segunda-feira, 20 de dezembro de 2021
Bolsonaro, o primeiro presidente eleito que declara guerra ao povo
Simples: quer jogar seus fanáticos seguidores contra eles. Expô-los a toda sorte de ameaças – de insultos a agressões físicas. É o que começou a acontecer desde que Bolsonaro considerou absurda a vacinação de crianças, adotada no mundo inteiro.
No fim de semana, recuou, como de costume. Disse que as crianças podem ser vacinadas, sim, mas só por recomendação médica e com o prévio consentimento dos pais. O consentimento dos pais é necessário. Parecer médico só em casos especiais.
Bolsonaro é o primeiro presidente da República eleito que declara guerra ao povo brasileiro.
Treno por um país em permanente estupor
Não há dúvida de que nossas instituições políticas atingiram o ponto mais baixo de sua história. No Executivo, um presidente que fez o que podia para dificultar o trabalho dos agentes de saúde no combate à pandemia, só pensa em se reeleger e ornamenta seu desapreço pela liturgia do cargo que ocupa com tiradas do mais duvidoso humor. No Legislativo, o presidente da Câmara parece pensar que sua função se exaure na tarefa de barrar o mais que justificado impeachment de Jair Bolsonaro. No Judiciário, desde a tragicômica exegese lewandowskiana do artigo 52 (inciso 15, parágrafo único) da Constituição federal de 1988, adrede concebida para beneficiar Dilma Rousseff no episódio do impeachment, só o que vimos foi uma interminável melopeia entoada com o único objetivo de obscurecer as falcatruas perpetradas pelo sr. Luiz Inácio Lula da Silva, notadamente na Petrobras, e admitir sua elegibilidade para a Presidência da República em 2022. O resultado de tudo isso serão, provavelmente, mais oito anos de Lula e a continuidade da idiota polaridade entre ele e Bolsonaro, que teve início na eleição presidencial de 2018.
Seria tudo muito engraçado, se tais fatos não tivessem como pano de fundo a pandemia de covid-19.
Neste quadro medonho, com o próximo pleito presidencial reeditando a polarização das facções políticas chefiadas por Lula e Jair Bolsonaro, cada um pondo fogo pelas narinas, com base em quê nutriremos a expectativa de um equacionamento adequado de nossas contas fiscais, de uma reestruturação enérgica da máquina de Estado e da atração de investimentos na escala em que necessitamos?
O que acima se expôs diz respeito ao desempenho dos atuais titulares dos Três Poderes, mas o estrábico desempenho deles resulta de um acúmulo de causas. A primeira é o travejamento institucional de nosso sistema político. Não existe atualmente em Brasília, como bem sabemos, um elenco que se abalance a tentar reformar o anêmico enredo institucional que nos rege. Se tivesse de ressaltar um só aspecto dele, ficaria no mais simples: o formigueiro de partidos que vão diariamente a Brasília a fim de exercitar sua cômica coreografia do doce far niente. Na Câmara, temos atualmente 24 partidos, nenhum dos quais capaz de amealhar 20% das cadeiras. Penso que o leitor convirá comigo em que isso e nada são a mesma coisa.
A segunda causa oculta algo ainda pior que a atual impotência da sociedade, à qual fiz referência acima. Não vejo como nossas instituições de governo possam voltar a um nível razoável de desempenho enquanto não tivermos elites mais coesas, lúcidas e responsáveis. É lógico que emprego o conceito de elites no sentido sociológico, amplamente aceito, não na acepção comum no século 19, que se referia a grupos dirigentes interligados por laços de hereditariedade, menos ainda com intenção encomiástica. As elites que tenho em mente deveriam ser a parte inferior do iceberg político, balizando e conferindo consistência à atuação do Estado. No mundo atual, já praticamente inexistem elites aristocráticas e hereditárias como as do século 19. O que existe são apenas grupos numéricos: os ápices das diferentes hierarquias que em tese compõem a espinha dorsal da sociedade: a alta administração civil e militar, os empresários, o alto clero, os jornalistas, intelectuais e cientistas mais destacados, e assim por diante.
