sábado, 24 de setembro de 2016

O império dos fatos

O velho adágio de que os cães ladram e a caravana passa ilustra bem o atual cenário político brasileiro. Enquanto o PT, exposto a um strip-tease moral sem precedentes, exerce o chamado jus sperniandi, a Lava Jato prossegue incólume sua trajetória.

Contra fatos, não há argumentos – e o que há são os fatos. Sua excelência, o fato, dizia Ulysses Guimarães. E o que deles se conhece, já de si avassalador, é pouco mais de um terço do que há por vir, segundo a Força Tarefa. A Lava Jato tem pelo menos mais um ano de serviço pela frente. Há ainda muita lama por emergir.

Lula, réu pela segunda vez – em Brasília e em Curitiba -, vai aos fóruns internacionais, aciona sua militância, proclama-se vítima e perseguido político, na vã tentativa de dar cunho ideológico a acusações de natureza penal. O que está em pauta, porém, nada tem a ver com ideologia. Trata-se de roubo, que não é de esquerda, nem de direita: é apenas crime, nos códigos penais de todo o planeta.

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E é disso que se trata. O ex-presidente é acusado de chefiar a maior quadrilha de que se tem notícia na história do país – da Colônia à República. Quando a Força Tarefa, semana passada, fez a denúncia, os advogados de Lula, coadjuvados pela militância, se empenharam em depreciar como inapropriada aquela iniciativa.

O argumento é de que não se pode fazer da justiça espetáculo. É possível, mas também não se podia fazer da corrupção método de governo, como foi feito, acionando-se depois máquinas de propaganda para obstruir e denegrir as investigações.

Com réus heterodoxos, não cabe ortodoxia. O que irritou o petismo foi o fato de ter sido possível, pela primeira vez, traduzir para a compreensão de um público maior a extensão e gravidade do que se está investigando – e o que, dentro disso, representam, por exemplo, o tríplex e o sítio de Lula.

Esta semana, mais um petista graduado, Guido Mantega – ministro da Fazenda de Lula e de Dilma -, foi trazido ao centro das investigações, acusado de participar da propinocracia. Ele pediu ao empresário Eike Batista, segundo denúncia deste, “contribuição” para as despesas da campanha de Dilma, que viria da rapina da Petrobras.

Dilma, até há pouco preservada de suspeitas, já integra o rol de investigados. Presidia o Conselho Administrativo da Petrobras e era ministra de Minas e Energia no início da Era Lula, quando tudo começou. A seguir, comandou a Casa Civil e sucedeu o Chefe – ou seja, esteve sempre na cabine de comando.

Os fatos são esses e as investigações agora afunilam. Se há inocentes a bordo, a oportunidade de prová-lo chegou. Não adianta ir à ONU e aos tribunais internacionais – e muito menos apelar à solidariedade de governos bolivarianos, à beira do naufrágio.

Outro revés petista deu-se esta semana: a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região manteve, por 13 votos a um, o arquivamento da representação contra o juiz federal Sérgio Moro interposta por 19 advogados em abril.

Os advogados recorreram contra a decisão do corregedor-regional da 4.ª Região, em junho, de arquivar as reclamações. A representação postulava instauração de processo administrativo disciplinar contra Moro e seu afastamento cautelar da jurisdição até a conclusão da investigação – na prática, o fim da Lava Jato.

Moro, segundo seus acusadores, teria cometido ilegalidades ao divulgar comunicações telefônicas de autoridades com privilégio de foro – mais especificamente a conversa entre Lula e Dilma, que inviabilizou a nomeação do ex-presidente à Casa Civil.

O relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti, foi curto e groso: “Não há indícios de prática de infração disciplinar por parte de Moro”. Assunto encerrado: PT, saudações.

Lula e aliados já não são matéria política. Têm encontro marcado com a Justiça. As atenções do meio político voltam-se agora para o futuro: a gestão do trágico legado econômico-administrativo do PT. Câmara e Senado começam a discutir a PEC 241, que trata do teto dos gastos públicos, questão espinhosa e incontornável, que centraliza as atenções do governo Temer.

