terça-feira, 11 de junho de 2024

Pensamento do Dia

 


As perguntas a que Netanyahu não responde

Em Gaza, convém não pensar no amanhã. A ONU estima em 37 milhões de toneladas os escombros gerados nestes oito meses de bombardeios israelenses. Debaixo dessas montanhas de concreto, cimento, poeira e silêncio lunar, encontram-se os restos mortais de 10 mil palestinos soterrados. Somente o trabalho de remoção desse entulho encravado de corpos humanos deverá exigir até três anos de labuta.

— Há mais escombros aqui do que na Ucrânia — testemunhou Charles Birch, que chefia o trabalho de desativação de bombas não explodidas em Gaza, sob o guarda-chuva do Serviço de Ação contra Minas das Nações Unidas (UNMAS).

A empreitada de sua equipe será pesada, visto que até 10% de foguetes, bombas e mísseis disparados em conflitos modernos simplesmente não funcionam. Para a população civil de Gaza, que percorre escombros calçando chinelos de dedo e escava prédios desossados com as mãos, um perigo a mais no amanhã. Hoje, o enclave desamparado está repleto de crianças e adultos sem um, dois ou três membros.


Eram 2h da madrugada desta quarta-feira, dia 5, quando os cerca de 6 mil refugiados nas dependências da escola Al-Sardi, em Nuseirat, sul de Gaza, desceram a novo patamar de pavor: bombas despejadas por caças israelenses haviam acertado a escola em cheio. Foi um despertar para o inconcebível. Segundo a agência Reuters, 14 crianças e nove mulheres estavam entre as dezenas de mortos espraiados. Em resposta à rotineira grita mundial, um comunicado glacial do Exército de Israel. O bombardeio fora “um ataque preciso”, baseado em informações confiáveis dos serviços de inteligência — de 20 a 30 terroristas palestinos usavam o local como base operacional. O porta-voz acrescentou não estar ciente de quaisquer vítimas civis e disse que ele “seria muito, muito cauteloso ao aceitar qualquer coisa que o Hamas divulgue”.

Duas perguntas elementares: se os serviços de inteligência israelense são tão confiáveis assim, como desconheciam o abarrotamento de milhares de famílias palestinas na escola? Ou conheciam e desconsideraram o fato? Consta de qualquer manual de Direito Humanitário que “atacar ou usar edifícios da ONU para fins militares” é crime. Isso vale tanto para o Hamas, que se escuda em civis e faz uso militar de edifícios da ONU, como para o governo de Benjamin Netanyahu, que ataca, bombardeia com civis dentro e ainda se arroga razão.

A escola bombardeada é uma das 300 outras de Gaza administradas pela UNRWA, a agência da ONU de assistência humanitária aos refugiados da Palestina. Fechadas desde o início da guerra de retaliação israelense ao ataque sofrido em 7 de outubro, elas viraram abrigos para as massas de civis errantes, enxotados, desenraizados e sem chão. Como essas escolas são providas de painéis solares e usinas de dessalinização, tornaram-se um oásis para quem está à deriva. Sam Rose, diretor de planejamento da UNRWA, fez um relato contundente das cinco semanas que passou em Gaza.

— Normalizamos o horror — resumiu em entrevista ao jornal britânico The Guardian.

A própria população civil de Gaza procura compartimentalizar o dia a dia, para se proteger da realidade.

Do ponto de vista político e militar, é compreensível que o governo de Israel descarte como desprovido de credibilidade qualquer dado fornecido pela administração do Hamas — mesmo quando sabe que o dado é próximo do real. Israel também procura desacreditar como fantasioso o “jornalismo na veia”, muitas vezes em tempo real, praticado por incansáveis repórteres palestinos de Gaza. E considera as organizações humanitárias ligadas à ONU como comprometidas com o inimigo. Cabe então explicar o motivo por que, até hoje, o governo de Benjamin Netanyahu não permitiu o acesso à zona de guerra de um único jornalista ou equipe profissional independente. Meses atrás, um ou outro repórter de CNN, BBC e outras mídias pôde realizar uma breve “visita ao front” estritamente controlada. Desde então, nem isso, o que resulta numa situação de censura à informação sem precedentes nos tempos modernos.

Para desalento de entidades como Repórteres Sem Fronteiras, a situação é alarmante. Mais de 92 jornalistas palestinos já morreram em Gaza desde o início da guerra (22 deles durante coberturas); trabalham com recursos mínimos, estão exaustos e pedem a colegas das grandes mídias ocidentais que venham atestar o horror.

É inevitável que um dia os portões de Gaza serão arrombados e as entranhas da História expostas. Talvez só então nos perguntaremos por que não impedimos tamanha desumanidade.

O mundo misterioso

Leila está nessa idade inquieta e luminosa em que a gente escreve, escreve e não acha editor. De uma novelazinha ultrarromântica e ao mesmo tempo com observações de tão aguda objetividade, que ela me deu para ler, não me saiu da memória esta linha: “... o aspecto acolhedor dos lares sem televisão...”

