quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Relaxe


O Brasil tem muito a perder

O mundo vive hoje seu momento de maior tensão desde a crise dos mísseis de 1962. Estamos longe de uma terceira guerra mundial ou de um holocausto nuclear. Nem por isso deve-se subestimar as consequências do ataque americano responsável pelo assassinato do general Qassim Suleimani, segundo homem do regime iraniano.

A delicadeza do momento exige dos governos e líderes mundiais muita prudência e comedimento, como vem pregando Ângela Merkel, Emmanuel Macron e até mesmo Boris Johnson que tem sido um firme aliado de Donald Trump. Mesmo a Rússia e a China, aliados estratégicos do Irã, estão pisando em ovos para o caldo não entornar de vez.

A ninguém minimamente responsável interessa o acirramento de um conflito que pode afetar profundamente a economia mundial.



Esperava-se do Brasil postura semelhante. Sobretudo porque a tradição de sua política diplomática é de não tomar partido em conflitos entre países, de atuar cooperando para saídas pacíficas, além de acompanhar e fortalecer ações de mecanismos multilaterais como a ONU.

O Itamaraty sempre se norteou por dois eixos: o compromisso com os valores universais e a defesa dos interesses brasileiros.

As primeiras reações, contudo, vão na direção oposta, ditadas por uma política externa pendular: a ideologia tem falado mais alto do que o bom e necessário pragmatismo. O Ministério do Exterior apressou-se em divulgar uma nota que é uma obra-prima de alinhamento automático com os Estados Unidos, mal disfarçando a defesa do ato de Donald Trump.

Essa visão ideológica coloca o regime iraniano no mesmo patamar do Al-Qaeda e do Estado Islâmico, ao contrário da ONU que não qualifica o Irã como terrorista. Segue, ipsis litteris, a posição dos Estados Unidos. A consequência dessa política já se fez sentir, com o governo do Irã convocando a encarregada de negócios da embaixada brasileira para reclamar da nota do Itamaraty.

O Brasil só tem a perder com essa postura. O acirramento do conflito terá impacto no mercado mundial, com o preço do petróleo podendo chegar ao patamar de cem dólares, como já admitem alguns especialistas.

Nesse caso, o país será atingido duplamente. Os principais mercados de nossas exportações sofreriam retrações e, internamente, o governo ou rifaria sua política de não ingerência nos preços dos combustíveis ou teria de subsidiá-los, o que também geraria distorções. Traduzindo em miúdos: podemos ter mais inflação ou mais expansão dos gastos públicos. Um ou outro afetará o desempenho de nossa economia justamente quando ela dá sinais de recuperação.

Tampouco o Brasil está na situação que pode se dar ao luxo de dispensar mercados. A reclamação do Irã deveria servir de alerta quanto a possibilidade de as nossas exportações para os países islâmicos, um importante mercado do agronegócio, serem afetadas tanto pela generalização do conflito no Oriente Médio como pelo alinhamento com os Estados Unidos.

Não custa lembrar: esses países ficaram contrariados quando Bolsonaro revelou sua disposição de transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém; também por motivos ideológicos. Qual a vantagem do país em disseminar novas desconfianças em parceiros comerciais?

Por enquanto, o núcleo ideológico está dando as cartas, mas é precipitação acreditar que o Brasil pulará na piscina sem água, abraçado aos Estados Unidos. Na hora do vamos ver a economia costuma falar mais alto. Já aconteceu nas relações com a China, quando o núcleo pragmático formado pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, por militares do Planalto e pela equipe econômica conseguiu se impor. É torcer para o milagre se repetir. O avesso disso é jogar para perder.

Esquerdireita

É uma sensação inédita, a de acordar em 2020 e descobrir que, por uma insólita química, esquerda e direita se tornaram uma coisa só. O símbolo dessa simbiose é Eduardo Fauzi Richard Cerquise, ativista integralista, correligionário de Jair Bolsonaro no PSL e terrorista que, há duas semanas, atirou a bomba na produtora do grupo Porta dos Fundos. Na ficha de Cerquise, consta ter sido preso como black bloc nas manifestações de 2013 e defendido pela infame Sininho, militante próxima do deputado Marcelo Freixo, do PSOL. E que, para escapar à nova prisão, fugiu para onde? Para a Rússia. Mudou o Natal ou mudaram Cerquise, Sininho, Freixo e a Rússia?