O país quer olhar para a frente, se reerguer, enquanto a Força Tarefa aciona o espelho retrovisor do camburão.

Parabéns

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O futuro era muito melhor antigamente
Luis Fernando Verissimo que completa 80 anos na segunda-feira

A Lava Jato fica e a tigrada passa

Questionar eventuais equívocos e excessos de uma operação ampla e complexa como a investigação da corrupção generalizada no governo é uma obrigação dos cidadãos conscientes. A mídia tem feito isso, exemplarmente. Mas há uma enorme diferença entre a crítica objetiva e isenta e a deliberada e maliciosa tentativa de induzir as pessoas a acreditar que o erro não é a exceção, mas a regra, e que, portanto, a Operação Lava Jato deve ser proscrita, como uma coisa “do Mal”.

Um dos efeitos maléficos da prolongada – mais de uma década, tempo em que o lulopetismo conseguiu se manter no poder – divisão do Brasil entre “nós” e “eles”, personificações do Bem e do Mal, foi a crescente incapacidade de uma verdadeira legião de brasileiros que se considera bem pensante – artistas, acadêmicos, jornalistas, intelectuais em geral – de demonstrar um mínimo de isenção e objetividade diante dos principais fatos que movimentam o amplo e tumultuado cenário político nacional. O fenômeno que talvez melhor ilustre essa situação é justamente a Operação Lava Jato, símbolo do combate à corrupção na gestão da coisa pública.

No cumprimento da missão de investigar e levar à Justiça os responsáveis pela corrupção no governo, a Lava Jato acabou mirando, obviamente, gente do governo, figurões políticos e operadores do PT e de seus aliados, além de empresários delinquentes para quem o princípio da livre concorrência está baseado na capacidade de oferecer a maior propina. Lula e o PT – isso tem sido reiteradamente afirmado neste espaço – não inventaram a corrupção. Na verdade, chegaram ao poder prometendo acabar com ela e “com tudo de errado que está aí”. Mas, em nome da perpetuação de seu projeto de poder, renderam-se à pragmática conclusão de que é mais fácil comprar apoio político com dinheiro do que conquistá-lo por meio do debate de ideias. Mensalão e petrolão, essencialmente a mesma coisa, tornaram-se então método político do lulopetismo.

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Ocorre que Lula e a tigrada delinquiram em nome de um “projeto popular” apresentado como a quinta-essência da política “do Bem”. E quem não se alinhou a essa política passou a ser “do Mal”, ou simplesmente “eles”, a quem “nós”, os adoradores de Lula, o Supremo, declararam guerra sem trégua.

Logo, se sou “do Bem”, como posso tolerar um aparato investigatório que ousa apontar o dedo para os principais heróis do projeto de salvação nacional que só não deu certo, ainda, por culpa da globalização da economia e da sabotagem dos inimigos do povo? Para quem pensa assim – melhor dizendo, reage assim – a Operação Lava Jato é coisa armada por “eles”. Mas pega mal dizer isso com todas as letras, até porque a corrupção deixa um rastro muito evidente de podridão e fedor. Então, atacam pelas beiras, explorando detalhes, para exaltar seus heróis e denegrir os defensores da lei.

Essa é a estratégia de ilustres lulopetistas que formam a quinta coluna. Na primeira linha ficam celebridades mais afoitas, abraçando Lula e Dilma em ambientes protegidos e exibindo cartazes de “Fora Temer” e “Diretas Já”.

A indisfarçável intenção de Lula e seus seguidores – os que ainda restam – de desmoralizar a Operação Lava Jato para salvar a própria pele coincide com a igualmente clara disposição de políticos do PMDB e muitos outros partidos ex-aliados dos petistas, e que se mantêm governistas, de “estancar essa sangria”, como já disse o senador Romero Jucá.

