixar nosso povo comer a preços acessíveis”.
Governo do atraso
Os 1000 dias de Bolsonaro representam um atraso absurdo em todas as áreas, mas uma em particular exige atenção: quem se elegeu para ‘mudar tudo isso aí’ se juntou ao PT e o Centrão para acabar com a Lava Jato e atrasar todo o trabalho de combate à corrupção.Alessandro Vieira, senador (Cidadania-SE)
O reino da mentira
Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Brasil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.
Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário libertário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Temos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.
Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cidadãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade sobre a virtude.
No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus corredores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.
Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.
Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, poluindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.
A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas promessas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas responsabilidades. Nos desmentidos”.
Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário libertário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Temos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.
Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cidadãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade sobre a virtude.
No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus corredores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.
Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.
Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, poluindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.
A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas promessas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas responsabilidades. Nos desmentidos”.
Quando os demônios não gostavam de gritos
Houve um tempo em que os demônios não gostavam que ninguém gritasse. Foi o que me contou há vários anos, quando eu era correspondente deste jornal na Itália, o então exorcista oficial do Vaticano, monsenhor Corrado Balducci, já falecido, que era chamado para tratar os casos mais graves de possessão diabólica.
Consegui uma entrevista com ele depois de uma série de peripécias. Encontrei-o em seu gabinete dentro do pequeno e poderoso Estado do Vaticano. Recebeu-me cordialmente, mas me advertiu em seguida que procurasse falar em voz baixa, já que, segundo ele, “os demônios não gostam que gritem”.”Como sabe?”, perguntei-lhe. Respondeu-me, sem mais detalhes, que “por experiência própria”. E assim a entrevista foi feita aos sussurros.
Lembro ainda hoje alguns detalhes curiosos que consegui arrancar dele, embora tenha me pedido depois que não os incluísse na entrevista publicada. Por exemplo, também os animais podem ser possuídos pelo demônio. E me deu o exemplo do seu cavalo, que às vezes amanhecia possuído. Perguntei-lhe como sabia, e me explicou que nesses casos o animal “ficava com todos os pelos do rabo arrepiados”.
Essa afirmação do exorcista vaticano de que os demônios não gostam de gritos me levou a pensar que hoje, entre os políticos, os demônios também evoluíram, já que boa parte deles parece só falar aos brados e fazendo muito barulho, enquanto lhes falta reflexão e compostura.
Também relembrei aquela afirmação do exorcista por conta da gritaria e da confusão que o presidente Jair Bolsonaro e sua comitiva criaram durante sua recente estadia em Nova York para participar da Assembleia Geral da ONU. A imprensa brasileira e internacional já relataram todas as peripécias ocorridas – do fato de que o presidente brasileiro precisou comer uma pizza de pé na rua, porque não o deixaram entrar em um restaurante sem estar vacinado, até o gesto obsceno oferecido pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga contra os manifestantes.
Há um detalhe que, entretanto, passou despercebido e poderia ser uma metáfora da atual política bolsonarista. Na cerimônia de abertura da Assembleia da ONU, inaugurada, conforme a tradição, com o discurso do presidente do Brasil, houve um detalhe pouco conhecido e que foi gravado pela imprensa dos EUA. Assim que o mandatário brasileiro saiu, e antes que fosse a vez do norte-americano Joe Biden discursar, a tribuna onde acabara de falar foi rapidamente higienizada.
Naquele momento já se sabia que o presidente brasileiro não se vacinou contra a covid-19, e havia o temor de que Bolsonaro pudesse contagiar os demais presentes. Talvez por isso tenha voltado ao Brasil sem que pudesse se encontrar com o presidente norte-americano.
Entretanto, a cena da tribuna onde Bolsonaro discursou sendo higienizada às pressas poderia ser lida também como metáfora da periculosidade política que o negacionista de extrema direita representa no país considerado o maior defensor da democracia e das liberdades. É como se aquele ritual de desinfetar o lugar onde o presidente brasileiro discursou fosse visto como um exorcismo contra os demônios da discórdia, da mentira, do ódio, do gosto pelas ditaduras, do culto às armas e à morte.
A higienização do lugar onde Bolsonaro discursou entrará para a história e deveria agora ser uma lição para os poucos brasileiros que continuam a apoiá-lo. Às vezes, há pequenos gestos que podem passar despercebidos, mas que acabam fazendo história.