Essa redução ideológica tem raízes. Começou quando Lula conseguiu empurrar toda a esquerda brasileira que não ele para a direita, fazendo de si próprio um dogma político-religioso e eliminando até possíveis sucessores —ou alguém os enxerga nos boulos, dilmas e haddads? Bolsonaro faz agora o mesmo com a direita —empurra-a para a esquerda, de modo que só reste ele como opção em 2022. Para não haver dúvida, dedica-se, desde que se sentou na cadeira, a desmoralizar seu único aliado ainda ameaçador, o ex-sergiomoro Sergio Moro.

Lula e Bolsonaro temem os meios tons. A hipótese de matizes intermediários —socialistas, trabalhistas, social-democratas, conservadores esclarecidos e liberais em geral—, capazes de gerir o Brasil, é veneno para as aspirações deles. Para permanecer no jogo, precisam polarizar o país e reduzi-lo à mesquinhez dos personalismos que representam.

A ideia de que Lula e Bolsonaro se tornaram a mesma pessoa, só que com sinal trocado, ofende os partidários de um e de outro. Para os bolsonaristas, Lula fu com o país. Para os lulistas, é o que Bolsonaro está fazendo na sua vez.

Para os que não se enquadram em nenhuma das categorias, e que talvez sejam 60% da população, os dois lados têm razão.
Ruy Castro

No ano 2020

É difícil acreditar que estamos a poucos dias do ano 2020 [crónica publicada na VISÃO de 26 de dezembro de 2019]. Difícil para mim. Para as minhas filhas é normalíssimo. A diferença é que, para mim, 2020 é o futuro. Para elas, é o presente. Eu, com a idade delas, esperava que em 2020 a gente já conseguisse viver noutros planetas. Elas esperam que a gente ainda consiga continuar a viver neste. Eu esperava que a gente andasse mais em naves espaciais. Elas esperam que a gente ande menos de carro.

João Fazenda

Falharam, ligeiramente, as profecias da ficção científica. Em vez de termos todos modernas naves à disposição, dizem-nos que o meio de transporte mais sensato e menos poluente talvez seja o burro. Afinal, chegamos ao futuro e Luke Skywalker não está a bordo da sua nave a combater o Império Galáctico, está empoleirado num jumento a combater o CO2.

Como tenho muito tempo livre, fiz o exercício de investigar o lugar para onde a humanidade tem vindo a dirigir o seu olhar, ao longo da história recente. Pode ser que isso aponte um caminho. No princípio do século passado, começámos a olhar para a grande tela do cinema. Depois, a meio do século, passámos a olhar para a tela da televisão. E agora, no início deste século, olhamos para a tela do telemóvel. Temos vindo a olhar para telas cada vez mais pequenas, e na companhia de cada vez menos gente: víamos cinema em salas cheias, víamos televisão só com a família ou os amigos e agora olhamos para o telemóvel sozinhos. Além disso, vemos cada vez mais coisas, e cada vez melhor, em telas cada vez menores. Os espectadores do início do século XX não tinham muito mais para ver do que o filme da saída dos operários da fábrica Lumière. Agora, cada operário da fábrica Lumière (se ela ainda existir) tem no bolso um aparelho que lhe permite ver milhões de filmes, incluindo o da saída dos operários da fábrica Lumière. O que é que este padrão indica? O que deseja uma espécie cuja ambição, aparentemente, é ver cada vez mais coisas, com cada vez maior nitidez, num écran cada vez menor? Talvez o problema seja o seguinte: quanto melhor vemos quem somos, menos aguentamos vê-lo numa tela grande. E preferimos não ter companhia, provavelmente porque o espectáculo é obsceno. Ou a gente melhora depressa ou, em breve, não há tela. Nem espectadores. Só uma imagem muito nítida de um mundo sem gente. Ui, que a passagem do ano está cada vez mais deprimente.

Livros para colorir

Retorno hoje a este espaço depois de um breve recesso de ano-novo. Para ele, escolhi dois livros tirados da estante de “ficção”, mas que se mostraram perturbadoramente atuais. Primeiro devorei Submissão, do francês Michel Houllebecq. Depois, ainda abalada, enfileirei finalmente O Conto da Aia, de Margaret Atwood. Duas distopias que têm em comum, além da discussão sobre fanatismo religioso e sua imbricação com o poder, o ataque à educação, e aos livros como seu combustível. De volta à realidade (sic), encontro Jair Bolsonaro estreando 2020 com um ataque aos livros didáticos, que, para ele, contêm um “amontoado” de coisa escrita e deveriam ser suavizados. Qualquer semelhança…

Todo candidato a autocrata tem horror ao conhecimento, à ciência, ao pensamento crítico, ao contraditório, a dados, evidências, fatos históricos, à dúvida, à filosofia, às ciências humanas, à pluralidade de pontos de vista, à palavra sem cabresto.