Para alegria e orgulho dos brasileiros honestos, o fato é que a conspiração contra o combate à corrupção oficial, também com certa ironia, revela que as instituições democráticas têm sido suficientemente fortes para resistir ao assédio de quem só pensa em tirar proveito político e pessoal do poder. O povo brasileiro está cansado de ser enganado e espoliado por governantes inescrupulosos e aposta firme no saneamento do aparelho estatal, até o ponto em que isso é humanamente possível. A Lava Jato fica, a tigrada – a que não for presa – passa.

Imagem do Dia

Cambridge, Inglaterra

Acabou a lua de mel de Lula com os servidores públicos?

Causou-me bastante estranheza o ataque desferido pelo ex-presidente Lula a uma parcela tão significativa do eleitorado do PT (e demais partidos linhas auxiliares) na última quinta-feira. Ver o mais novo denunciado pela Lava-jato desagradando eleitores bovinamente fiéis como os servidores públicos concursados (em sua esmagadora maioria) foi deveras inesperado, especialmente porque, neste momento, ele precisaria angariar apoio, e não desgostar parte de seu público cativo, sempre tão grato pelos inúmeros certames realizados durante seus dois mandatos, e pelos gordos reajustes concedidos. Desde então, diversas foram as reações ao discurso inflamado, mas acredito não ter visto nenhuma que tenha acertado o real motivo da indignação de Lula. Senão vejamos:

– Lula estaria, de fato, enciumado com o fato de que “servidores passam no concurso e só ficam esperando a aposentadoria”? Não creio: o maestro do Petrolão já recebe mais de oito mil reais mensais apenas como indenização por ser sido anistiado político, e ele sabe que as regras para aposentadoria de políticos são extremamente benéficas. Para se ter uma ideia, o Deputado Tiririca, caso queira voltar ao circo depois de findado seu segundo mandato, pode requerer aposentadoria de quase nove mil reais. Inveja de quem precisa trabalhar 35 anos, definitivamente, não foi;

– Lula teria sentido uma pontinha de inveja de quem cursou o ensino superior? Improvável: Lula sempre se gabou de não ter estudado e, ainda assim, ter assumido o mais alto posto da República. Além disso, ele já foi agraciado, por professores universitários militantes da Esquerda, com diversos títulos de Doutor honoris causa. Inveja de quem ralou muito estudando é impossível;

– Lula acha errado ser julgado por “analfabetos políticos que não sabem o que é um governo de coalizão”? Bom, Dilma também não sabia, a tal ponto que conseguiu desfazer toda a base de apoio construída por seu antecessor no congresso nacional. Entretanto, ele seguiu até o último instante tentando impedir seu impeachment, oferecendo benesses a partir de seu bunker no hotel Royal Tulip. Então não foi isso;

– Lula gostaria de não precisar encarar o público e ser chamado de ladrão a cada eleição? Difícil acreditar: Luiz Inácio é praticamente um palanque ambulante, e sua habilidade de soltar disparates e bravatas com um microfone na mão é diferenciada. Claro que seria ótimo ficar Ad Eternum no poder como os camaradas irmãos Castro, mas eu duvido que ele não se divirta a cada dois anos tentando eleger seus postes;


Eis o que tenho certeza que despertou a ira de Lula: tanto Procuradores do MPF quando Juízes Federais não só são estáveis na carreira (não podem ser demitidos sem justa causa) como são inamovíveis, isto, é, não podem ser transferidos de seu local de trabalho sem que tenham requisitado tal remoção. O sonho de Lula seria encostar em algum apadrinhado político seu e exigir a exoneração tanto de Delton Dalagnoll quando de Sérgio Moro, ou, se estivesse de melhor humor, apenas pedir que ambos fossem mandados para o Oiapoque. Ou para campos de concentração, se estivesse em Cuba.