Mas não é isso mesmo? Agora é muito difícil nos encontrarmos com as pessoas presentes. É a Rádio... é a TV... é o Telestar... e o mais que for... E a gente nunca está onde se acha! Vivemos, sempre e sempre, em comunicação com uns distantes fantasmas.

Mas, deste lado, o que haverá?

Meu Deus! Como será uma alma deste mundo?!

Mário Quintana, "Caderno H"

Avalanche de trevas

Uma avalanche é feita do acúmulo de pequenas coisas, físicas ou mesmo morais, que convém esmiuçar para estimativa dos riscos. Foi assim obsceno, coisa de fazer tremer a compostura do espírito público, o prognóstico do governador paulista sobre escolas cívico-militares: daqueles alunos poderá surgir no futuro um novo Bozo. Não é, aliás, a primeira vez que se pode pensar em obscenidade como categoria aplicável a esse político. Foi como o jornal inglês "The Guardian" se referiu a uma das famigeradas motociatas em que ele, em plena pandemia, subiu na garupa presidencial.


Obscenidade, na acepção dada pela crítica pós-modernista da cultura, não faz referência à pornocultura, mas à ausência das mediações socialmente requeridas para a apresentação de fatos sensíveis da vida. É a cena crua, exibida sem véus. Algo pertinente aos tempos de estupidez sistêmica em que se rompem limites para proliferação de discursos alheios à verdade e ao consenso. Não se consultaram famílias para saber se elas confiariam seus filhos a uma escola que tivesse como bedel ou professor um misógino, homofóbico, fetichista armado, expulso do exército, cujo ídolo é o único torturador condenado pela Justiça brasileira. No entanto, o governador do estado mais opulento da federação pode declarar, sem qualquer mediação pedagógica ou comunitária, que a excelência educacional de jovens será aferida pelo padrão desse mesmo indivíduo,

"Os homens querem ser enganados", dizia Ernst Bloch (O Princípio Esperança), mas ainda havia abrigos contra a mentira. A obscenidade, entretanto, tipifica a falência da representação mediadora, portanto, da razoabilidade que lastreia bem ou mal as instituições. Entrou-se no ciclo radioativo do vazio de sentido. A regra do tudo dizer nas redes é obscena por seu anonimato. O mesmo acontece de viva voz, porém, quando uma autoridade anuncia candidamente a pais e mães que o futuro de seus filhos será moldado pelo binômio fascista das armas e do retrocesso ideológico. Acrescenta-se escola ao ecossistema digital da mentira.

Obscenamente, para muito além do que supunha a pedagogia de Émile Durkheim, equacionou-se o problema da disciplina: spray de pimenta e algemas. É o que já ocorre em escolas cívico-militares paulistas, agora avalizadas por lei. A famílias às voltas com naturais dificuldades de seus adolescentes, isso pode parecer de somenos. Mas é também matéria de avalanche moral, já pressentida.

Na mentalidade plástica do jovem, disciplina militarizada, ainda mais sem a finalidade institucional do exército, é manufatura de hostilidade à consciência civil e de enrijecimento humano na mobilidade social: pedagogia para autômatos, desinteligência degenerativa. A avalanche por vir será feita de trevas.

Uma reflexão sobre a desinformação

Como não sou muito de orar, vou dedicar esta coluna do dia de reflexão para, bem, precisamente, refletir sobre uma das questões mais importantes que afetam os processos eleitorais em meio mundo. É a desinformação, amigo. Sem informação fiável não há democracia, porque as pessoas não sabem em que estão a votar. Isto era óbvio no século passado – é por isso que a imprensa era chamada de quarto poder – mas meia dúzia de multimilionários de Silicon Valley dedicaram-se a erodir a velha ordem das coisas. E o mundo os acolheu de braços abertos e cérebro fechado. A ingenuidade com que várias gerações de “nativos digitais” engoliram a história de que os meios de comunicação tradicionais eram seus inimigos e que as redes iriam libertá-los desse confinamento foi uma catástrofe da qual não conseguimos escapar.

Tão previsivelmente como o cão de Pavlov, as mesmas redes que iriam emancipar o Homo sapiens do século XXI geraram os piores vírus que uma sociedade aberta pode enfrentar. Um surpreendente conjunto de espertinhos, pessoas ignorantes e – pior ainda – hordas anônimas com interesses não confessados receberam as redes como uma oportunidade formidável para propagar suas pequenas ideias e suas grandes falsidades. Com uma lentidão impressionante, os políticos europeus, e mesmo os norte-americanos, começaram a perceber a gravidade do problema que está debaixo dos seus narizes há 30 anos. Mas de qualquer forma, nunca é tarde para escapar de um buraco.

Infelizmente para os falsificadores e envenenadores políticos, a investigação sobre notícias falsas e desinformação está a tornar-se mais intensa. Isto não aconteceu graças aos gigantes californianos do setor, mas está a acontecer de qualquer forma, apesar deles. Acabamos de saber, por exemplo, que durante as eleições presidenciais que os Estados Unidos realizaram há quatro anos, 1% dos utilizadores do Twitter (agora X) espalharam 80% das notícias falsas.