Claro, os “ápices” a que me refiro não são uniformes em termos de poder. Um scholar que obteve seu PHD nas melhores universidades americanas faz parte da elite cultural, mas para pertencer ao ápice da elite econômica ele teria de viver numa mansão, passar os fins de semana numa casa de campo ou no litoral e, quem sabe, possuir um iate de US$ 10 milhões. Tais atributos o qualificariam inicialmente como um possível membro da elite, mas, para fazer realmente parte dela, ele teria de se sentir movido por uma missão, uma vocação de exemplaridade, um desejo de servir ao bem público e à sociedade. Se tivéssemos ao menos isso, nossos 24 partidos poderiam levar sua vidinha como quisessem, pois não passariam de um epidérmico incômodo. Mas não: elites com um mínimo razoável de coesão, comunicando-se umas com as outras com certa frequência, capacitando-se para enfrentar os desafios (e oportunidades) com que o País de tempos em tempos se depara, isso, decididamente, não temos. Temos, como disse, grupos apenas numéricos, atomísticos, precariamente conectados.
Preparemo-nos, pois, para o espetáculo que se vai encenar no Coliseu em outubro de 2022. No caminho, olhando para um lado e para o outro, é possível que vejamos famintos desmaiando enquanto aguardam atendimento em postos de saúde e famílias catando comida descartada ou comprando ossos para a sopa de que irão se servir no jantar.
Por que tem um general no TSE?
Azevedo e Silva já desempenhou papel semelhante na eleição passada: por algum motivo até hoje inexplicado, foi assessor de Toffoli no STF durante a eleição de 2018. Naquela oportunidade, o STF decidiu que Lula, que tinha 38% nas pesquisas, não poderia concorrer contra Bolsonaro, que tinha 18%. Bolsonaro venceu e nomeou Azevedo para a Defesa.
Se o leitor conhecer caso semelhante ocorrido em país de democracia estável, peço que envie carta para a Redação.
Defensores da nomeação argumentam que um general no TSE apaziguará os defensores de Bolsonaro. O presidente da República já deixou claro que, em caso de derrota (e, portanto, prisão automática pelos crimes da pandemia), mentirá que houve fraude e tentará um golpe.
Não há, naturalmente, nenhuma apreensão honesta a ser apaziguada. Os defensores de Bolsonaro não acham, sinceramente, que as urnas eletrônicas são fraudadas. Eles estão, do primeiro ao último, mentindo. Se não houver essa desculpa para tentar um golpe, eles usarão outra. Os bolsonaristas devem ser desarmados, não refutados.
E mesmo se fossem sinceros, a nomeação de Azevedo foge à regra. Em 2018, os eleitores de Lula contestavam a decisão judicial que tirou o ex-presidente da eleição. Ninguém nomeou Gleisi Hoffman para a direção do TSE como forma de tranquilizá-los. A diferença, é claro, é que os militantes do PT estavam desarmados.
Supondo que a nomeação de Azevedo tranquilizará os golpistas, porque não deveria inquietar a imensa maioria do eleitorado, que, a crer nas pesquisas, pretende votar na oposição?
Se Lula ou outro oposicionista vencer por grande vantagem, pode não fazer diferença: ninguém vai conseguir fraudar uma eleição que perdeu por 30 pontos percentuais. Mas e se a eleição for equilibrada? Se Bolsonaro vencer por pouco, se for para o segundo turno por pouco?
Não deve haver militares no TSE em uma eleição em que um dos candidatos passou quatro anos tentando cooptar as forças armadas para um golpe de estado, sobretudo se o militar em questão foi ministro da defesa do referido candidato, sobretudo se o foi depois de ter supervisionado a eleição anterior sem ter qualquer direito de fazê-lo, e, sinceramente, eu tenho vergonha de ter que explicar isso.
Segundo a revista Veja, a nomeação de Azevedo foi ideia dos ministros do STF Alexandre de Moraes e Edson Fachin. Em democracias estáveis, ministros da Suprema Corte não precisam se preocupar em acalmar golpistas. Certamente não precisam fazê-lo com o mesmo general por duas eleições seguidas.
De qualquer forma, lanço um apelo àquela turma do comentariado brasileiro que sempre defendeu que Bolsonaro não representava risco à nossa democracia: lancem um manifesto contra a nomeação de Azevedo.