Mas ele não pode. Por quê? Ora, os dois são concursados. Não foram, portanto, nomeados como retribuição de favores (moeda de troca eleitoral), e não podem, por isso, serem demitidos ao bel prazer de qualquer autoridade. Tais prerrogativas (dentre outras previstas no estatuto da Magistratura e na lei orgânica do Ministério Público) possibilitam que estes agentes de imposição da lei batam de frente com pessoas poderosas e bilionárias sem temer represálias de qualquer natureza. Ou alguém discorda que, se assim não fosse, Marcelo Odebrecht & Cia já teriam mexido os pauzinhos para acabar com a carreira de todos os membros da Lava-jato?

O concurso público visa atender aos princípios constitucionais da eficiência e da impessoalidade. Pode-se discordar do número de concursos realizados na última década (que incharam o Estado, gerando muita despesa permanente, e criaram uma verdadeira indústria de cursos preparatórios, afastando muitos profissionais gabaritados da iniciativa privada) ou do formato adotado (muitos defendem que as seleções, atualmente, não privilegiam os melhores profissionais), mas triar os candidatos é essencial, até mesmo para permitir que qualquer pessoa possa desempenhar uma função pública – ainda que não possua qualquer indicação política e seja oriunda de famílias de baixa renda.

Mas Lula, se pudesse, gostaria de indicar todo e qualquer funcionário público dos três Poderes, e utilizá-los como peça do seu esquema criminoso de poder (tal qual afirmou o STF no julgamento do Mensalão), como fez, como singelo exemplo, com Paulo Roberto Costa na Petrobras. E está espumando de raiva porque assim não é.

É claro que alguém poderia alegar que a estabilidade é uma prerrogativa que não deveria ser estendida a todos os funcionários públicos – e eu irei concordar. Apenas autoridades que necessitam de muita autonomia e independência no desempenho de suas funções deveriam usufruir deste direito/garantia. Caso contrário, fica muito difícil reduzir a folha de pagamento da administração pública em momentos de recessão. Todavia, não se pode duvidar que, não fossem estáveis os membros da Lavajato, e a capital do Paraná jamais teria se transfigurado na República de Curitiba.

Lula está claramente perdido. Tentou dar um tiro no próprio pé, afugentando alguns de seus últimos apoiadores. Mas nem tanto. Certamente, a maioria dos servidores públicos vai fabricar alguma justificativa para as frases desmedidas do ex-presidente, contemporizando seu discurso. Quem sabe podem até levar bolo para ele na Papuda.

Ricardo Bordin

A louca espera do martelo

O Supremo Tribunal Federal está com a bola da vez. No dia 5, fará a grande jogada que pode significar a esculhambação ampla, geral e irrestrita do país. Vai a plenário do STJ a retomada do julgamento sobre a possibilidade de prisão após condenação pela justiça de segundo grau e, portanto, antes do final do processo. Como ninguém pode prever o que vai sair debaixo da toga e da fralda, é bom colocar as barbas (quemn as tiver ainda) de molho.

Em fevereiro, o Supremo decidiu permitir que as penas passassem a ser executadas na segunda instância, mas o ministro Marco Aurélio Mello, em duas ações, já decidiu pela prisão apenas depois do trânsito em julgado nas Supremas Cortes. Se os juízes votarem, em maioria, confirmando Marco Aurélio, a Justiça brasileira dará mais um passo atrás e muita gente vai deixar o xilindró.

Ficará tudo no mesmo. O presídio continuará como instituição penal dos pobres e a liberdade será para quem tiver grana para sustentá-la. A turma do foro privilegiado seguirá livre, leve e solta de recurso em recurso. E como a Justiça, no Brasil, caminha quase parando, essa confraria das "zelites", em particular a politicanalha, poderá viver em paz pela eternidade, e de quebra alguns "jabutis" da criminalidade como chefões e líderes do crime.

O STF está na encruzilhada entre manter a Justiça do privilégio e a cidadania da igualdade. Deve escolher se mantém o ritual de uma Justiça colonial ou se moderniza e entra enfim no século XXI, como em outras democracias, em que apenas Deus possui privilégio por ser a última instância a quem criminosos podem recorrer.