Não é à toa que não só as obras que me acompanharam nas férias, mas toda a literatura do gênero, tenham na destruição dos livros um ponto fulcral. No ano passado, convidada pelo Estado a listar livros para quem se interessa por política, recomendei o clássico sobre o assunto, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, este devorado nos tempos de faculdade – ah, essa universidade pública subversiva –, em que a sociedade de um futuro então longínquo, e hoje assustadoramente familiar, é construída a partir da queima de todos os livros (o título faz referência à temperatura em que o papel entra em combustão) por “bombeiros”. Nada mais atual que esta ironia num país em que o ministro da Educação ofende os cidadãos nas redes sociais, não?

O problema dos livros didáticos brasileiros está longe de ser o fato de que contêm textos demais. Ao presidente do País e a seus auxiliares deveria caber zelar pela acuidade das informações publicadas, pela revisão da linguagem e, principalmente, pela didática.

Uma das grandes chagas da Educação brasileira é que os alunos não compreendem o que é ensinado. Não adianta simplificar o conteúdo dos livros até torná-los tatibitate, enchê-los de figuras e muito menos, a pretexto de “suavizá-los”, recheá-los de ideologia e narrativas convenientes ao poder de turno – o que, no fim do dia, é o desejo subjacente à fala depreciativa de Bolsonaro.


Depois de investir contra o suposto hermetismo do material oferecido aos alunos, o passo seguinte imediato de todos os que seguem a cartilha autoritária é passar a apontar nele riscos de “doutrinação”, de “alienação” ou de “falsificação” de tudo aquilo que contrarie as crenças, os valores e a leitura de mundo e da História sustentados pelo ocupante do poder da vez.

Ao criar uma narrativa absolutamente fantasiosa – bem mais que a criatividade dos mestres da ficção científica distópica poderia supor, uma vez que o artefato “mamadeira de piroca” não encontra paralelo nem na República de Gilead –, segundo a qual Paulo Freire é ensinado nas escolas para promover lavagem cerebral nas crianças, o “kit gay” vem na lista de material escolar e as universidades são lavouras de maconha em larga escala, o governo Jair Bolsonaro investe diuturnamente, de forma sistemática e absolutamente irresponsável, contra a Educação que prometia resgatar das trevas da “esquerda”.

O legado do PT na corrupção e na falência da economia brasileira é uma chaga que será difícil de aplacar e cujo horror levou a que o bolsonarismo cruzasse a fronteira das distopias e virasse realidade. Mas em nenhum momento o PT demonstrou pelo conhecimento o desapreço que o presidente e seu entorno não conseguem esconder e que parece que não sossegarão enquanto não transformarem em política de Estado.

Pensamento do Dia

Mana Neyestani

Políticas sem rumo

Alçado muito rapidamente ao poder, o novo conservadorismo não dispunha nem de programa, nem de quadros. Por isso, em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro mais atravancou do que construiu políticas públicas.

Sergio Moro, a estrela do governo, propôs um ambicioso pacote legislativo anticrime que primeiro foi engavetado e depois completamente reconfigurado pelo Congresso, mostrando que a desarticulação da nova política paga um preço.

Na educação, prevaleceu durante todo o ano uma mistura de polêmicas inócuas e inépcia administrativa. Vélez Rodrigues e depois Weintraub bradaram contra a cultura progressista das universidades e o conteúdo dos livros didáticos, mas não foram capazes de propor nenhum tipo de política própria.


Os defensores do presidente tiveram que se bater pela miúda política do método fônico de alfabetização e por um pouco expressivo programa de captação de recursos e empreendedorismo para as universidades que está fadado ao fracasso.

Na cultura, as controvérsias ideológicas produziram uma pouco expressiva mudança na Lei Rouanet e uma grande paralisia no desembolso dos recursos do audiovisual.

Roberto Alvim chegou no final do ano, prometendo trazer uma visão genuinamente conservadora, mas o baixo orçamento, os limites constitucionais e a falta de respaldo no meio são garantia de que sua política também vai ser inócua.

