domingo, 17 de março de 2024

Pensamento do Dia

 


A glória de ser medíocre

Cada vez mais gostamos de ser medíocres no Brasil. Sofremos uma absurda atração pela cultura da mediocridade e a elevamos a objetivo nacional. Estamos conseguindo, e com que brilho! Caminhamos para a liderança mundial em muitos quesitos. Consulte os índices de qualidade de vida, de desenvolvimento humano, de educação, de violência, de saúde pública, de saneamento, de habitação. Percorra nossas estradas, nossos portos e aeroportos, nossas escolas. Visite os estádios superfaturados e abandonados neste país que ainda usa o futebol como ópio do povo.

A atração fatal pela mediocridade se espalha em todos os níveis da sociedade. Alguns exemplos: quem acha que nosso Congresso é composto por mentes brilhantes? Quem acha que pessoas capazes ocupam nossos ministérios? Como Eike Batista chegou tão longe e acabou em Bangu? Seria apenas pela aliança com um governador que levou 16 milhões de dólares dele para o exterior? Por que tantos turistas compulsórios visitam Curitiba tendo a PF como cicerone? Onde foi que um presidente afirmou que nunca tinha lido um livro – e não lhe fez falta? Por que tantos?

Se você acha que a cultura da mediocridade para aí, está enganado. Escute com atenção as músicas que fizeram maior sucesso em 2016, curta a riqueza das letras e das melodias, encante-se com a mesmice e o ridículo. Veja um programa na televisão, desses que arrancam dinheiro do espectador a cada minuto, eleve-se ao nível da danação intelectual ou caia no fundo do poço da exploração humana. Sintonize a grade das tvs abertas e delicie-se com o vazio que elas nos impingem travestido de entretenimento. Leia também os best-sellers, mergulhe na profundidade de suas páginas, repare quanta sabedoria eles lhe trazem, quanta novidade divulgam, quanta sede de escrever diários de bananas eles propagam. Não se esqueça de ver os filmes nacionais de maior bilheteria: como são inteligentes, criativos, nem um pouco machistas e, cá entre nós, que humor. Que humor requintado! Gaste oito ou dez horas por dia, como nossos jovens, enfrentando os games e seus inspiradores combates, ache-se mais esperto, mais genial, com neurônios mais rápidos, longe da alienação e do vício.

Observe bem as propagandas nas mídias, admire os estereótipos tão maravilhosamente engendrados pelas mentes sedutoras das agências, tão sedutoras que a crise passa longe dos produtos que anunciam. Mergulhe de cabeça nos posts inovadores do Facebook ou nas mensagens do “zapzap” e sinta-se pronto para conquistar o Vale do Silício, depois do implante de um cilício mental.

A lista não tem fim. Estamos conseguindo, a passo acelerado, a mediocridade. Viva! Como é bom ser medíocre, a grande mania nacional! Deixemos que outros pensem por nós. O melhor é que a opção pela mediocridade é nossa, o gosto é nosso, as consequências cairão em nossas cabeças.
Luís Giffoni

A natureza das alegrias

Embora a experiência me tenha ensinado que se descobrem homens felizes em maior proporção nos desertos, nos mosteiros e no sacrifício do que entre os sedentários dos oásis férteis ou das ilhas ditas afortunadas, nem por isso cometi a asneira de concluir que a qualidade do alimento se opusesse à natureza da felicidade. Acontece simplesmente que, onde os bens são em maior número, oferecem-se aos homens mais possibilidades de se enganarem quanto à natureza das suas alegrias: elas, efetivamente, parecem provir das coisas, quando eles as recebem do sentido que essas coisas assumem em tal império ou em tal morada ou em tal propriedade. Para já, pode acontecer que eles, na abastança, se enganem com maior facilidade e façam circular mais vezes riquezas vãs. Como os homens do deserto ou do mosteiro não possuem nada, sabem muito bem donde lhes vêm as alegrias e é-lhes assim mais fácil salvarem a própria fonte do seu fervor.

Antoine de Saint-Exupéry, "Cidadela"

Borracha no futuro

Um estudo revela que 13 milhões de brasileiros deixaram de passar fome em 2023, o custo alto dos alimentos desacelerou, a economia obtém ganhos, a vida democrática supera os sobressaltos, mas decresce a avaliação positiva de Lula (PT). Algo semelhante ocorre nos EUA, onde esses fatores estão normalizados, porém, cresce nas preferências eleitorais a figura de Trump, um delinquente polimorfo. Na Argentina, 60% da população esfomeia, mas é elevado o índice de aprovação de Milei. Na alucinação, osso é filé.