A cena de desinfetar a tribuna do presidente brasileiro foi mais que uma simples cena de limpeza. Deem vocês o nome que preferirem.
Uma coisa é certa: quem suceder Bolsonaro no Planalto, algo que a grande maioria dos brasileiros deseja, como indicam todas as pesquisas, deverá antes de mais nada desinfetar aquele lugar junto com o cercadinho onde o capitão vomita a cada manhã aos seus seguidores mais fiéis os demônios que lhe fazem lançar anátemas, ameaças e mentiras. “É que ele é assim mesmo”, alegam aqueles que o seguem de perto. É verdade, mas também são assim mesmo os desequilibrados psíquicos, os incapazes de juntar duas frases com sentido, os que falam o que lhes vem à cabeça sem esses filtros dos quais todos necessitamos, como explica a psicanálise. O que ocorre é que personalidades dessa tipologia deveriam ser incapacitadas para presidir e governar uma nação.
Esses políticos que sonham com o poder absoluto são como vulcões sempre em perigo de erupção, que provocam desastres e morte. Quem vier a substituir o capitão na presidência deverá se apressar em desinfetar com essa mesma urgência um pedaço da história deste país que está sendo impedindo de sonhar com dias melhores sem o medo de ser devorado pelo vírus de uma política que preocupa o mundo e gera medo e pobreza nesses milhões de pessoas para quem já ficaram muito distantes os tempos em que se acreditava que Deus era brasileiro. Talvez nunca tenha sido, pois a história do país ainda arrasta muitas injustiças, violências e segregação social, mas o perigo de hoje é que esse “Deus acima de tudo”, lema do presidente, tenha se metamorfoseado em um demônio da discórdia e da ruptura existencial.
Não sou dos que minimizam a periculosidade dos medíocres na política que acreditam ser deuses encarnados e acabam agindo como os novos demônios da discórdia. A História está cheia de ditadores que eram insignificantes quando entraram no poder e acabaram arrastando seus países para o inferno. Nada pior, de fato, que um despreparado que acredite ser enviado pelos deuses, enquanto aparece mais como a encarnação dos novos demônios do fascismo e da intolerância que hoje parecem ressuscitar no mundo e dos quais eles gostariam que o Brasil fosse seu epicentro político.
É possível que os demônios de hoje em dia gostem de gritar e mentir, mas o que continua sendo verdade é que os deuses preferem o silêncio, a reflexão, os valores que enaltecem, a compaixão que cura, e não o gosto pela violência, a discórdia, a mentira e a morte.
Alguém será capaz de higienizar a política brasileira para impedir que o vírus da intolerância e do fascismo continuem a contaminá-la, deixando rastros da dor e da desesperança engendradas por quem governa o país?
Consegui uma entrevista com ele depois de uma série de peripécias. Encontrei-o em seu gabinete dentro do pequeno e poderoso Estado do Vaticano. Recebeu-me cordialmente, mas me advertiu em seguida que procurasse falar em voz baixa, já que, segundo ele, “os demônios não gostam que gritem”.”Como sabe?”, perguntei-lhe. Respondeu-me, sem mais detalhes, que “por experiência própria”. E assim a entrevista foi feita aos sussurros.
Lembro ainda hoje alguns detalhes curiosos que consegui arrancar dele, embora tenha me pedido depois que não os incluísse na entrevista publicada. Por exemplo, também os animais podem ser possuídos pelo demônio. E me deu o exemplo do seu cavalo, que às vezes amanhecia possuído. Perguntei-lhe como sabia, e me explicou que nesses casos o animal “ficava com todos os pelos do rabo arrepiados”.
Essa afirmação do exorcista vaticano de que os demônios não gostam de gritos me levou a pensar que hoje, entre os políticos, os demônios também evoluíram, já que boa parte deles parece só falar aos brados e fazendo muito barulho, enquanto lhes falta reflexão e compostura.
Também relembrei aquela afirmação do exorcista por conta da gritaria e da confusão que o presidente Jair Bolsonaro e sua comitiva criaram durante sua recente estadia em Nova York para participar da Assembleia Geral da ONU. A imprensa brasileira e internacional já relataram todas as peripécias ocorridas – do fato de que o presidente brasileiro precisou comer uma pizza de pé na rua, porque não o deixaram entrar em um restaurante sem estar vacinado, até o gesto obsceno oferecido pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga contra os manifestantes.