No meio ambiente, Salles buscou se concentrar em um ambientalismo urbano que escapasse da contradição de preservar o meio ambiente e sustentar o compromisso com o ruralismo predador.

O ministro tentou desenvolver ações que ignorassem o desmatamento e se concentrassem em uma política de resíduos e saneamento básico. A dimensão da crise na Amazônia, porém, soterrou seus esforços. Aqui, a agenda negativa não pode ser considerada inócua, já que as consequências para o clima são graves e duradouras.

É na discreta pasta dos direitos humanos que o governo parece ter sua vitrine. Damares foi aos poucos convertendo a política de direitos humanos numa política de defesa da família tradicional, dando sequência a seu habilidoso trabalho político interdenominacional no meio evangélico.

Olhando com distanciamento, o bolsonarismo no primeiro ano foi apenas paralisia e controvérsia vazia --pelo menos no tocante às políticas públicas. O governo só apresentou uma política própria no campo econômico, que ele sempre tratou como um apêndice desimportante, afastado da agitação conservadora que o sustenta.
Pablo Ortellado

A porta

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para Moçambique. Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou vozes dizendo:

- Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!

E a porta não foi aberta. Chegou um mulato moçambicano, querendo entrar. De novo, se escutaram protestos:

- Não deixa entrar, esses não são a maioria.

Apareceu um moçambicano branco e o porteiro foi assaltado por protestos:

- Não abre! Esses não são originais!


E a porta não se abriu. Apareceu um negro moçambicano solicitando passagem. E logo surgiram protestos:

- Esse aí é do Sul! Estamos cansados dessas preferências…

E o porteiro negou passagem. Apareceu outro moçambicano de raça negra, reclamando passagem:

- Se você deixar passar esse aí, nós vamos-te acusar de tribalismo!

O porteiro voltou a guardar a chave, negando aceder o pedido. Foi então que surgiu um estrangeiro, mandando em inglês, com a carteira cheia de dinheiro. Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave no bolso. Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique para Moçambique.
Mia Couto

Mister M, o ilusionista

Crimes caíram em todo o país em percentuais sem precedentes históricos em 2019. Leio de alguns ‘especialistas’ em segurança pública que o Governo Federal não tem nada a ver com isso. Dos mesmos que compunham ou assessoravam os governos anteriores quando os crimes só cresciam.
(...) Os criminosos, sem diálogos cabulosos, sabem por que os crimes caem. Trabalhamos para melhorar a vida das pessoas e o que importa é que os crimes continuem caindo.”
 Sergio Moro, ministro da Justiça

A milícia no poder

Para visitar o pai em Porto da Rosa, São Gonçalo, periferia de Niterói, Maria do Socorro é obrigada a se identificar em mais de uma barricada formada por traficantes e milicianos. Grades fincadas no concreto em plena área pública. Bandidos exibindo armas. Ruas assombradas. Por onde transitam crianças, velhos, trabalhadores. 

São 22 mil habitantes em Porto da Rosa.

Vila do João, na Maré, uma das maiores favelas do Rio de Janeiro, Suzana, motorista de aplicativo tem o carro seguido por traficante armado, até a casa do cliente. Faróis ligados, vidros abaixados. Rotina de terror. O motoqueiro armado segue o carro na volta até que saia da área dominada. 

Conjunto habitacional criado pelo Projeto Rio, do Governo Federal, década de 80, para abrigar pessoas que viviam em palafitas na Baixa do Sapateiro, Vila do João, por ironia, foi batizada em homenagem ao General João Baptista de Oliveira Figueiredo. Hoje, cerca de 12.000 pessoas vivem sob o vergalho da milicia e do tráfico. 

Em Vai quem quer, em Caxias, subúrbio do Rio, a vizinhança anda aterrorizada pelas armas escancaradas no meio da rua. Pior, por noticias arrepiantes de massacre de jovens que não colaboram com os bandidos. Rotina de pânico. 



Quem estuda o assunto, no Ministério Público, diz que há menos de 20 anos se formava em Rio das Pedras o primeiro grupo que começaria a explorar a população pobre da periferia. Em 2019, calcula-se que a milicia já domina 26 bairros da capital, e dezenas de cidades do interior do estado. 

O crescimento das milicias é tão expressivo que a guerra com entre milicianos e traficantes, antes quase diários, vem rareando. A Polícia Civil, segundo reportagem de Henrique Coelho, do G1, afirma "que a união de grupos paramilitares desbancou o tráfico e passou a comandar as comunidades praticamente sem resistência". Na Grande Jacarepaguá, apenas a Cidade de Deus está sob o comando do tráfico.