O país espera o bater do martelo. Que não seja sentir a martelada togada nas fuças.
Luiz Gadelha

Caminho

e a hora que não passa.:
Há mentiras de mais e compromissos
(Poemas são palavras recompostas)
E por tantas perguntas sem respostas
Mascara-se a verdade com postiços.

Não é vida, nem sombra, nem razão,
É jaula de doidice furiosa,
Eriçada de gritos, angulosa,
Com estilhaços de vidro pelo chão.

É carrego de mais esta jornada
E protestos não servem, nem suores,
Já mordidos os membros de tremores,
Já vencida a bandeira e arrastada.

Depois se me apagaram os amores
Que a viagem fizeram desejada.
José Saramago

Candidato favorito detesta pobre, e ganha voto

Nunca cuidei dos pobres, não sou São Francisco de Assis. Até porque a primeira vez que tentei carregar um pobre pra dentro do meu carro eu vomitei por causa do cheiro
Rafael Grega (PMN), candidato favorito à Prefeitura de Curitiba'

Cidadão do bem

Não sei o que estou fazendo aqui. No duro. Alguém me responde? Sou empresário, formado em Direito, pós nos Estados Unidos, pago meus impostos e sou pai de família. Tenho mulher e filhos. Enriqueci com meu trabalho e esperteza. Nunca fui um desses acomodados, que deitam na grana da família e faz porra nenhuma. Ou desses vândalos criados sem orientação, que sai pras ruas pra quebrar agência bancária, aterrorizar a cidadãos de bem como nós. Meu filho tem uns amigos assim na faculdade; ele me contou. Na minha casa, não entram.

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Esses são o perigo. São eles que levam este país para o buraco, a devassidão, o comunismo. Eu sou apenas um executivo que tem um emprego estressante. Centenas de pessoas dependem de mim, dentro e fora da empresa. Sou uma das peças que movimentam a economia deste Estado. Sabe onde muitos estariam se não fosse por mim? Desempregados, na rua, na desgraça, na pouca vergonha. É fácil estampar minha foto no jornal e me chamar de demônio. Quero ver aguentar a pressão. E não de dia, não. É de hora em hora. Porque, sem mim, uma parcela do que permite este Estado funcionar vai pro ralo. Sem mim, você não recebe sequer uma mariola.

Sou como qualquer outro executivo responsável por uma fundação com centenas de empregados. Para relaxar, tenho hobbys. Putas, droga, isto é o básico. Todo mundo faz, não tem problema, não machuca ninguém. Até, inclusive, beneficia, pois pago por serviços e movimento o mercado informal, tudo é tributo, eventualmente. Pode-se questionar a moralidade de seus trabalhos, mas, cá entre nós, é uma baita hipocrisia. Se a mulher quer dar a boceta ou o cu, o problema é dela. Quanto a financiar o tráfico, não vejo nada demais. Enquanto houver traficante, haverá menos ladrões, porque eles se empregam por lá, e quem sai da linha, é feito de exemplo. Como na minha empresa. Fez merda? Fora!

Mas não é só de gozar e cheirar que um homem na minha posição pode recarregar a energia. A razão por que fazemos parte de 1% privilegiado é porque gostamos de desafios. A adrenalina é o que nos torna capazes de tomar decisões duras a cada segundo. Tive vários hobbys. Quando era jovem, costumava sair com uns amigos da faculdade e íamos atrás de mendigos. Não para bater, esclareço. Mas, às vezes, ficavam agressivos e sabe como é que é?,tínhamos que nos defender. Muitas vezes, nos atacavam com querosene e, no meio da confusão, botavam fogo neles mesmos. Vê só que loucura?