Há um detalhe que, entretanto, passou despercebido e poderia ser uma metáfora da atual política bolsonarista. Na cerimônia de abertura da Assembleia da ONU, inaugurada, conforme a tradição, com o discurso do presidente do Brasil, houve um detalhe pouco conhecido e que foi gravado pela imprensa dos EUA. Assim que o mandatário brasileiro saiu, e antes que fosse a vez do norte-americano Joe Biden discursar, a tribuna onde acabara de falar foi rapidamente higienizada.
Naquele momento já se sabia que o presidente brasileiro não se vacinou contra a covid-19, e havia o temor de que Bolsonaro pudesse contagiar os demais presentes. Talvez por isso tenha voltado ao Brasil sem que pudesse se encontrar com o presidente norte-americano.
Entretanto, a cena da tribuna onde Bolsonaro discursou sendo higienizada às pressas poderia ser lida também como metáfora da periculosidade política que o negacionista de extrema direita representa no país considerado o maior defensor da democracia e das liberdades. É como se aquele ritual de desinfetar o lugar onde o presidente brasileiro discursou fosse visto como um exorcismo contra os demônios da discórdia, da mentira, do ódio, do gosto pelas ditaduras, do culto às armas e à morte.
A higienização do lugar onde Bolsonaro discursou entrará para a história e deveria agora ser uma lição para os poucos brasileiros que continuam a apoiá-lo. Às vezes, há pequenos gestos que podem passar despercebidos, mas que acabam fazendo história.
A cena de desinfetar a tribuna do presidente brasileiro foi mais que uma simples cena de limpeza. Deem vocês o nome que preferirem.
Uma coisa é certa: quem suceder Bolsonaro no Planalto, algo que a grande maioria dos brasileiros deseja, como indicam todas as pesquisas, deverá antes de mais nada desinfetar aquele lugar junto com o cercadinho onde o capitão vomita a cada manhã aos seus seguidores mais fiéis os demônios que lhe fazem lançar anátemas, ameaças e mentiras. “É que ele é assim mesmo”, alegam aqueles que o seguem de perto. É verdade, mas também são assim mesmo os desequilibrados psíquicos, os incapazes de juntar duas frases com sentido, os que falam o que lhes vem à cabeça sem esses filtros dos quais todos necessitamos, como explica a psicanálise. O que ocorre é que personalidades dessa tipologia deveriam ser incapacitadas para presidir e governar uma nação.
Esses políticos que sonham com o poder absoluto são como vulcões sempre em perigo de erupção, que provocam desastres e morte. Quem vier a substituir o capitão na presidência deverá se apressar em desinfetar com essa mesma urgência um pedaço da história deste país que está sendo impedindo de sonhar com dias melhores sem o medo de ser devorado pelo vírus de uma política que preocupa o mundo e gera medo e pobreza nesses milhões de pessoas para quem já ficaram muito distantes os tempos em que se acreditava que Deus era brasileiro. Talvez nunca tenha sido, pois a história do país ainda arrasta muitas injustiças, violências e segregação social, mas o perigo de hoje é que esse “Deus acima de tudo”, lema do presidente, tenha se metamorfoseado em um demônio da discórdia e da ruptura existencial.
Não sou dos que minimizam a periculosidade dos medíocres na política que acreditam ser deuses encarnados e acabam agindo como os novos demônios da discórdia. A História está cheia de ditadores que eram insignificantes quando entraram no poder e acabaram arrastando seus países para o inferno. Nada pior, de fato, que um despreparado que acredite ser enviado pelos deuses, enquanto aparece mais como a encarnação dos novos demônios do fascismo e da intolerância que hoje parecem ressuscitar no mundo e dos quais eles gostariam que o Brasil fosse seu epicentro político.
É possível que os demônios de hoje em dia gostem de gritar e mentir, mas o que continua sendo verdade é que os deuses preferem o silêncio, a reflexão, os valores que enaltecem, a compaixão que cura, e não o gosto pela violência, a discórdia, a mentira e a morte.
Alguém será capaz de higienizar a política brasileira para impedir que o vírus da intolerância e do fascismo continuem a contaminá-la, deixando rastros da dor e da desesperança engendradas por quem governa o país?
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