Bandidos da mesma laia, qual seria então a diferença entre traficante e miliciano? 

"O traficante nunca terá carreira em ascensão. No máximo, preso, controla a facção da prisão. O traficante está restrito na escala de poder à área onde ele está. Eles não conseguem eleger pessoas como a milícia", analisa José Cláudio Souza Alves, sociólogo, professor da UFRRJ, estudioso da atuação das milícias na Baixada, região com os piores números de violência do Estado. 

A milícia, ensina o professor, tem um poder maior, muito superior, não tem comparação. "Nós saímos da ditadura oficial para a ditadura dos grupos de extermínio e milícias". 

Um traficante nunca será candidato a nada. O miliciano se elege.

Brasil vagabundo


Bolsonaro e o déficit da Previdência

Basta de mistificação. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha — o maldito fundão — é lei. A de número 13.487, de 2017. O texto, no artigo 16, é explícito: o “Fundo é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral (…)”

Repito: é lei. Já foi sancionada. Não está em debate. E nada tem a ver com Jair Bolsonaro. É matéria impessoal. Qualquer proposta de orçamento em véspera de ano eleitoral deverá contemplar previsão para aquele fundo. Seria assim — igualzinho — se Fernando Haddad tivesse vencido. Se cabo Daciolo estivesse na Presidência: seria assim. Será assim, novamente, em 2021. Qualquer que fosse (for) o governo precisaria (precisará) incluir destinação de valores para este fim. O governo Bolsonaro o fez. E enviou ao Parlamento.

A discussão ora havida — uma polêmica artificial estúpida, que investe na confusão e escapa do que importa — é sobre o valor dessa dotação; e sobre se o presidente pode ou não vetá-lo. Lembremos… Depois de muita atividade legislativa, e do surgimento influente da ideia de elevar o montante para cerca de R$ 4 bilhões, o Congresso — dobrado pela reação da sociedade — por fim definiu a tunga em pouco mais de R$ 2 bilhões, a mesma quantia prevista pelo governo; ou seja: por Bolsonaro. Ele poderia vetá-la? Sim. Para que não reste dúvida: sim, poderia vetar o valor estabelecido.

A pergunta é outra, contudo: que sentido faria o presidente vetar uma dotação que ele mesmo propusera?

Nenhum. Né? Mas é aí, na ausência mesmo de razão, que começa a enrolação; a vergonhosa manipulação dos fatos e do que versam os códigos pelo presidente e seus bate-paus. Um padrão já mapeado e que se baseia na mentira como método — mentira logo instruída e ministrada via WhatsApp etc. Bolsonaro mente. Quer se desvincular, para efeito de percepção popular, do sistema de que faz parte e — sempre criminalizando a atividade política — empurrar a responsabilidade exclusivamente contra o Parlamento. Foi assim, em grande medida, que erigiu a eficiente farsa de sua persona antiestablishment.


O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus. Mentir, desinformar — é como compreende “preparar a opinião pública” para quando, afinal, sancionar a dotação bilionária para o fundão. Bolsonaro precisa enganar — ou tentar — porque um de seus pilares de sustentação mais importantes, aquele (instável) lavajatista, é hostil à estrutura partidária (à democracia representativa) e aos mecanismos públicos de financiamento dessa máquina. Daí por que jogue para sua rede que, se vetasse aquela linha do orçamento, incorreria em crime de responsabilidade — um gatilho para que, segundo sua versão, fosse vítima de um processo de impeachment. Pura balela. Ou teríamos o incrível evento do crime de responsabilidade em decorrência de infração à lei inexistente…

A lógica elementar aterra a cultura da desinformação difundida pelo próprio Bolsonaro: se a lei está para ser sancionada, é claro que pode ser vetada. Se está para ser sancionada, e se pode ser vetada, lei vigente ainda não é. Oh!

Vetar é prerrogativa do presidente. Vetar é opção legítima plenamente assegurada à função de chefe do Executivo; aquele que decide — que precisa decidir — e cujas decisões não raro deságuam em impopularidade. Se, porém, neste caso, dado o histórico de seu discurso contrário ao que representa o tal fundo, vetar — decidir — significa também o risco de ser entendido (pelos seus) como cometendo estelionato eleitoral, e se esse é (e é) um grande dilema (paralisante) para Bolsonaro, um governante que só sabe se comportar como candidato em campanha, eis o que sobra (inclusive aos que não lhe votaram): a expressão de um presidente cujo déficit de Presidência é alarmante.