São anomalias. Começa a ficar claro que elas reabrem de algum modo a noção de política. Por menos práticos que sejam pronunciamentos políticos de filósofos, vale evocar as posições públicas de Jurgen Habermas nos anos 1980 contra o neoconservadorismo irracionalista na Alemanha, assim como a sua especulação de que "se tivesse de apostar qual o próximo país que se tornaria fascista, minha aposta poderia ser: os EUA". Sem bola de cristal, anteviu Trump.


Entre nós, é recorrente a análise de que vivemos numa sociedade de classes com uma esquerda atrasada. Dessa redundância acaciana nada se conclui sobre a subjetividade política dos brasileiros nem sobre a dissonância entre seus comportamentos sociais e a infraestrutura socioeconômica. As massas acordaram para a experiência política, mas sob formas perversas, captadas pela extrema direita, a saber, setor financeiro, agronegócio e coorte de reacionários religiosos.

Acontece que a política parece ter-se deslocado da base normativa das formas democráticas para preocupações populares como anticorrupção e comunitarismo religioso. Da linguagem desses fatores está ausente não só a esquerda, mas também a formação política (sindicalista, social-democrata) de Lula. O que sai da boca do povo não aparece no radar de Brasília.

O fenômeno pertence ao neopopulismo global, com núcleos organizadores regionais, que delegam tarefas. No ato de 25 de fevereiro, na Paulista, mesmo com maioria branca, terceira idade e renda média, os 200 mil aderentes constituíam o estrato inferior de uma divisão de classes nas incumbências visíveis, com as quais o núcleo já não se compromete diretamente. Algo como a camada externa de uma cebola, que oculta outras. Com o mesmo odor.

O decréscimo da popularidade de Lula é da mesma natureza do sinal enviado pela presença de uma multidão daquele tamanho ao redor de uma personagem trêfega e desconexa. Mas no fenômeno das anomalias em pauta, desconexão é coerência: o abilolado que mete a mão no esgoto extremista é o mesmo que depositará o voto na urna da ultradireita, outubro à vista. Um índice resiliente da ideia antipolítica de nação sem democracia nem justiça social: olho no retrovisor e borracha passada no futuro.

Não foi por mal

A estupidez sempre foi uma característica protegida e é fácil explicar porquê. Os estúpidos não têm culpa de ser estúpidos. A maioria (a mais esperta) até odeia ser estúpida.

Ser estúpido é um azar. Prejudica. Dá mais trabalho. Atrapalha. Causa atrasos e malentendidos. A única vantagem de ser estúpido é ser-se capaz de enfurecer os espertalhões com muito pouco esforço.

Como é proibido chamar estúpidas às pessoas – mesmo àquelas que não são –, a estupidez é um flagelo invisível. Apesar de ser a causa principal – alguns diriam a única – de tudo o que corre mal, a estupidez atira sempre com as culpas para outra causa qualquer.


Teoricamente, é possível retraduzir o discurso público para obter as equivalências da estupidez que são culturalmente autorizadas.

São palavras como incompetência, falta de profissionalismo, estreiteza de vistas, inocência, simplicidade, e uma imperturbável alegria de viver.

Mas é muito bom sinal aceitar a estupidez e fazer o respectivo desconto. Quando alguém nos diz, desculpando as acções de um estúpido, que “não foi por mal”, a única maneira justa e saudável de reagir é aceitar esse apelo à intenção.

O inferno não está cheio de boas intenções. Pelo contrário, não há uma única boa intenção no inferno. O inferno está é cheio de bons resultados.

Se isto fosse uma tese, chamar-se-ia “Intenção, Resultado e Merecimento na Cultura Portuguesa”. Felizmente, isto deixa-se complicar até mais não, mas não aqui.

Ao longo da vida – mais depressa para quem dá aulas –, vemos que os grandes esforços andam divorciados dos grandes resultados, que a qualidade humana é completamente independente do talento e da inteligência, e que as intenções estão entre as poucas coisas que se podem julgar com generosidade.

Cada vez é mais fácil preferir um mau resultado, obtido com boas intenções, a um bom resultado, obtido com más.

A estupidez também precisa de ser reenquadrada: não acredito que os estúpidos sejam todos bonzinhos.