Depois que casei e a mulher engravidou, percebi que não podia continuar nestas molecagens. É como meu pai dizia: ter uma criança é a melhor desculpa para parar de agir como uma. Então, sosseguei. Voltei-me para os esportes. Em especial, squash. Jogava com conhecidos do clube. Como o sujeito competitivo que sou, fazia de tudo para marcar mais pontos. Desenvolvi uma técnica, que consistia em bater com o máximo de força o adversário contra a parede. O braço incha, sabe?,então, desequilibra o outro, que perde em mobilidade e agilidade. Fiquei bom nisso. Uma vez, o braço do outro parecia uma beterraba ao fim. Finalmente, um dia, veio este sujeito tomar satisfação. Não gostei do tom e acertei a cara dele com a raquete. Ele reagiu, meus seguranças interferiram, uma confusão dos diabos. Enfim, cansei e resolvi para partir para outra.

Em um almoço de negócios, um conhecido meu me contou de safaris privados. Um grupo importava animais e os soltava na mata para serem caçados por empresários ou quem pudesse pagar para participar. Me interessei, comprei um rifle XLF-9, uma beleza de arma, e paguei minha inscrição. Chegamos lá, tomamos café na manhã seguinte, vimos nosso alvo e fomos. Foi muito bom, vou te contar. A sensação de alerta, de espreitar, sentir o cheiro e a aproximação do alvo, era uma adrenalina só. E eu era bom nisso. Além de encontrar, frequentemente eu era o que matava. Retornei várias vezes. O problema é que era muito esporádico. É difícil encontrar alvos com o físico e o treinamento para sobreviver uma caçada. Não é como bater em bêbado. Se fosse, qual seria a graça? Então, eram animais que precisam estar em tal condição que estivessem aptos a correr, até se defender. Geralmente, ex-soldados que o grupo recrutava e soltava na mata para irmos atrás…

Como? Não, não, não caçávamos os soldados. Imagine. Isto seria assassinato. Não sou um assassino. Sou um cidadão de bem, e esta insinuação me ofende. E, olha, mesmo que os animais fossem gente de carne e osso, que caçássemos seres humanos, eles assinaram um contrato, e as famílias recebiam 10% do total, uma soma muito generosa. Mas não afirmo isso, apenas suponho.

Finalmente, precisei me afastar. A empresa passou por uma crise há alguns anos, alguém fez merda na Europa, as ações caíram, precisei vender umas subsidiárias, um inferno. Quando me restabeleci, descobri que o grupo que organizava as caçadas foi preso. Aparentemente, faziam parte de uma milícia, um desses esquadrões de extermínio. Então, acabaram as caçadas.

Nesse meio tempo, tive um enfarte. Fiquei internado, quase morri. O médico mandou eu maneirar um pouco, disse que escapei por pouco, etc. Fique feliz de não ter tido um AVC e não ficar babando no canto da boca como um amigo meu. Triste.

Sempre tive paixão por carros e corrida. Quando morei em São Paulo, até frequentei uma pista. Comprei um carrão, com parachoques salientes, o reforço especial duplo de aço cromado, veículo sensacional. Então, resolvi adotar um hobby mais calmo: dirigir à noite. Assim, chego em casa, janto, pego meu carro e dirijo. Num dia mais estressante, dirijo por mais tempo, sem pressa pra voltar. Ás vezes, me esqueço tanto do tempo, e gosto tanto de ouvir o ronco do motor que acelero. Nunca dirigi bêbado ou passei do limite de velocidade. Como disse, sou um cidadão de bem.

Hoje, por exemplo, estava tenso. Amanhã será um dia tenso na firma. Me distrai na direção e atingi aquela senhora. Sinto mal que tenha perdido as pernas, mas não foi minha culpa. Quanto aos outros atropelamentos que ocorrem nesta região, nada sei. O modelo do carro de cujas fotos me mostraram é parecido com o meu, sim. Mas não é, garanto. Além do mais, se eu saísse à noite para atropelar pedestres, não seria descoberto. Tenho pós nos Estados Unidos, sou empresário de uma firma responsável por centenas de pessoas. E, mais importante, sou um cidadão de bem. Logo, quanto vocês querem para me liberar aqui e a gente evitar a encheção de saco de um processo que não dará em nada? Mas falem logo, que amanhã terei um dia terrível na companhia.