Eis o que falta: um governante capaz de explicar à população de que maneiras a lei o limita e obriga, e por que, afinal, caímos nessa arapuca de financiamento público de campanha eleitoral. Esse que sempre foi o maior problema; o erro fundamental, o que importa aqui e do qual toda a mistificação corrente deriva: aquela ocasião, ainda em 2015, quando o STF — legislando, jogando para a galera, e festejadíssimo por muitos entre os que hoje praguejam contra o fundão — declarou, sem avaliar consequências, sem estudar qualquer possível modulação, sem pensar em aperfeiçoamentos do modelo, a inconstitucionalidade do financiamento empresarial de eleições.

Dinamitou-se o prédio sabendo que outro teria de ser erguido ali — e sem qualquer projeto de edificação para ocupar o terreno, o que costuma resultar em engenharia pior, paraíso para a construção de um puxadinho.

O que os bem-intencionados pensavam que viria no lugar?

O problema — toda a desgraça — não está em quanto de dinheiro público será gasto para bancar eleição; mas que eleição, no século XXI, seja bancada por dinheiro público.

'Doutrina Guedes' coloca o Brasil à venda

O Governo brasileiro quer vender tudo. Não é uma licença jornalística ou uma tentativa de capturar o leitor: são palavras literais do czar econômico de Jair Bolsonaro, o ultraliberal Paulo Guedes, e do próprio secretário-geral de privatizações, Salim Mattar, uma figura cuja mera existência é uma declaração de intenções. Para além da retórica, já colocaram mãos à obra, demonstrando que vão com tudo em um plano de privatização iniciado na época de Michel Temer, mas que ganhou força com o nacional-populista no poder. O objetivo autofixado de arrecadar 20 bilhões de dólares em 2019 através da venda, parcial ou total, de participações em empresas ou ativos de titularidade do Estado foi superado: até o fim de setembro as autoridades brasileiras tinham vendido participações em empresas arrecadando mais de 19 bilhões de dólares, oferecido infraestruturas por 6 bilhões e leiloado direitos de exploração de matérias-primas —principalmente petróleo— por 12 bilhões. Embora com mais obstáculos do que a nova administração gostaria, no último trimestre do ano —período para o qual ainda não há dados disponíveis—, o número continuou engordando.

O argumento para a venda dos ativos públicos que estão nas mãos do Estado repousa sobre dois pilares. O primeiro, fiscal: são necessárias mais receitas para reequilibrar as contas públicas e diminuir uma dívida que se aproxima perigosamente de 80% do PIB. O segundo, o que mais pesa, é puramente ideológico: Guedes, fiel à doutrina da Escola de Chicago, é totalmente favorável à ideia de que o setor privado é, por definição, melhor gestor do que o Estado e afirma que a venda de bens públicos diminuirá a corrupção. A ânsia privatista nasce, na boca do próprio ministro da Economia, da “disfuncionalidade” das próprias empresas públicas pela qual culpa o PT de Luiz Inácio Lula da Silva.


No horizonte do mandatário de ultradireita, surge um objetivo: obter mais de 320 bilhões de dólares em privatizações e leilões de infraestrutura —de poços de petróleo a estradas, aeroportos e portos— durante seu mandato. Somente no ano recém-iniciado Mattar anunciou a vontade do Governo de se desfazer de sua participação em 120 empresas, número que pode mais que dobrar caso se consiga a aprovação do Senado —um extremo que não está nada claro, dada a controvérsia política e a resistência social— pela venda da Eletrobras e suas subsidiárias. Para além da holding elétrica estatal, Guedes e sua equipe deram um passo à frente na venda do porto de Santos (o maior da América do Sul e o segundo mais importante da América Latina) e de suas ações na empresa de telecomunicações Telebras. Uma lista da qual já faziam parte os Correios e a Casa da Moeda e à qual acabam de ser adicionados os 21% da gigante da carne JBS, ainda nas mãos do Estado através do BNDES e que sairá ao mercado aproveitando seu bom momento no mercado de ações, em pleno auge das exportações para a China.