E se a vice-presidente Kamala Harris brincasse sobre matar Donald Trump e Mike Pence, e se os votos republicanos tivessem sido desviados para Joe Biden e não sei quanto mais absurdos estavam envolvidos em 7% de todas as notícias políticas que circularam no Internet, mas eram quatro gatos. E os quatro gatos nem eram anônimos, porque eram sites como InfoWars e Gatewaypundit, que se dedicam profissionalmente a espalhar desinformação. Os cientistas não teriam dificuldade em identificar as 2.000 pessoas que envenenaram um em cada 20 utilizadores do Twitter. Na verdade, eles sabem que a maioria eram mulheres mais velhas, o que é um fato muito curioso, né? Eles também sabem que 64% são republicanos e 16% democratas. Ah, como os dados concordam com os teóricos da equidistância.

Todos dizemos frequentemente que a desinformação é um problema do nosso tempo, mas a verdade é que, neste caso específico, a solução seria o jardim de infância. Bastaria adotar alguns limites muito simples para o número de retuítes que um mesmo conteúdo pode ter. O usuário médio não se importaria com isso, mas o propagador de manipulações se importaria. Os magnatas do Vale do Silício sabem disso? Oh sim. Eles fizeram? Não. Se quisermos que o façam, terão de ser os nossos representantes políticos a forçá-los.

Não são apenas as eleições. A desinformação também é prejudicial no que diz respeito à vacinação, às alterações climáticas e à polarização social em geral. O problema pode ser resolvido, mas falta-nos a colaboração de um agente crucial: os bilionários da Califórnia. As fontes de envenenamento estão a tornar-se mais claras e continuar a proteger a sua “liberdade de expressão” e anonimato é uma posição que cada vez menos pessoas compreendem. Se você não é de orar, reflita.
Javier Sampedro

A libertação de 4 reféns israelenses custa a vida de 200 palestinos

O mundo ocidental não está nem aí se Israel mata de uma vez só mais de 200 palestinos numa operação militar para libertar quatro israelenses feitos reféns pelo grupo Hamas em 7 de outubro do ano passado. Ou melhor: os líderes das maiores potências do mundo ocidental não estão nem aí para o massacre, Israel celebra e os palestinos choram.

Aconteceu no campo de refugiados de Nuseirat, no coração da cidade semidestruída de Gaza. Os Estados Unidos, por meio do seu setor de inteligência, ajudaram Israel na operação. Em um comunicado oficial, Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, limitou-se a dizer:

“Os Estados Unidos apoiam todos os esforços para garantir a libertação de reféns ainda detidos pelo Hamas, incluindo cidadãos americanos”.

A vice-presidente Kamala Harris, em discurso no jantar do Partido Democrata em Michigan, no sábado, comentou:

“Felizmente quatro reféns se reuniram com suas famílias esta noite. E lamentamos todas as vidas inocentes que foram perdidas em Gaza, incluindo aqueles tragicamente mortos hoje”.


Um manifestante pró palestino tentou perturbar Harris, que respondeu:

“Trabalhamos para pôr fim a este conflito de uma forma que garanta que Israel esteja seguro, traga para casa todos os reféns, acabe com o sofrimento do povo palestino e garanta que eles possam desfrutar do seu direito à autodeterminação, dignidade e liberdade. É hora de esta guerra acabar.”

Palavras ao vento, como sempre. E o direito de os palestinos terem seu Estado reconhecido? Um dia desses, Biden repetiu que é a favor, mas que isso depende de um entendimento entre os palestinos e Israel. E se não houver entendimento, como não houve até aqui desde que Israel foi criado em terras dos palestinos? Biden não responde.

O conflito entre Israel e os palestinos, que se arrasta desde 1948, não tem data para acabar. O capítulo mais recente, que já dura nove meses, começou quando o Hamas invadiu Israel, matou 1.200 pessoas e fez 250 reféns. Acredita-se que pelo menos 112 deles foram libertados pelo Hamas durante as negociações com Israel.

O número de civis mortos por Israel, a maioria mulheres, crianças e velhos, já passa de 37 mil. O ataque a Nuseirat foi apenas o terceiro resgate bem-sucedido de reféns da atual guerra. As famílias dos reféns saudaram o regresso dos quatro libertados, mas disseram que os militares sozinhos não poderiam trazer de volta todos os cativos. Defendem a suspensão da guerra.

Um porta-voz do Izz ad-Din al-Qassam, as brigadas armadas do Hamas, afirmou que alguns reféns foram mortos durante o ataque de Israel. Os quatro reféns libertados estavam saudáveis. Uma bomba guiada com precisão, a GBU-39, de fabricação americana, é a nova estrela da guerra. Dizem que ela só atinge alvos específicos. Seria uma bomba boazinha e justa.

“A questão é que mesmo usar uma arma menor ou uma arma guiada de precisão não significa que você não mate civis e não significa que todos os seus ataques sejam subitamente legais”, observa Brian Castner, um especialista em armas da Amnistia Internacional. É o que prova o ataque de Israel ao campo de refugiados de Nuseirat.

Vida que segue. Não. Mortandade que segue.
Ricardo Noblat