Ela dá munição a alarmistas como eu: se a ameaça de Bolsonaro não é real, por que a nomeação do general foi necessária? Ela foi conduzida por ministros do STF sob aplauso generalizado do establishment político e econômico. Será que essa turma toda também foi enganada pelo livro do Levitsky?
O ano que passou
Mais um ano escorre pelos dedos. Não foi terrível nem animador, apenas um ano de transição.
O Brasil ficou cansativo com essa interminável polêmica com o negacionismo. Primeiro, negaram o vírus, depois a gravidade da pandemia, o número de mortos, a importância da vacina e, finalmente, o passaporte vacinal.
Foi um ano de grandes debates em Glasgow, políticas ambientais decisivas nos EUA e na Alemanha, mas termina com uma dura mensagem da natureza: enchentes no sul da Bahia e o tornado no Kentucky.
A democracia foi ameaçada pelos mesmos de sempre, mas creio que, ali pelo 7 de Setembro, a ameaça se dissipou, deixando apenas alguns perplexos caminhoneiros bloqueando estradas no dia seguinte ao feriado.
Felizmente me deixaram passar para o trabalho presencial. Duplamente vacinado, caí na estrada para desenferrujar os dedos e a sensibilidade. Viver a esperança de voltar ao trabalho e preparar um salto de qualidade para o ano que entra. É o que está ao meu alcance.
Tudo o mais depende de muita gente: combater a fome, aliviar a tensão sobre a floresta e os índios, reanimar a ciência, levar um novo fôlego à cultura, apresentar uma imagem digna do Brasil lá fora.
Certamente, o passo essencial é impedir um novo mandato de Bolsonaro. Estou acostumado com suas barbaridades. Mas fiquei triste com a reação dos empresários quando ele disse que demitiu as pessoas do Iphan porque colocaram obstáculos às obras daquele senhor da Havan.
Os mesmos empresários que aplaudem a destruição do meio ambiente em nome do progresso aplaudem o desaparecimento de nossa memória e identidade. Se triunfarem em toda a linha, serei, como muitos outros, um exilado num país sem suas florestas, desmemoriado, tocando apenas a música das caixas registradoras.
Alguns poderão arrancar alguma beleza dessa paisagem desoladora, plantar uma flor no asfalto. Teriam de ter a força de um Bispo do Rosário, que, encerrado no manicômio, criou obras maravilhosas, usando o fio do uniforme de louco, tampas de garrafa.
Se Bispo do Rosário conseguiu criar algo numa atmosfera absolutamente áspera, quem sabe nós também sobreviveríamos à barbárie político-empresarial?
Mas não triunfarão. Neste momento da História, tudo indica que o povo brasileiro sabe pelo menos a quem rejeitar. A maioria não aceita Bolsonaro, e essa talvez seja a grande notícia do ano que começa logo.
Foi um ano de muitas leituras, aprendizado, biografias e romances. Nem por isso consegui transcender à banalidade do debate que o atraso nos impôs.
Não fantasio o futuro. Quem pensa com a própria cabeça sempre enfrentará consensos, partidos, corriolas. Mas nada, nada é tão difícil quanto os anos de domínio da extrema direita. No exílio, pelo menos a dor era compensada pelo fluxo de novas ideias.
Mas não há do que reclamar, exceto realizar o projeto de avanço, contar melhor as histórias, burilar as imagens, ouvir o som das ruas e estradas.
Em Atafona, São João da Barra, norte fluminense, num trabalho sobre o litoral brasileiro, conheci uma mulher de 86 anos que me disse: “Todas as manhãs deposito três rosas na Igreja Nossa Senhora da Penha, para agradecer mais um dia de vida”.
Não trabalho com escala tão curta, mais um dia de vida. Mas, olhando bem tudo o que se passou conosco, talvez valesse a pena depositar três rosas pelo ano que passou, pelo fato de termos vivido e estarmos prontos para o ano que virá. É uma maneira de desejar Feliz Natal e Ano-Novo; quem sabe no ano que vem poderemos nos aglomerar e jogar as flores diretamente nas ondas do Atlântico?
De qualquer forma, estaremos livres, trabalhando ou caminhando pelas ruas, e isso a pandemia nos ensinou que é uma das grandes dádivas da vida.