O movimento com a JBS é muito parecido com o que o Governo quer realizar com a Petrobras: continuar se desfazendo gradualmente de sua posição acionária, ainda superior a 42%. Paralelamente, o Congresso já se movimentou para facilitar a entrada de dinheiro privado no setor de tratamento de água em um país em que quase metade da população, cerca de 100 milhões de pessoas, ainda não tem acesso a esse serviço básico. São marcas de identidade com as quais Bolsonaro quer se apresentar aos investidores no final de janeiro no Fórum de Davos, onde tentará explorar a imagem de um Brasil que deixou para trás os dias de recessão e redobrará os acenos aos investidores.

Diante do alarde com o qual o Governo está vendendo o processo, prudência. “No papel, parece impressionante, mas a execução será muito difícil. É uma operação, principalmente, da porta para fora e convém diminuir as expectativas”, diz Aldo Musacchio, da Universidade Brandeis. “A experiência nos mostra que é preciso tomá-lo com um grão de sal”. Na mesma linha, Lourdes Casanova, diretora do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell, pede cautela e alerta para dois riscos: a criação de monopólios privados, como aconteceu em outros países da América Latina, e a debilitada capacidade de negociação do Brasil depois de ter estabelecido um objetivo concreto de privatizações. “Sempre se deve vender a partir de uma posição forte. Quando você é obrigado e o comprador sabe disso, ele te pressiona”. A maioria dos brasileiros tampouco vê isso claramente: mais de dois terços dos consultados em agosto pelo Datafolha eram contra o plano de privatização.

“É verdade que o Governo conseguiu superar seu objetivo de arrecadação em 2019, mas principalmente pelas concessões, sobretudo as de petróleo e gás. A única opção de privatização total é a Eletrobras, para a qual esperamos que obtenha a aprovação do Congresso em 2020 ou 2021”, afirma Chris Garman, da consultoria Eurásia. "Em resumo: o progresso foi positivo, mas distante do que Guedes prometeu na campanha”. Um pouco mais otimista se mostra Alberto Chong, professor de economia da Georgia State University e autor de Privatizações na América Latina: Mitos e Realidades, que prevê “um aumento relativamente imediato na qualidade dos serviços públicos da maioria das empresas privatizadas, melhoria palpável na cobertura dos serviços” e, isso sim, “demissão de trabalhadores das antigas empresas estatais”.

Se os números projetados por Brasília forem finalmente alcançados, não haverá precedentes próximos de uma onda privatizadora dessa envergadura. Entre 1991 e 2001 o setor público transferiu o controle de 119 empresas ou participações em empresas. Obteve 68 bilhões de dólares e reduziu a dívida em 18 bilhões, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), números que fizeram da operação uma das maiores transferências de ativos públicos da história. “Ali foram vendidas as joias da coroa: Vale, Petrobras, Siderbras...”, destaca Musacchio. Mas mesmo depois esse movimento, país possui 418 empresas de titularidade pública, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Quase 140 delas estão nas mãos do Governo central e cerca de uma centena está no radar de privatizações de Bolsonaro. Fiel à sua estratégia de mão dura, seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, já disse que, nos casos em que for impossível vender, se decidirá diretamente pela liquidação. Tudo para cumprir sua missão: diminuir ao máximo o tamanho do Estado.

A questão do salário na democracia

Escondidinho no jornal menos lido do ano, o da ressaca do primeiro dia da década que o país inteiro torce para que venha a ser finalmente “a ganha”, a Folha de S. Paulo registrou solitariamente estudo da Controladoria Geral da União que constata que desde 2003 nem um único funcionário público brasileiro foi demitido por mau desempenho, veja você! Houve “expulsões” por flagrante de roubalheira, mas a matéria não esclarecia se os excluídos perderam também os salários ou se, como acontece com os juízes ladrões, foram apenas aposentados compulsoriamente com todos os “direitos” garantidos.

No mesmo período, que coincide com a “Era PT”, triplicou o gasto com a folha de pagamentos do funcionalismo (0,5% da população), do que resultou que mais de 92% da quase metade do PIB que o governo toma todo ano ao país que produz com o pretexto de investir em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas passou a ser gasto só com a privilegiatura, o que resume para além da costumeira empulhação a causa da presente miséria nacional.

Estabelecido o fato, entretanto, prosseguia a matéria pelo padrão geral da imprensa, qual seja, a discussão com “especialistas”, todos eles também funcionários públicos, sobre qual a “solução” possível excluída a única efetiva que é aderir ao regime democrático. E lá vinha: que ha 21 anos está inscrito na Constituição que funcionários podem ser demitidos por “insuficiência de desempenho” mas a matéria nunca foi regulamentada; que embora haja esboços de “meios para premiar o bom desempenho” (ao qual será sempre interposta a regra da “isonomia” elevada à condição de intocável “princípio” por édito do Poder Judiciário que herdou intactos os poderes do imperador)“faltam instrumentos de avaliação para punir o mau desempenho”, outra impossibilidade prática fora da ordem democrática, aliás, pois sem ela serão sempre os próprios “fornecedores” e não os “clientes” que “avaliarão” quando um serviço público foi bem ou mal prestado…

Na democracia pode variar quem toma a iniciativa de propor qualquer regra ou mudança de regra – os eleitores ou os eleitos – mas não varia nunca quem toma a decisão final. E o campo onde mais evidentemente pode-se constatar o caráter opressivo das decisões impostas fora da ordem democrática é o da regulamentação dos salários, tanto públicos quanto privados.

A constituição dos Estados Unidos só menciona salários em quatro passagens: ao definir que o presidente, os legisladores e os juizes farão jus a “uma compensação” que não poderá ser aumentada ou diminuída durante seus mandatos e na 28a e última Emenda, de 1992, que determina que qualquer alteração nos salários dos congressistas decidida em plenário só vigorará para o próximo congresso eleito.

Nas constituições estaduais os salários públicos são definidos com ou sem a mediação de comissões especiais independentes mas, ou antes, ou depois da aprovação, a decisão tem de ser ratificada pelos eleitores ou pode ser desafiada por eles em referendo. Só quatro cargos são definidos nessas constituições. Os de governador e vice, o de chefe do ministério público e o de secretário de estado, o encarregado de organizar todas as “eleições”, as do calendário e as “especiais” que incluem as “deseleições” por recall (230 funcionários foram alvo delas em 2019), os referendos de leis dos legislativos e outras decisões no voto que vão da aprovação ou não de obras públicas específicas ao casamento gay. Os quatro são diretamente eleitos pelo povo. Todas as outras “secretarias” estaduais são opcionais. Cada estado pode ter as que quiser e definir se quer seus titulares eleitos ou nomeados. Vai daí, em 2016 o funcionário mais bem pago em todos os 50 estados era o secretário de educação, recebendo por volta de 300 mil dólares/ano, quase o dobro, em média, do que recebiam os governadores e os demais secretários.

Mais interessante ainda é a definição do salário mínimo. Na virada do ano 24 estados mais Washington D.C. já tinham decidido aumentos do “salário mínimo por hora” de 2020. Os acréscimos vão de 0,10 dólares na Flórida a 1,50 no Novo México, Washington e Nova York. Em 8 desses estados os aumentos são determinados por decisões de iniciativa popular anteriores indexando o salário à inflação, 10 por leis votadas em 2019, 6 por leis de inciativa popular alterando decisões anteriores.

Nova York e Oregon têm três mínimos diferentes: para New York City, Long Island e Westchester e para o interior, um; para a área metropolitana de Portland e para o resto do estado, caso a caso, o outro. Washington tem mínimos diferentes para quem recebe ou não gorjetas. Nevada diferencia os que recebem e os que não recebem benefícios de saude. Ha os que atrelam e os que não atrelam os aumentos à inflação. Ha os que decidem ano a ano e os que fazem acordos de aumentos graduais por um período de vários anos.

A definição “por hora” atende ao requisito de plena liberdade de horário e tempo de trabalho que cada pessoa pode escolher ter para si. E as diferenças entre estados apontam para a melhoria da distribuição da renda pela oferta de condições mais vantajosas de investimento e emprego para os estados em piores condições na disputa por eles.

Assim, na próxima vez que lhe despejarem aquelas explicações complicadas e cheias de fronteiras indefinidas sobre o que é ou não “democracia” feche seus ouvidos e saia bocejando. O que define isso não é o que está ou não escrito na constituição ou neste ou naquele texto filosófico. A questão é absolutamente simples e incontroversa. A revolução democrática é a que inverte a hierarquia das relações de subordinação entre os membros da sociedade feudal. Há democracia quando todas as decisões do governo têm de ser submetidas ao povo. Não ha democracia quando o povo é que é submetido a todas às decisões do governo. E só a ordem democraticamente estabelecida é legítima. Qualquer coisa fora dela é opressão e você tem não só o direito como também o dever moral de não se submeter a ela.